Um mundo virtual de escolhas reais
Em seu último livro, 21 Lições para o Século XXI, o historiador israelita Yuval Noah Harari diz que
“Cada vez mais vamos confiar nos algoritmos para que tomem decisões por nós, mas não é provável que os algoritmos comecem conscientemente a nos manipular. Eles não terão consciência.”
Harari define consciência como “[…]a aptidão para sentir coisas como dor, alegria, amor e raiva”. De fato, os algoritmos têm se incorporado sutil e velozmente em nossas rotinas e participado ativamente em muitas de nossas tomadas de decisão: a escolha da melhor rota para se chegar a um destino, a indicação de um restaurante nas redondezas, a primeira notícia a ser lida , a playlist a ser executada, etc.
Os algoritmos estão sempre dispostos a sugerir, eles respondem com agilidade e, principalmente, eles aprendem continuamente sobre nossos interesses, à medida que “fazemos escolhas nas redes”.
Quando erram, perdoamos. Mas em geral, nos satisfazem. Todavia, concordo com o Harari que, mesmo reconhecendo a incontestável esperteza dos algoritmos, esses não têm consciência alguma do que estão fazendo por nossas vidas. São inconsequentes. Podem nos guiar em direção a abismos ou paraísos — e não partilham das dores, alegrias, amores ou raivas de ‘nossas escolhas’: eles, os algoritmos, não estão nem aí para nossas vidas.
Conhecer melhor o poder de influência dos algoritmos em nossas vidas torna-se fundamental quando refletimos sobre a relação entre nós e os smartphones. Afina, esses dispositivos representam a ponte mais direta entre nós e “nossas escolhas”.
Retornando a atenção aos nossos pré-adolescentes, que navegam por entre algoritmos com a naturalidade de nativos digitais que são, poderíamos experimentar fazer a eles a seguinte pergunta: que consciência estão tendo das escolhas e descobertas que acontecem em suas vidas através de seus smartphones?
Uma vez que esses pré-adolescentes se sentirem mais à vontade em partilhar com pais e educadores impressões de suas aventuras reais em seus universos virtuais, estas trocas poderão fluir com mais lucidez e empatia.
Acreditamos em duas hipóteses: 1) vivenciamos escolhas reais enquanto mergulhamos em universos virtuais; (2) isso nos afeta positiva e negativamente, interferindo em nossa potência de existir no mundo.
A partir destas duas ideias, entendemos que a íntima relação entre nossos filhos e seus smartphones pode nos servir como um caminho para nos aproximar mais dos adolescentes a partir, por exemplo, do diálogo sobre seus smartphones, o uso que fazem deles, seus interesses e desejos.
Dessa maneira, pais e educadores que decidam acolher essa relação sem medos pré-concebidos, estarão investindo na elaboração de uma consciência tecnológica, que é capaz de promover avaliações mais aprofundadas e ricas sobre as escolhas e descobertas vivenciadas em rede.
Também não podemos esquecer que, ao falarmos de consciência, nos afastamos de conceitos de opressão. A opressão dita regras e opera controles rígidos. Os caminhos virtuosos da conscientização são reflexivos. Opressão paralisa, consciência faz levitar. Enfim, o que podemos constatar é que, se a opressão nos leva à obediência cega, a consciência nos eleva à empatia generosa.
Considerando a estrada da consciência tecnológica um caminho possível, pais e educadores precisam descer de seus pedestais e trabalhar duramente na conversão de medos e preconceitos acerca das tecnologias de rede, em coragem e conhecimento, respectivamente. Racionalizar as diversas questões a serem enfrentadas nesse contexto, refletindo sobre, tecem um caminho seguro, porém dinâmico.
Tecnologia pra regular a tecnologia: solução ou complicação?
Cada pré-adolescente é único e cada caso é um caso. É importante ser muito cuidadoso com receitas prontas recheadas de dicas simples a serem seguidas e prometendo resolver de uma vez por todas problemas advindos do uso de smartphones.
Nem sempre existem problemas concretos a serem resolvidos. O esforço genuíno de se aprofundar e entender como os jovens usam as redes pode nos levar a ver o que antes era um problema a partir de um novo ponto de vista. Simples assim.
Ao perceberem "perigo no ar", muitos pais procuram modernas soluções tecnológicas, aplicativos que resolvam o "problema" do filho que usa muito o celular. Tais soluções apresentam algumas características em comum:
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São de natureza estritamente tecnológica, não favorecendo o diálogo entre pais e filhos, preconizando a autoridade dos pais e reforçando a verticalização da orientação de cima (os pais) para baixo (os filhos);
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Muitas delas são bem invasivas e disparam (mais) notificações na tela do celular, assim como requisitam esforço adicional de configuração nos aparelhos;
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Monitoram em tempo real notificando os pais acerca de cada passo dado pelos seus filhos com os smartphones (bem como permitem o bloqueio à distância de recursos dos celulares), reforçando a necessidade de controle e fortalecendo uma relação de desconfiança entre pais e filhos.
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Submetem à aprovação dos pais as solicitações dos filhos para acesso a algum conteúdo específico não pré-autorizado, o que limita a autonomia dos filhos.
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Disponibilizam aos pais o controle do tempo de uso dos celulares pelos filhos, tirando dos jovens a capacidade deles de bem gerir o tempo dedicado aos seus interesses pessoais através dos smartphones.
É legal que os pais combinem com seus filhos, antecipadamente, regras a serem seguidas em relação ao uso de aplicativos como esses. Isso não seria nenhuma opressão, afinal cabe aos pais ditar “as regras do jogo” em casa e aos filhos obedecê-las.
Também é completamente compreensível, em algumas situações de alto risco em que os filhos estejam inseridos, que os pais possam agir com emergência e restrição mais geral.
Em situações extremadas assim, os pais agirão quase que completamente sobre as consequências. E as causas, se não identificadas e tratadas, tendem a se manter intactas, instaladas tal qual parasitas esperando novas oportunidades de ação.
Quando os pais puderem agir antes de situações extremas, aproveitando a oportunidade para investir em diálogo construtivo com seus filhos, horizontalizando a comunicação e dividindo com eles suas dúvidas e receios, a narrativa será outra bem diferente.
Neste contexto mais humanizado com espaço para o diálogo, a adoção de mais tecnologia para mediar a relação entre seus filhos e seus celulares poderá ser descartada em favor de um ambiente mais cooperativo, ético e honesto.
Contudo, também existem soluções situadas na ‘terceira margem do rio’. Apesar de serem tecnológicas e distribuídas na forma de aplicativos para smartphones, foram projetadas para serem minimamente invasivas e mais humanizadas, buscando educar seus usuários com mais leveza na trilha da conscientização tecnológica e na recuperação de mais tempo diário para dedicação à “vida fora do celular”.
Aplicativos como Moment (recomendado pelo Center for Humane Technology), Forest, Flipd e Mute, estão no grupo de soluções tecnológicas mais humanizadas. Eles trabalham para conduzir seus usuários a uma desconexão mais consciente e sustentável, estampando lemas como “Fique focado, esteja presente”.
Destaco abaixo algumas características de soluções como essas:
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Têm natureza menos invasiva;
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São desenhados com base em linhas de ação que favorecem a tomada de consciência (medidas de tempo, frequência de acesso aos smartphones, status de progresso e gráficos de monitoramento etc)
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Favorecem mudanças de hábito (através de coach, detoxing, mensagens motivacionais, práticas de meditação, mindfullness etc);
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Produzem gráficos diários, semanais e quinzenais demonstrando a ‘realidade fria’ da relação do usuário com seu smartphone em aspectos como tempo de tela, vida no telefone, número de desbloqueios, aplicativos mais usados etc.
Eu mesmo uso alguns desses aplicativos há algum tempo. Costuma ser impactante, a princípio, nossa tendência natural para subestimar o tempo que passamos grudados nas telas dos celulares.
À medida que o vai adquirindo informações mais precisas acerca dessa relação, o usuário se capacita para, se quiser, iniciar um processo de desconexão. De acordo com o que está publicado no site oficial do Moment, por exemplo, o uso do aplicativo já conseguiu devolver uma hora diária na ‘vida real’ a pelo menos 7 milhões de usuários pelo mundo.
Importante reforçar que, mesmo aplicativos com propostas mais humanizadas não podem ser tomados como alternativa eficaz para qualquer situação. Vale a experimentação em busca daqueles que respondam melhor às peculiaridades de cada situação individual.
Transformação pessoal digital e darwinismo tecnológico
Minha caminhada investigativa sobre a influência dos smartphones na ‘transformação pessoal digital’ iniciou-se efetivamente em 2011, quando optei por desativar por um tempo minhas redes sociais e o WhatsApp. Foi meu ponto de partida na estrada da consciência tecnológica.
Conversando com colegas sobre o peso de nossas relações com os celulares, notava que o assunto não saía da superfície e nem despertava interesses mais honestos. Comecei a pensar que talvez estivéssemos entorpecidos com as ‘vantagens’ de estar progressivamente mais conectados.
Outra impressão muito forte que também pude formar naquele tempo, quando os smartphones ainda estavam se consolidando estética e funcionalmente, é que havia um maior apreço pela praticidade de se ‘ganhar mais tempo’ com o uso dos celulares.
A conveniência começava a ganhar ares de maior importância em relação ao labor de escolhas pessoais mais significativas.
Sem querer imprimir um ar nostálgico à reflexão, o que poderia soar dramático demais, o que hoje chamamos de prevalência dos algoritmos por trás de nossas escolhas, estava sendo semeado há pelo menos uma década. Como boas cobaias, alimentamos obedientemente o vertiginoso crescimento dessa indústria e passamos a sorver o oxigênio digital emanado dessa rica flora tecnológica.
Talvez, nesta última década, tenhamos vivido num possível Darwinismo tecnológico, em que tivemos de nos adaptar continuamente aos rápidos avanços tecnológicos, a fim nos mantermos em marcha no mundo moderno.
Como resultado deste processo, anexou-se às nossas mãos um ‘cérebro artificial’ na forma de um smartphone.
Partindo desta premissa, faz-se imprescindível que busquemos uma fusão mais lúcida entre as qualidades humanas intrínsecas de nossa espécie e a adoção irreversível de tecnologias em nossas vidas.
Protagonismo Pré-Adolescente e Empoderamento
Nos dias de hoje, os smartphones, as tecnologias e as redes se tornam cada dia mais potentes. E nós? Estamos também nos tornando humanos mais poderosos à medida que nos apropriamos dos smartphones ou simplesmente estamos sendo expropriados de nós mesmos por eles?
É uma questão bastante discutível, com toda certeza. O que estou tentando enfatizar aqui é o incremento de poder de nossas faculdades humanas e nesse quesito estamos carentes de discussões mais abalizadas.
Tenho hoje em casa a oportunidade de conviver com dois filhos pré-adolescentes e mais um bebê de um ano. Para você que conseguiu chegar até aqui na leitura desse texto, não vai estranhar se eu disser que travamos discussões acaloradas em casa sobre uso de celulares quase que diariamente.
Com o caçula, que já se mostra curioso com as cores vibrantes do celular no leve toque de seus minúsculos dedinhos, minha única preocupação e deixá-lo longe dessa encrenca por pelo menos uma década.
O nível das discussões está evoluindo a cada questão que esmiuçamos. Procuro aproveitar qualquer chance para debater sobre essa temática com eles e confesso que sempre estou aprendendo muito. Eles me trazem um olhar pré-adolescente que nem sempre é de fácil alcance para mim.
O que percebo, a partir das relações que eles mantém com seus celulares, é a como eles são distintamente afetados pela tecnologia. Os celulares são para eles, em essência, um instrumento em que eles, ao mesmo tempo em que se encontram (consigo mesmos), também se revelam como pessoas humanas que são. A tecnologia é secundária e simples mediadora.
Estimulado por esse debate doméstico cotidiano e também pelo crescente número de situações vivenciadas por colegas dos meus filhos, trazidas ao meu conhecimento diretamente por eles ou em trocas com outros pais, comecei também a investigar como essa temática tem sido tratada nos ambientes escolares.
O quanto nossos educadores estão preparados para lidar com isso? Quais as falas predominantes em torno de temas tão capciosos e atuais?
Conversei com diretores, professores e psicólogos de escolas, assisti a vídeos e pude ler alguns bons artigos sobre essa matéria. E estou formando uma convicção de que o enredo padrão das falas atuais me parece morno, superficial e dessintonizado com o momento tecnológico em que vivemos. O medo e o controle embasam as teses e autoridade e opressão são ferramentas comuns para ditar regras a serem seguidas.
O esperado é que pais e educadores estejam ditando o “uso correto” de smartphones pelos nossos pré-adolescentes.
Desse esforço de aprofundamento nasceu a TechConscious, iniciativa que tem como fundamento basilar a instauração do protagonismo nos pré-adolescentes quanto à elaboração de uma consciência tecnológica progressivamente mais apurada.
Os holofotes deveriam estar sobre eles e seguem abaixo algumas justificativas em prol do protagonismo pré-adolescente/adolescente:
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São eles os protagonistas concretos das narrativas em questão e também os mais diretamente afetados por elas;
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Dominam com total fluência a linguagem digital, que muitas vezes se mescla e se confunde com o dialeto falado entre eles;
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Sentem na pele as emoções vividas no contato intenso através das telas de seus smartphones: trocam incontáveis mensagens diariamente (texto, imagens, vídeos e ‘otras cositas mas’), conhecem pessoas, ‘namoram’ e terminam relacionamentos etc;
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São os primeiros a saber, em riqueza de detalhes, dos ‘babados’ e ‘tretas’ possíveis e inimagináveis;
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Têm os smartphones como principal arma para o “bem” ou para o “mal” e suas vozes estridentes como munição infinita;
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São mestres na arte de desvendar os mistérios sobre seus amados celulares e aplicativos e tudo mais que ainda nem foi inventado;
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Estão mais conectados do que ninguém
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Escondem, por trás do habitual silêncio com os celulares em mãos, olhos vibrantes e ouvidos atentos, um sem fim de ideias, sonhos e desejos;
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Sabem bem como dispensar sugestões dos algoritmos, quando as consideram inapropriadas ou desinteressantes.
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Descobrem maneiras de se camuflar do monitoramento dos pais e da escola e nem sempre é trivial seguir os rastros deixados por eles.
Não é ficção científica e nem profecia. É a vida como ela ‘está’. Nossos pré-adolescentes têm sim um instrumento de poder na palma das mãos, mas não necessariamente estão empoderados para a vida. Falta-lhes consciência, pois empoderamento só existe quando se sabe responder para quê.
A boa nova é que eles mesmos são os mais capazes para conduzir a si próprios na trilha da elaboração de uma consciência tecnológica, tornando-se os críticos mais contundentes de si mesmos.
Cooperação horizontal entre pré-adolescentes, pais e escolas
Se paralelamente ao protagonismo de nossos pré-adolescentes nos caminhos da conscientização tecnológica, pais e educadores se unirem em favor da promoção dos ambientes domésticos e escolares a espaços concretos de diálogo não opressores, confiança e cooperação serão as bases.
Basicamente, o que se precisa fazer é derrubar muros e construir pontes. Horizontalizar a comunicação entre todos os atores envolvidos, tendo os pré-adolescentes no centro da roda e também tomando decisões, significa apostar no futuro.
Quando ninguém é dono da verdade e todos estão cientes de que não existem verdades absolutas, caminhos mais interessantes se destacam no labirinto de rotas possíveis.
A TechConscious se propõe então a funcionar como uma espécie de mediadora de discussões sobre uso de tecnologias na interação entre educadores (pais e escola) e pré-adolescentes. Sua filosofia pode ser fundamentada basicamente em três pilares:
- Protagonismo dos pré-adolescentes,
- Elaboração regular da consciência tecnológica
- Cooperação contínua e proativa com pais e escola.
Entendemos que os pré-adolescentes precisam de espaço para que também possam dedicar tempo a pensar sobre o que têm feito olhando a tela de seus celulares. Uma vez que família e escola operarem cooperativamente na construção de espaços verdadeiramente democráticos, nossos pré-adolescentes poderão exercer seu protagonismo natural nesse debate.
As apostas feitas por nós com proposições práticas em ambiente escolar apontam no sentido da mediação destes debates.
O nosso plano de ação precisa usar o mesmo uniforme dos alunos, ou seja, precisa se adaptar ao modo de funcionamento da escola. Precisa estudar a escola e viver seu dia a dia a fim de alcançar aproximações sinceras com as dinâmicas vivenciadas por todos os atores no ambiente escolar e, especialmente, pelos pré-adolescentes.
Em razão disso, a realização de pesquisas é uma das principais ferramentas na customização do plano geral a ser trabalhado na escola. A lista abaixo apresenta exemplos de ações concretas que podem ser desenvolvidas:
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Pesquisas com pais de alunos (conhecer melhor os perfis das famílias envolvidas e trabalhar os resultados obtidos das pesquisas para nivelar conhecimento sobre as temáticas a serem trabalhadas com os alunos, etc);
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Pesquisas com alunos (levantar informações para a montagem de mapa temático visual da relação atual das turmas com os smartphones, priorizar com eles áreas de maior interesse de estudo e suas principais dores iniciais, etc);
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Coordenar implantação de soluções tecnológicas com propostas mais humanizadas como possíveis ferramentas auxiliares à prática não invasiva de automonitoramento na utilização de smartphones, produzir métricas a partir de dados coletados e construir coletivamente metas a serem trabalhadas pelas turmas;
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Promover debates com pais e educadores através de palestras sobre temáticas trabalhadas no ambiente escolar;
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Realizar encontros regulares (semanais ou quinzenais) com alunos para acompanhamento das demandas sendo trabalhadas, no sentido de trazer essa pauta definitivamente para a agenda da escola e das famílias;
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Implantar um canal para recepção de dúvidas, sugestões e críticas dos alunos acerca das temáticas estudadas, sem que tenham que se identificar;
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Acompanhar os alunos na organização de eventos com materiais e formato preparados com os alunos, a fim de divulgar com o restante da escola as questões que estão sendo discutidas, através da apresentação dos resultados alcançados e prospecções futuras pelos próprios alunos.
Gostaria muito de saber como vocês, leitores, enxergam a consciência tecnológica como uma solução para o uso mais saudável dos smartphones.
Que caminhos vocês têm trilhado para evitar ou mitigar o vício em celulares? Para os que são, pais e educadores, o que acham das proposições de ter uma mediação nas discussões acerca dessa temática dentro das escolas?
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.