O Reino do Brasil começou oficialmente a existir em 16 de dezembro de 1815, com capital no Rio de Janeiro.
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O Brasil nasce graças à Revolução Francesa e Napoleão
No começo do século XIX, Napoleão estava varrendo a Europa com suas tropas, disseminando os ideais da Revolução Francesa. Portugal, militarmente fraco, tentou se manter neutro até o último momento, mas não estava enganando ninguém — sua aliança militar com a Inglaterra, a grande inimiga de Napoleão, é até hoje a mais antiga ainda em efeito, desde 1373.
Quando Napoleão finalmente invadiu Portugal, o príncipe-regente Dom João VI executou uma manobra política brilhante: ao invés de enfrentar o exército mais poderoso que a Europa já tinha visto, transladou sua Corte de malas e cuias para o Rio de Janeiro, que passou a ser a capital do Império Português.
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Brasil, independência na prática
Já podemos traçar a autonomia do Brasil a partir de 1808, quando os portos são abertos para comércio com o mundo, as restrições sobre a produção industrial e agrícola são relaxadas, imprensa e universidade são permitidas, o Jardim Botânico e a Biblioteca Nacional são fundados, etc etc.
Apesar de ainda nominalmente colônia, o Brasil (e, em especial, a Corte, o Rio de Janeiro) na prática já contava com um aparato burocrático e institucional que o colocava muito acima de uma simples colônia.
Além, claro, de ser a capital de um Império que cobria os cinco continentes, do Brasil ao Timor-Leste, de Goa a Macau, de Angola a Moçambique.
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Dom João VI, carioca de coração
Homem de muito bom gosto, Dom João fez o que muitos turistas fazem até hoje: veio para o Rio de Janeiro para uma curta visita, se apaixonou e não quis mais sair.
Apesar da guerra na Espanha ainda durar até 1814 (dando origem ao termo “guerrilha”), os franceses são definitivamente expulsos de Portugal por tropas luso-britânicas já em 1811.
E nada de Dom João querer voltar.
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Redesenhando o mapa-múndi
Finalmente, com a derrota de Napoleão em 1815, acontece o Congresso de Viena, onde os vencedores (talvez seja melhor dizer os sobreviventes) da Era Napolêonica se reunem para decidir o que fazer da Europa.
Na prática, eram todos governos absolutistas e conservadores, tentando reverter os ventos liberais soprados pela Revolução Francesa.
Para quem viveu os anos imediatamente posteriores à queda do Muro de Berlim, é uma época histórica bem parecida: todo o mapa se reordena. Países se unem e se separam, somem e nascem.
Um dos países que nasce é o Reino do Brasil.
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Dom João VI: grande líder ou bunda-mole?
O pai de Dom Pedro I é uma das figuras mais controversas da história lusobrasileira.
Muitas pessoas portuguesas, ontem e hoje, criticam sua decisão de abandonar Portugal, mas a verdade é que a França teria invadido e ocupado o país de qualquer jeito. A diferença era apenas se a Coroa cairia também.
Ninguém pode criticar o instinto de sobrevivência de Dom João: a Era Napoleônica foi fatal para todas as dinastias monárquicas do continente europeu.
No Congresso de Viena, em 1815, a única sobrevivente das dinastias continentais era justamente a de Bragança, representada por Dom João, baixinho, militarmente fraco, um líder pelo qual ninguém dava nada, mas o único que malandramente conseguiu manter seu trono.
Até Napoleão admitiu, de seu exílio em Santa Helena:
“Dom João VI foi o único que me enganou.”
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Nossa primeira Chefe de Estado foi uma mulher louca
Fala-se tanto de Dom João VI, rei de Portugal, que muita gente não sabe que, ao chegar no Rio de Janeiro em 1808, ele ainda não era rei, mas somente príncipe-regente, governando em nome de sua mãe.
Maria subiu ao trono em 1777, como Maria I, e é considerada a primeira rainha reinante de Portugal — ou seja, que reinou de fato. Em 1792, porém, diante de alguns sinais de desequilíbrio mental, dezessete médicos a declararam incapaz de gerir o reino, que passou a ser governado por seu filho.
A partir daí, Dom João tornou-se o príncipe-regente e Maria I passou a ser conhecida, à boca pequena e para a História, como Maria, a Louca.
Décadas depois, na criação do Reino do Brasil, em 16 de dezembro de 1815, nossa Chefe de Estado ainda era a Rainha Maria I.
Só ano seguinte, ao falecer a mãe, Dom João VI finalmente sobe ao trono, depois de reinar na prática por vinte e quatro anos.
Nossa primeira Chefe de Estado, pasmem, foi uma mulher louca e incapaz.
(Algumas pessoas batedoras de panela provavelmente retrucariam que não fomos muito longe.)
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O que significa ser independente?
Mas o Brasil era mesmo “independente”? Afinal, ainda estava sob o comando da família real portuguesa.
A partir de 1815, o recém-criado Reino do Brasil está unido em condições de igualdade ao Reino de Portugal e ao Algarve, passando a fazer parte de um novo país, o também recém-criado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Então, se consideramos o Portugal de 1815 como um reino autônomo e independente (e por que não consideraríamos?), então, necessariamente, o Reino do Brasil de 1815 também era.
Na verdade, talvez até mais autônomo e independente do que o próprio Portugal, pois era aqui a capital do Reino Unido, sua Corte e sede administrativa de toda sua burocracia estatal.
Quem diz isso não sou eu, aqui, anacronicamente, do século XXI, mas as próprias pessoas portuguesas da época.
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Portugal tenta reverter a independência do Brasil
As pessoas portuguesas, após cinco anos como reino unido ao Brasil, sentindo-se inferiorizadas em relação à sua ex-colônia agora-capital, cansadas de esperar pela volta de um rei que parecia estar gostando demais dos trópicos, finalmente encheram o saco, fizeram uma revolução liberal e convocaram o equivalente a uma constituinte: pela primeira vez em sua história, Portugal deixaria de ser um país absolutista e teria uma constituição.
Ao rei Dom João VI, os liberais de 1820 deram a escolha:
Poderia voltar, jurar a constituição liberal ainda por escrever e se tornar o primeiro monarca constitucional do país.
Ou poderia continuar no Brasil e perder o trono.
Assim, muito a contragosto, Dom João VI deixou para sempre o seu querido Rio de Janeiro, deixando também malandras palavras imortais para seu filho, o príncipe-regente do Reino do Brasil:
Que se a separação fosse inevitável, que a ex-colônia ficasse antes para ele, ainda tudo em família, do que para algum aventureiro qualquer.
Foi o primeiro a jurar a constituição e, daí em diante, mandou muito pouco.
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Um príncipe rebelde
O novo governo português convocou também Dom Pedro para voltar e prestar esclarecimentos mas, pressentindo que seria destituído do cargo de regente do Brasil, ele foi para uma sacada do Paço Imperial, ali na Praça XV, e disse ao povo que, se era para o bem de todos e felicidade geral da nação, que ele ficava.
Nesse momento, em janeiro de 1822, apesar de ser príncipe-regente e príncipe-herdeiro, Dom Pedro estava em flagrante desobediência ao governo legítimo e constitucional de seu país: para todos os fins e efeitos, se convertera em rebelde fora-da-lei.
Depois disso, não tinha mais volta.
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Vilões daqui, mocinhos dali
Uma das ironias da historiografia é que os revolucionários liberais de 1820, apesar de mocinhos na História de Portugal, sejam os vilões da nossa.
Pois um dos principais projetos dos deputados constituintes, além de limitar os poderes absolutistas do rei, era justamente reverter o Brasil à sua antiga condição de colônia.
Como éramos um reino unido a Portugal, também enviamos nossos deputados à constituinte, mas estávamos em minoria e fomos voto vencido.
A Constituição de 1822, a primeira da história portuguesa, legítima e representativa, efetivamente revertia o Brasil à condição de colônia.
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A sabedoria de aceitar as coisas que não se pode mudar
Do ponto de vista português, tentar transformar o Brasil de novo em colônia era de uma inépcia política gigantesca.
Na época, praticamente toda a América Latina já estava independente. Ou seja, uma ex-colônia ibérica separar-se da metrópole e formar um novo país não era algo inédito ou inaudito, mas a verdadeira tendência política do continente na década anterior.
O Brasil era mais rico que a antiga metrópole, repleto de riquezas naturais e fortalecido por décadas de paz e crescimento.
Já Portugal estava fraco e empobrecido, começando a se recuperar de mais de uma década de invasões, ocupações, revoluções, convulsões: não podia se dar ao luxo de perder o Brasil.
Finalmente, é um lugar-comum da política que ninguém abre mão de direitos já adquiridos e já desfrutados.
Depois de catorze anos de independência prática e sete de nominal, era completamente impensável que o Brasil retornaria voluntariamente à sua condição prévia de colônia.
Caso o Brasil se recusasse, Portugal não tinha força militar para impor sua vontade.
Caso o Brasil se separasse, Portugal quebrava.
E foi o que aconteceu.
Mas as elites conservadoras do Brasil não queriam ser independentes.
Pelo contrário, morriam de medo que uma guerra de independência pudesse acabar se tornando uma revolução social, como aconteceu em várias repúblicas hispânicas, e ter como resultado insurreições escravas, indígenas, populares.
Se os liberais de 1820 tivessem sido apenas um pouco mais habilidosos politicamente, teriam reconhecido a impossibilidade de reverter o Brasil à colônia e buscado qualquer compromisso possível para manter a união dos reinos.
E não seria preciso muito: bastaria oferecer às nossas elites, sempre pusilânimes e gananciosas, direitos civis e liberdades comerciais o suficiente para fazer a incerteza de uma independência não valer a pena, e talvez Brasil e Portugal ainda continuassem unidos por décadas, até séculos.
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Uma independência conservadora
Todas as outras guerras de independência da América Latina, apesar de sempre capitaneadas pelas elites, envolveram componentes importantes de participação popular e de concessões significativas às massas, como reforma agrária e abolição da escravatura.
Eram lutas criadoras, para conquistar a independência e obter direitos nunca antes desfrutados.
Já a nossa luta foi literalmente conservadora, para conservar a independência e os direitos que já desfrutávamos.
Portanto, não é de espantar que, na falta de qualquer mudança estrutural, tenhamos fundado o Império branco-escravista mais conservador do continente e que tenhamos continuado a ser governados pelas mesmas elites conservadoras, gananciosas e pusilânimes.
Enquanto isso, ainda estamos esperando, entre outras coisas, pela reforma agrária que quase todas as repúblicas hispânicas fizeram na década de 1810.
Isso é que dá nascer em um país que passou, literalmente, de pai para filho.
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Esse é um texto descontraído e informal, para informar e divertir um público leigo. Naturalmente, tudo foi grosseiramente simplificado. Por exemplo, ainda não se usava a palavra “constituinte” no século XIX. Para saber mais, clique nos links ao longo do texto.
Para se informar mais sobre História do Brasil, existe uma vasta bibliografia disponível. Entre os meus autores preferidos estão os contemporâneos Sidney Chalhoub, Evaldo Cabral de Mello, Alberto Costa e Silva, Francisco Doratioto, José Murilo de Carvalho, Laura de Mello e Souza, Manolo Florentino, Katia de Queirós Mattoso, Lília Moritz Schwartz, Ricardo Salles, Keila Grinberg, Hebe Mattos, Boris Fausto, Emília Viotti da Costa, Durval Muniz de Albuquerque Jr, Paulo Cesar de Araujo e Nireu Cavalcanti, e os clássicos, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco, Celso Furtado, Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, entre outros.
Evito fazer recomendações negativas, mas recomendo evitar os guias politicamente incorretos de Leandro Narloch. O problema não são nem as incoerências e incorreções, mas a má-fé de apresentar fatos que todo mundo sabe e que estão em todos os livros de história (como que os povos originários também exploravam a terra e que as pessoas negras também possuíam, compravam e vendiam pessoas escravizadas) como se fossem uma grande novidade pela primeira vez revelada pelo indômito autor, lutando contra uma terrível conspiração do silêncio!
Cuba foi a outra grande nação latinoamericana conservadora e escravista, muito parecida ao Brasil. Para saber mais sobre Cuba no século XIX e suas semelhanças com o Brasil, recomendo que leiam meu livro A Autobiografia do Poeta-Escravo.
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