Instituído de maneira unificada em 2003, o Programa Bolsa Família é considerado pela ONU uma referência em projetos de combate à pobreza e desigualdade no mundo.

Baseado em um conceito que atrela a transferência de renda a condicionalidades relativas à saúde, assistência social e à frequência escolar, o PBF atendeu, em novembro de 2017, 13,6 milhões de famílias — o valor médio do benefício recebido é de R$ 179,89.

Ao longo de sua existência, o programa foi contestado por falhas de cadastro e por críticos que enxergam o sistema de repasse direto de 0,5% do PIB como assistencialismo. Durante o mesmo período, foi louvado por números como a retirada de 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, pela frequência escolar 10% maior de seus beneficiários em relação à média nacional ou o dado levantado pelo Ipea de que cada R$ 1,00 transferido pelo programa se reflete em um crescimento de R$ 1,78 no PIB nacional.

Vieses políticos à parte, há também um outro ponto estabelecido pela Lei Nº 10.836, de 2004, que costuma ser objeto de estudo para muitos pesquisadores. Em seu décimo quarto parágrafo, a legislação do programa estabelece:

“§ 14. O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher, na forma do regulamento.”

Pensada em torno das características estruturais das famílias vulneráveis (muitas vezes com pais ausentes) e da noção tradicional de divisão de trabalho — em que as mães tendem a ser responsáveis pelas tarefas de cuidado com as crianças —, essa diretriz acabou promovendo também mais autonomia para as mulheres. Titulares em 93% das famílias, as beneficiárias passaram a ter maior poder de decisão no lar e em suas escolhas, inclusive reprodutivas (ao contrário do que alguns esperam, a taxa de natalidade entre as famílias atendidas caiu acima da média nacional).

Com o poder financeiro, o papel das mulheres mudou. E por conseguinte, com a transição da função de provedor, o papel de boa parte dos homens se esvaziou.

É sobre esse recorte que a professora Rosilene Mazzarotto, mestranda do programa de pós-graduação em educação UFRGS e membro do comitê gestor do PBF em Porto Alegre, se dedica em sua pesquisa.

Coordenadora da condicionalidade da educação do Programa, ela participa ativamente de atividades como cadastramento, entrevistas, acompanhamento familiar, reuniões e rodas de conversa sobre o tema. Ao mesmo tempo em que se considera feliz e satisfeita em trabalhar com as possibilidades de transformação de uma política pública gigantesca, também se vê imersa e em contato com os problemas.

Um destes é a prática de que, ao chegarem à pré-adolescência e começarem a descumprir a frequência da educação, um número considerável de meninos são retirados do cadastro pelas famílias como estratégia para não comprometer o recebimento do benefício.

“Assim como os homens adultos que, em geral, não constam no cadastro como membros da composição familiar e não se responsabilizam pelo cuidado dentro da família, muitos jovens são invisibilizados, sob o argumento de que não moram mais com a família. O silêncio sobre estes jovens diz muito. É uma fala às avessas, que produz, inscreve sobre eles um lugar a ocupar.

Para além dos silêncios, estes meninos cresceram atravessados pelo que me parece um enunciado, em grande parte reforçado pelo Programa: homens pobres não são confiáveis, não se responsabilizam pela família, não sabem gerenciar recursos e não se colocam como provedores”.

Ainda em curso e sob a orientação do professor Fernando Seffner, a pesquisa acadêmica de Rosilene analisa (para além da distribuição de renda) os efeitos desejados e indesejados que o PBF promove nas construções das masculinidades.

Foto cedida por instagram.com/ismaeldosanjos/

A seguir, separei alguns dos trechos mais marcantes dos artigos e propostas já escritos pela professora. Depois desses recortes, está a entrevista que fiz com ela sobre o assunto.

A ideia dessa coluna é, sempre, promover uma conversa mais profunda sobre temas e estudos ligados ao universo masculino. Seguimos o papo nos comentários.

Construção de Masculinidades em espaço feminino: um recorte do programa bolsa família

Trecho 1:

Registrei esta fala em 2015, numa formação com técnicos/as da saúde, mas ela é recorrente, com pequenas variações reaparece com frequência: “Eles (os pais) não aparecem no posto, só aparecem pra fazer filho e buscar dinheiro e quando não tem lugar para dormir, eles não pagam pensão, não criam os filhos e elas (as mães) ainda recebem eles (os pais/companheiros) em casa, elas gostam”.

Analisando as noções de família nas políticas públicas, Meyer, Klein e Fernandes (2012) percebem:

Um aspecto importante que temos destacado é que um dos efeitos de poder (não esperado) da incorporação (reivindicada e desejada) de noções mais abertas e flexíveis de família, nesses programas, parece ser a “naturalização” da ausência de um homem-pai nos núcleos familiares mais pobres e, sobretudo, sua “desresponsabilização” pela vida das crianças que o integram. Isso tem se traduzido, por um lado, no posicionamento do Estado no lugar de autoridade conferido ao pai na família mononuclear moderna e, por outro, na sobreposição de uma parte significativa dos deveres até então definidos como “paternos” (sobretudo aqueles vinculados ao provimento do lar) aos já consagrados “deveres maternos”. (2012 -p.444)

Diante deste cenário, é necessário perguntar, de que de homens falo? Percebo claramente dois grupos de homens, com marcas geracionais e sobre os quais se depositam expectativas diferentes. O primeiro, dos homens adultos, que compõem as famílias ou transitam por elas.

São pais ou padrastos, vistos com alguma desconfiança pela política e pela sociedade, que os acredita irresponsáveis para administrar financeiramente a vida da família, para prover as necessidades básicas com alimentação para os filhos e o cuidado com a saúde e escolarização (IPEA, 2010).

O outro grupo é composto pelos jovens, meninos e adolescentes beneficiários, acompanhados pelo Programa, na sua maioria, por longos anos, a quem, espera-se, que a política supra a ausência do papel de provedor do pai. De toda forma, os dois são colocados como pouco confiáveis, uns porque considerados irresponsáveis e os outros, por ainda serem crianças ou adolescentes. Interessam-me os jovens, filhos homens, que estão inseridos na política e são acompanhados pela condicionalidade da educação. Estes jovens, atravessados por muitos marcadores, têm no gênero uma primeira identificação: está no nome, nas posturas, nos grupos, no que revelam, no que escondem, no que temem ou afirmam.

Trecho 2:

Este posicionamento dos homens adultos num lugar de desconfiança e o silêncio sobre os meninos, dentro do PBF, parecem apontar para uma expectativa de que repitam o ciclo, ou seja, "naturalmente" se posicionem como homens e sigam se desresponsabilizando por seus núcleos familiares, ou então de que o cuidado com a saúde e com a educação, assumido pelas mães, possam dar conta da superação destas construções.

Gary Barker também dá visibilidade aos efeitos nocivos que a política pode ter sobre as masculinidades:

Resumindo, na maioria dos contextos, a renda provida às mulheres como parte destas políticas provavelmente irá beneficiar mais as famílias do que quando dada aos homens. Mas, ao mesmo tempo, esta prática pode afirmar implicitamente uma crença de que os homens não irão mudar: os homens são na maioria “egoístas” e não são suficientemente envolvidos no bem-estar de suas famílias para ser confiados a eles este auxílio. (Barker, 2010, p. 128)

Novamente retomo a questão: de que meninos falo? Meninos atravessados por muitos marcadores da diferença, já mencionados anteriormente e pela vulnerabilidade. Esperar que somente a escolarização possa dar conta de tirá-los da situação de pobreza e vulnerabilidade seria, no mínimo, ingênuo.

(…) Considerar que estes meninos estão no grupo de maior vulnerabilidade social significa entender a exposição a que estão submetidos, como resultado de um conjunto de aspectos que ultrapassam a esfera individual, mas são de ordem coletiva e contextual.

Trecho 3:

A produção do material empírico desta pesquisa se divide/soma entre análise dos textos de lei e instruções normativas do MDS-MEC e da análise do material produzido em entrevistas semi-estruturadas e grupo focal.  Meu problema de pesquisa se desdobra, para além do lugar de sujeito em que os meninos são posicionados, ou que o Programa tenta posicioná-los, quero entender como constroem suas masculinidades, interpelados por estes discursos/práticas/vivências. Isso só é possível escutando-os.

(…) Quando as questões são desfocadas aparecem as construções normatizadas de condutas consideradas masculinas ou femininas. A exemplo do que pensam sobre os impactos do PBF sobre os homens e mulheres Paulo, 17 anos, diz: “Acho que as mulheres precisam mais(…) porque é com elas que os filhos ficam”. Perguntado se os filhos sempre ficam com as mulheres, respondeu: “É muito difícil os filhos ficarem com os pais… é difícil o pai assumir, na minha casa e na casa dos meus amigos, por exemplo, é assim, as mães ficaram com os filhos… então elas precisam mais por causa dos filhos”.

À mesma pergunta, (Jorge, 16 anos) respondeu “As mulheres cuidam mais do dinheiro… compram coisas… comida e material escolar pros filhos… são elas que recebem o dinheiro”. E (José, 16 anos) acrescentou, é muito mais difícil pras mulheres… os caras não comparecem”.

(…) Outra questão importante que aparece é o lugar de provedor dentro de uma sociedade de consumo, “ser homem é ser alguém na vida”, fala literal de 7 dos 16 jovens entrevistados e que já havia aparecido com estudantes do Ensino Fundamental. É interessante perceber que este projeto, de ser alguém na vida, apareceu em diversos momentos e contextos, rodas de conversas, atendimentos individualizados, abordagens com jovens em descumprimento da condicionalidade da educação. Há alguns anos, esta fala vem colada à necessidade de frequentar a escola, mesmo que não o façam, mesmo que tenham abandonado a escola. Para ser homem, é necessário ser alguém na vida.

Importante salientar que esta é uma fala exclusiva dos meninos; as meninas, quando projetam futuro, apresentam uma maior concretude, citam profissões possíveis, ou dizem não saber o que farão. Os meninos e jovens, no entanto, tem projetos mais difusos, mas em todos eles apontam a necessidade de ter acesso a bens de consumo, “Ser homem é ser responsável, se sustentar, sustentar a família, se um dia tiver, ajudar em casa, se virar”, (José, 16 anos). Ser responsável foi apontado pelos 16 entrevistados como a principal característica masculina.

Foto cedida por instagram.com/ismaeldosanjos/

Trecho 4:

Fazer-se, homem (ou mulher), parece precisar de muitos rituais, muitos códigos linguísticos e culturais. As ausências, as faltas, os silêncios ocupam espaços, são delimitados nas falas dos jovens quando apontam as dificuldades que sentem, principalmente em lares compostos por mulheres “Eu tive que aprender sozinho… não tinha com quem conversar sobre estas coisas de guri. Não podia falar sobre namoro, sobre como chegar numa guria com a minha mãe. Nem com meus colegas, que iam zoar… tomei muito toco”, (Sandro, 17 anos), mora com a mãe e duas irmãs, uma 2 anos mais velha e outra 5 anos mais moça.

Em algum momento todos me falaram sobre a barba, “Eu não tive ninguém pra me ensinar a fazer a barba, por exemplo” (Paulo, 16 anos). “Começaram a aparecer uns fiapos de barba e eu não sabia se tirava ou deixava, ficava sem jeito”. “Não sabia como fazer a barba, então no começo raspava a seco” (Pablo, 16 anos). “Se eu tiver um filho quero ensinar ele a fazer a barba, segurar o aparelho sem se cortar” (José, 16 anos). “Tem coisas que não dá pra conversar com minha mãe ou irmã… faz falta um pai, eu queria que minha mãe comprasse um aparelho de fazer a barba e ela não entendia, dizia, mas tu só tem uns pelos, não precisa” (André, 17 anos).

A figura paterna é marcada pela falta, a ausência. Somente 2 dos 16 entrevistados moram com o pai, 5 relatam ter algum contato esporádico, 2 tem contato próximo e 7 não têm, e expressam não desejar contato. A desresponsabilização dos homens em lares mais pobres não só é percebida pelos jovens, como é criticada “Meu pai não é modelo… sei lá… eu não quero ser como meu pai, se um dia eu tiver um filho, vou criar… se tiver que passar dificuldade, azar, passo junto” (Sandro, 17 anos). Além das contundentes falas sobre o projeto de se tornarem adultos diferentes dos pais e companheiros que as mães têm, ou tiveram, chama a atenção que 7 dos entrevistados não têm a paternidade como projeto de futuro “Eu não quero ter filhos, nunca pensei nisso… sei lá… não sei o que um pai faz…”(André, 17 anos). “Eu não quero ter filho, não agora, talvez um dia, quando tiver meu emprego e minha casa, mas sei lá… acho que não… é muita responsabilidade”. (Jonas 17 anos).

Trecho 5:

São muitos os modos de perceber os caminhos pelos quais setores importantes da sociedade brasileira desconfiam, historicamente, das medidas de combate à pobreza, por considerar os pobres como sujeitos que deslizam entre a esperteza refinada, a ingenuidade tola ou, a deliberada manobra para viver sem trabalhar. Tais atributos são sempre colocados em contraposição aos sujeitos que “efetivamente trabalham” e que não dependem do Estado para viver. O discurso da meritocracia é evidente nessas construções. Foi importante perceber que o constrangimento por ser beneficiário apareceu em muitas entrevistas.

Há uma profusão de imagens associadas a falas e posturas que enunciam um certo lugar, uma posição discursiva de superioridade e distanciamento completo entre os que não recebem e os que recebem o Bolsa Família. Ultrapassa preconceitos de classe. Não se trata, aqui, só da pobreza, e sim, dos beneficiários da política. A violência dos discursos os coloca na posição de devedores da sociedade.

A pobreza, nestes discursos, é apresentada fundamentalmente como uma decorrência da vontade, ou falta de vontade para trabalhar. O problema é posto nos pobres e nas suas condutas, como se fossem detentores da pobreza e a utilizassem como artifício para permanecerem no ócio. Esta desconfiança alcança a Política, que é constantemente desqualificada.

(…) Dentro da escola, uma das formas mais comuns de visualizar quem são os/as alunos/as beneficiários/as do Programa Bolsa Família, é através de algum tipo de marcação nos cadernos de chamada. A intenção é de chamar a atenção dos/as professores/as sobre a frequência dos/as beneficiáros/as.

Porém a marca no caderno parece ultrapassar as folhas deste, é uma marca que acompanha a trajetória escolar destes alunos, que relatam ter receio de serem chamados atenção em sala de aula por que suas faltas podem ocasionar o “corte” do benefício, como traz Marcos, 16 anos: “é chato quando algum professor chama a atenção porque faltei e vai dizendo, tua mãe vai perder o Bolsa Família (…) sei lá, não é legal, eu não queria precisar desse dinheiro” … “Lá na vila (referindo-se à escola de Ensino Fundamental em que estudava), todo mundo recebia (o benefício) mas aqui, só alguns, aí é chato esse troço, não precisava chamar a atenção.” Fica claro o constrangimento na nova escola, com colegas cujas condições sociais e financeiras são diferentes e a relação com os/as professores/as é mais distante.

Leia também  Como recomeçar uma vida do nada? | ID #24

(…) Por fim escolho algumas falas de Antônio (17 anos), um jovem alto, negro e com aparência de adulto, estudante do noturno, chegou para a entrevista um tanto desconfortável. Aos poucos percebi que assumia uma postura constrangida, evitando o contato visual e parecia espantado que alguém quisesse ouvi-lo e ainda mais que fosse utilizar o que me dizia para um trabalho de Pós-Graduação.

“- Mas e isso que eu tô te contando serve pro teu trabalho?”. Quando perguntei sobre como se sentia recebendo o benefício, fez várias considerações: “Não é legal viver de bolsa família… além do que a gente vive mal, ganha pouco”. Tu já sofreste algum tipo de preconceito? “Já”. E pode me contar? “Já foi de todo tipo… dizem, tipo, tu é um marmanjo, vai trabalhar… tem gente lá na vila que zoa… vizinhos… até o pastor da igreja…” E como tu te sentes? Eu tô tentando emprego, mas só consigo bico… é que eu sou muito grande, então o pessoal pensa que eu sou mais velho. Eles não achavam errado quando eu era pequeno.” Antônio reforça que parece mais legítimo que a política seja voltada para crianças e mulheres. Já, dos adolescentes homens, espera-se que encontrem formas de subsistência.

Os discursos de ódio voltados contra beneficiários e contra este recorte ainda mais específico, interpela, produz efeitos e constantemente reposicionam estes meninos num lugar menos valorizado. Não há dúvida que ser visto com desconfiança gera sofrimento e, de alguma forma, interfere diretamente na posição de sujeito que estes meninos ocupam ou são colocados.

Foto cedida por instagram.com/ismaeldosanjos/

Entrevista com Rosilene Mazzarotto

1) Você diz em seu projeto que, inicialmente, tendia a pesquisar sobre a perspectiva feminina de gênero, mas acabou atraída a se aprofundar na perspectiva masculina (que, inclusive, é menos pesquisada). Por que motivos você acha que a construção de masculinidade dos meninos atendidos pelo PBF é um tema importante a ser estudado?

Como pesquisadora, profissional e mulher, durante muito tempo, usei a lente do gênero para tentar entender as diferentes questões das mulheres, olhando somente para as mulheres.

Quando decidi pelo mestrado e busquei a orientação do professor Fernando Seffner, um pesquisador das masculinidades, dei-me conta da significativa quantidade de estudos de gênero sobre as relações que produzem desigualdades sociais e subordinação da mulher, bem como, das escassas pesquisas, principalmente em relação ao PBF, que estudam as masculinidades.

O PBF é uma importante política pública, que visa distribuição de renda e alcança milhões de brasileiros. Diversos estudos, que precedem o meu, demonstram que o gênero organiza o Programa. Há anos acompanho a Condicionalidade da Frequência Escolar em Porto Alegre/RS e percebo um significativo aumento da escolarização de meninas e meninos, maior valorização da educação, saúde e assistência por parte das famílias e, acima de tudo, um empoderamento feminino, garantido pela titularidade do benefício, preferencialmente, às mulheres. Parto da premissa de que não é possível estar imerso, por tantos anos, por uma biopolítica deste tamanho e não ser atravessada/o por ela. O PBF, ao organizar suas condicionalidades através do gênero, também ensina gênero e também produz gênero.

Espero que a pesquisa sobre as construções de masculinidades dos jovens inseridos no Programa, localize singularidades, conflitos e contradições, que possam gerar propostas de superação e rompimento com os estereótipos e ultrapasse o modelo binário de gênero atuante na Política.

2) Sua dissertação aborda uma perspectiva crítica do PBF, mas você também reconhece e vivencia, na prática de coordenadora, a importância de sua existência no combate à pobreza e possibilidade de acesso a condições mínimas de vida. O que você diria para que quem leia nossa matéria ou sua dissertação não confunda o diagnóstico de um problema com uma possível defesa do encerramento do programa?

Estudar o PBF numa perspectiva crítica não significa buscar problemas e permanências que o desqualifiquem enquanto estratégia de diminuição da abissal diferença de acesso aos mínimos sociais que caracteriza a sociedade brasileira. Pelo contrário, parto, como pesquisadora e Coordenadora da Condicionalidade da Frequência Escolar, do mérito do Programa em relação à distribuição de renda e do relativo empoderamento feminino que o seu formato propõe. Para responder a esta questão, é preciso discutir um pouco mais este empoderamento e seu caráter antagônico. Ao mesmo tempo em que reconhece que, de fato, as mulheres pobres têm assumido a responsabilidade com o cuidado e o sustento da família, o Programa, acaba por reforçar um lugar/fazer feminino do cuidado e agrega às mulheres a responsabilidade pelo sustento, que tradicionalmente, era esperado dos homens.

Numa perspectiva crítica, este empoderamento é questionado porque não causa um deslocamento do feminino e masculino e do que é esperado de cada um, e sim reforça “um” lugar de mulheres e “outro”, de homens.

Defendo que o Programa precisa ser repensado, não para diminuir sua abrangência e sim, para que não produza efeitos, por certo indesejados quando da sua concepção. Enquanto política tem possibilidade de provocar novas relações, mais sadias e solidárias.

3) Você traduz uma fala poderosa de Michael S. Kimmel sobre as masculinidades hegemônicas:

A definição hegemônica da virilidade é um homem no poder, um homem com poder e um homem de poder. Igualamos a masculinidade com ser forte, exitoso, capaz, confiante e ostentando controle. As próprias definições de virilidade que temos desenvolvido na nossa cultura perpetuam o poder de uns homens sobre os outros e que os homens têm sobre as mulheres (Kimmel, 1997, p. 3, tradução da autora).

Ao mesmo tempo, as referências de masculinidade que os meninos têm na prática são de que "homens pobres não são confiáveis, não se responsabilizam pela família, não sabem gerenciar recursos e não se colocam como provedores". Na sua percepção, como esses dois extremos da masculinidade (a bem sucedida e a despida de poder) coexistem na formação dos meninos entrevistados?

Certamente coexistem, assim como nas construções dos meninos que vivem outras realidades sociais e familiares. Diariamente, a virilidade de um homem, é apresentada pela mídia e reforçada pelos diferentes discursos como poder de ser/fazer-se/ter.

Quando se é um jovem pobre, negro, beneficiário do PBF, morador da periferia e estudante da rede pública de ensino, este lugar propagandeado, idealizado e almejado, parece mais distante. Aparece nas falas dos jovens entrevistados como um por vir, um lugar/ser que precisa ser alcançado, construído através de uma ruptura com as trajetórias que seus pais fizeram. Tem me chamado a atenção um outro binarismo. As masculinidades de homens pobres, pouco confiáveis, que se desresponsabilizam com os filhos e as famílias, em oposição ao modelo de homem de/no controle.

Até este momento da pesquisa, parece-me que os jovens desejam construir pontes entre estes dois modelos.

Escolhi para a produção de dados dois grupos de alunos com trajetórias escolares diferentes. O primeiro, com idades de 16 e 17 anos, cursando o Ensino Médio, com uma história escolar dentro do esperado para a faixa etária. O segundo, jovens também de 16 e 17 anos, porém, estudantes do Ensino Fundamental, portanto com histórico de fracasso escolar, reprovação, abandono e retorno ou continuidade na EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Grande parte dos alunos do primeiro grupo faz uma aposta muito positiva na educação como possibilidade de alavancar o futuro. Com projetos bem alinhavados, buscando a continuidade dos estudos com uma boa nota no ENEM, financiamento do PROUNI ou escolas técnicas. Já no segundo grupo, grande parte dos alunos têm projetos difusos, como o "ser alguém na vida", obtendo algum sucesso em um movimento feito pela "sorte", apostam pouco na educação.

Os dois grupos têm poucas referências adultas, quer na família, círculo social, ambiente de trabalho/estágio, ou escola. Por outro lado, um número considerável de jovens relata um cotidiano muito difícil e apresenta uma capacidade de organização e superação que precisam ser levadas em consideração.

E aqui quero pensar o conceito de agência: a possibilidade de muitos jovens retirarem, de todas as adversidades que vivem, recursos para modificarem suas realidades. Penso que em relação às suas masculinidades também possa ser assim. Entre o modelo que rejeitam e aquele insistentemente alardeado como o "único modelo", outras construções acontecem. Estas também são foco da pesquisa.

A ponte é imagem metafórica que construí a partir das conversas. Parece-me que percebem dois modelos completamente isolados e sem intersecção. Descolam, em suas falas, uma masculinidade da outra, como se "o homem" fosse uma construção única, sem inconstâncias, impermanências e atravessamentos. Questionam pouco a assimetria de gênero e se desejam como provedores, autônomos, assumindo uma atribuição que tradicionalmente tem sido atribuída aos homens. Mas que, na prática, vemos que homens pobres, por sua condição de vulnerabilidade, nem sempre conseguem assumir.

A juventude e a aproximação com a maioridade é um período de muitas incertezas, para estes meninos significa também a exclusão do acompanhamento do PBF. Financeiramente isto impacta pouco a família, R$38,00, mas alguns meninos percebem também que não terão mais o acompanhamento da rede de proteção.

4) Você pontua em alguns trechos que o PBF carece, de certa forma, de estruturas complementares, que possibilitem a construção de projetos de vida pelos atendidos. Como esses novos projetos ou possibilidades poderiam impactá-los?

Creio que desenvolvi na resposta acima boa parte desta. O que mais me preocupa é perceber que não consideram a escola como uma facilitadora, como rede de apoio. A grande maioria não percebe ter uma rede de apoio (será que têm?). Escola, CRAS, família, trabalho não são percebidos ou realmente não atuam como apoio, como suporte.  

Os meninos que estão frequentando o Ensino médio, como já disse anteriormente, depositam bastante confiança na continuidade dos estudos. Outra parte segue na escola, mesmo acumulando fracassos escolares, enquanto que uma terceira parte desistiu da escola. A pesquisa que conduzo mostra que estes três grupos têm uma rede de apoio muito frágil, mesmo sendo beneficiários do PBF. É possível afirmar que as condicionalidades recaem com muito mais força sobre as/os beneficiárias/os do que sobre o poder público. As/Os beneficiárias/os têm o dever de cumprir integralmente, mas o Estado pode ofertar parcialmente.

Uma rede de apoio consistente pode impactar a vida dos jovens desde pensar projetos possíveis a curto, médio e longo prazo, até a sua concretização. Vou dar um exemplo simples. O poder público, assim como as empresas privadas, abrem inúmeras vagas para estágios remunerados. Uma simples decisão política pode criar cotas, vagas para jovens beneficiários de programas sociais, meninas e meninos que, por sua vulnerabilidade, têm maior dificuldade de organização, acesso e permanência em espaços de trabalho. Ao mesmo tempo é preciso que a rede funcione para que possa, rapidamente agir no acompanhamento escolar e laboral destes jovens. Em muitas famílias, as/os  jovens que hoje têm 16 e 17 anos são os primeiros membros que têm contato com o mundo formal do trabalho e estão a mais anos na escola do que seus pais estiveram. Precisamos criar oportunidades e ações que promovam equidade, as desigualdades não serão superadas sem ações com este objetivo.

5) Há uma certa expectativa estrutural de que os meninos repitam o ciclo dos homens adultos, ao mesmo tempo em que eles querem "ser alguém na vida", afastando-se do pai ou outros companheiros das mães. Quais passos (individuais ou coletivos) você percebe que podem ajudá-los a romper esse ciclo de forma positiva, a partir deles?

Todas as políticas públicas apostam fortemente na educação como aporte e alternativa para a superação das desigualdades. Não há dúvida de que a educação é central para a emancipação individual e construção coletiva de relações mais solidárias. O problema que vejo, no momento atual, em relação aos beneficiários do PBF, é que a realidade da maioria de nossas escolas públicas, cada vez mais precarizadas, não oferecem condições para a construção de projetos de vida.

Além disso, essa ideia de que o menino que se esforçar, estudar, suportar a miséria e concluir o ensino médio, fará uma trajetória linear e conseguirá um emprego que lhe proporcionará melhores condições de vida, não se sustenta numa sociedade onde a maioria das/os trabalhadoras/es não têm o mínimo para viver.

Diminuir desigualdades, quer sejam de gênero, classe, raça, geração ou qualquer outra, exigirá (re)pensar e (re)construir políticas públicas. Não há caminho natural ou progressivo. Não há diminuição de desigualdades sem desconstrução.

Imaginar que, todos os jovens, conseguirão romper com estes modelos de masculinidades que negam, porque os reconhecem descomprometidos, e assim o desejam, numa busca individual, seria, no mínimo, ingênuo.

O Programa precisa romper com o normalizado nas relações de gênero.

6) Tanto como pesquisadora e como coordenadora de uma das condicionalidades do PBF em Porto Alegre, você crê que a realização de alterações no programa poderia mudar esse panorama de efeitos indesejáveis? Que alterações você sugeriria? Acredita que retirar o gênero da posição de marcador de referência seria positivo ou negativo?

O PBF é uma política gigantesca, que põe em movimento uma engrenagem que atravessa o país, entra na casa e no corpo de cada beneficiário através das condicionalidades. É interessante perceber que se pode creditar o sucesso do Programa a este modelo que privilegiou as mulheres como responsáveis familiares. Mas acredito que esta política possa dar maior visibilidade a outras relações/composições familiares, alargar e ampliar a discussão sobre família, tanto na sua constituição como na importância dos laços que se estabelecem dentro dela. Tratar a concepção e a contracepção como uma questão familiar e não como um problema das mulheres. Colocar o gênero no centro da discussão, questionando a fixidez do lugar/fazer dos homens e das mulheres. Quanto às/os jovens, é fundamental que os equipamentos de educação, saúde e assistência, as/os auxiliem a construir projetos de vida, minimamente viáveis.

Acredito que o Programa, pela sua abrangência e organização, poderia colocar-se como proponente de transformações do conceito de família, ampliando, pluralizando e validando laços afetivos, constitutivos de relações mais amorosas e potentes. Como trabalhadora/gestora e pesquisadora, assumo o compromisso de (re)conhecer os avanços, mas também, de apontar fragilidades e possibilidades.

Vivemos um momento de desmonte e ataque às políticas públicas. Pensar em ampliação de abrangência e atendimento, pode parecer e, talvez seja, utópico. Mas a pesquisa é uma potente ferramenta para entender como estes jovens se pensam e como se poderiam pensar de forma diferente.

Mecenas: Natura Homem

Natura Homem acredita que existem tantas maneiras de exercer as masculinidades quanto o número de homens que existem no mundo. Apresentar estudos acadêmicos sobre as masculinidades para um público maior é uma maneira de ampliar o diálogo sobre o que está acontecendo com os homens.

Seja homem? Seja você. Por inteiro.

Natura Homem celebra todas as maneiras de ser homem.

Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas. Siga-o no <a>Instagram</a>."