Recebi por Whatsapp. Em um grupo, dois, três, vários. Impressionante como se dissemina a informação, nesse caso uma radiografia de tórax. Todos analisando atentos, cada um com sua heurística de preferência. Partes moles sem alterações, caixa torácica normal, parênquima pulmonar de aspecto habitual, vias aéreas sem anormalidades. Epa! Cadê o coração que devia estar aqui?
Nem todos sabem, mas não é infrequente que médicos compartilhem imagens e fatos interessantes ou peculiares com seus pares, a fim de dividir conhecimentos e experiências. Radiografias, outros exames de imagem, valores de laboratório, alterações de exame clínico – sempre, é claro, com a autorização devida e resguardando a identidade dos pacientes e sua privacidade.
A última novidade compartilhada em muitos grupos foi a agora famosa radiografia sem coração. Alguns até demoraram a perceber a alteração, em mais uma amostra de atenção seletiva, similar ao excêntrico estudo dos gorilas na tomografia.
Não demorou para que aqueles mais ávidos pelo saber buscassem e compartilhassem seus achados. “Tin Man Syndrome”. Ou, se preferirem, “Ectopia Cordis Interna”. Esse é o nome da síndrome, raríssima. Logo chegaram tomografias mostrando o coração “escondido” na cavidade abdominal, quase que “de conchinha” com o baço. Em seguida, um desenho anatômico feito por Leonardo Da Vinci, no que deve ser o primeiro relato dessa entidade clínica.
Formidável. Mais um conhecimento na bagagem. Deve ser uma das doenças mais esquisitas do mundo, mas como dizem, “na Medicina e no Amor, nem ‘sempre’ nem ‘nunca’”.
Corta.
No dia seguinte, que na sociedade ocidental convencionamos chamar de 02 de abril, o site Radiopaedia – um grande banco online colaborativo de imagens médicas – trouxe a público novas evidências. Evidenciou-se, no caso, que o próprio site havia produzido e publicado a imagem no dia anterior, na edição anual do seu já tradicional “April Fool’s”.
Pegadinha. A síndrome nunca existiu. Todas as imagens – e a descrição da doença – foram brilhantemente produzidas pela equipe do site, que afirma que o gracejo anual é um projeto levado a sério por lá, ironicamente. Tin Man, lembramos depois, é o famoso Homem de Lata do clássico Mágico de Oz, do americano Lyman Frank Baum.
Duas coisas me chamaram a atenção nessa brincadeira.
A primeira é a elaboração da história e o teor quase poético do nome escolhido. No romance de 1900, o Homem de Lata procura um coração que já tem – ele deseja aprender a amar, sem perceber que, ao desviar dos animais pequenos com seus pés pesados, já demonstra capacidade afetiva exemplar. O paciente fictício, de forma análoga, tem o coração “escondido” em um lugar pouco usual.
A segunda coisa foi a facilidade com que nossos vieses cognitivos podem nos cegar, por mais que tendamos a acreditar que sabemos nos defender deles. Num contexto de pressão constante, competitividade e quase ausência de margem de erro como a medicina, não nos damos chance de não saber ou de nos colocar na posição de explorar e descobrir. Por conta disso, no afã de “estar por dentro”, acabamos às vezes por burlar nossos próprios filtros e aceitar dados inconsistentes.
Mais incrível ainda: uma vez que compramos a ideia, passamos a operar dentro daquela bolha de realidade, cristalizando a “informação” em segundos e dando solidez e seriedade a algo que acabamos de criar em conjunto. Tudo faz sentido e é coerente dentro dessa nossa alucinação, assim como em tantas outras que inventamos todos os dias. Não vemos, não sabemos que não vemos e ainda apontamos a “realidade” para o outro.
Depois do ocorrido, ficamos incrédulos por não termos percebido que o próprio site era a única fonte que citava a suposta síndrome. Agora parece óbvio.
Para os médicos, fica a lição de não nos levarmos tão a sério, seja na hora de reconhecer a própria ignorância ou agora, rindo da própria ingenuidade. Em um momento de tantos conflitos e ânimos exaltados, é um bom respiro rir de si mesmo.
Para quem não é médico, além das reflexões sobre os vieses cognitivos e bolhas de realidade (que se aplicam a todos), ficam duas lições. A primeira é de que os médicos também são humanos e falíveis. A segunda é de que nem tudo que lemos na internet sobre saúde é verdade.
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