Nada pode ser mais vazio e demagógico do que se colocar fortemente contra algo… que ninguém é a favor! Como a corrupção.
Faz sentido uma marcha pela descriminalização da maconha… porque existem de fato pessoas e grupos e movimentos que são a favor da maconha continuar proibida. (E vice-versa.)
Faz sentido uma campanha em prol de mais religião no Congresso… porque existem de fato pessoas e grupos e movimentos que acham que o Estado deve ser mais laico. (E vice-versa.)
Na prática, o que quer dizer ser contra a corrupção, afinal? Existe algum grupo, partido, organização pró-corrupção? Que ações concretas isso implica – além da pura retórica vazia? O que uma pretensa senadora ou prefeita anticorrupção faria que já não seria sua mais reles obrigação?
O que é ideologia
Essas pessoas que marcham contra a corrupção via de regra são as mesmas que se dizem apolíticas e que fazem desabafos como:
“Sou apenas um indivíduo livre, não tenho raça, não sou afiliado a partido, não tenho ideologia, não me meto em política! Quero só ficar aqui quietinho no meu canto, trabalhando duro, cuidando da minha família, viajando, curtindo meus livros, sendo feliz! E quero que esses políticos corruptos parem de roubar, claro!”
Certo ou errado, o problema de quem fala essas coisas é não perceber a sua própria ideologia.
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Ideologia é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que permite que as pessoas se relacionem com e façam sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo. Por isso, não faz sentido falar de ideologia como algo necessariamente ruim, ou oposto à “verdade”. Não existe verdade a-ideológica: qualquer verdade será sempre apreendida através da ideologia de quem a vê.
A ideologia de se achar sem ideologia é uma das ideologias mais disseminadas em nossa sociedade, especialmente entre as pessoas bem-nascidas de inclinação conservadora, e serve de justificativa para todo tipo de apatia, especialmente da supressão do diálogo político na arena pública. Nesse caso, cometer a enorme redundância de marchar contra algo que todo mundo é contra torna-se apenas mais um sintoma dessa apatia em estado terminal.
Quem reclama de não aguentar mais “tanta ideologia” não é uma pessoa livre-pensadora, descompromissada e apolítica tentando formar suas próprias opiniões, mas sim uma pessoa mentalmente preguiçosa e de cabeça fechada, que só gosta de se expor às opiniões com as quais já concorda e que se sente extremamente incomodada quando exposta à opiniões diferentes.
É impossível um texto não ter ideologia ou não estar totalmente imerso na ideologia de sua autora ou, no mínimo, da sociedade que a produziu. Quando você tem a ilusão de ler um texto que não é ideológico, isso simplesmente quer dizer que o texto tem a mesma ideologia que você: logo, que a ideologia do texto é invísivel.
Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.
“Sou militante do Partido Pró-Cumprimento das Leis”
Sempre que uma representante, um grupo ou um movimento político se autodefine, eu me faço a seguinte pergunta:
Alguém tem posição oposta a isso?
Se afirmam defender “mais privatizações”, eu me pergunto: existe gente que defende “menos privatizações”? Existe. Então, é uma disputa política válida e cabe a mim decidir de que lado estou.
Se afirmam defender “água limpa para toda a população”, eu me pergunto: existe gente que defende “água suja para toda a população”, ou que algumas pessoas não devem ter acesso à água limpa? Não, claro que não existe. Então, é um discurso político vazio e demagógico.
Quais são as prioridades?
A questão não é ser a favor ou contra “água limpa para toda a população” mas sim quais outras coisas devem ser despriorizadas para que se invista mais em “água limpa para toda a população”. Ninguém é contra “água limpa para toda a população”, mas algumas pessoas são mais a favor de investimentos militares ou de subsídios agrícolas.
Eu, por exemplo, me sinto agredido sempre que vejo equipes da prefeitura fazendo paisagismo nos canteiros da Barra da Tijuca, bairro de elite do Rio de Janeiro, enquanto existem ruas da cidade que não tem asfalto ou saneamento básico.
Se você é contra a corrupção, parabéns. Todas as pessoas são. Pare de chover no molhado e vá se engajar nos grandes debates do nosso tempo. Cotas raciais, código florestal, política externa, Belo Monte, tudo isso é mais importante do que faniquitos anticorrupção que não levam (e nem poderiam levar) a nada.
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Para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro. Mais detalhes sobre essa técnica aqui.
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