Você é pai? Você comeu hoje?

Imagine que você está sentado à mesa, se alimentando, quando o telefone toca e sua filha de quatro anos diz do outro lado da linha: “papai, faz dois dias que estamos sem comer”. Você vai continuar a comer?

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Eu estava sentado no sofá da casa que Nestor divide com outros três refugiados no Jardim Três Marias, na zona leste de São Paulo, quando ele me fez as perguntas acima. Eu já o entrevistava há uma hora, e se a minha resposta (e provavelmente a de você que lê este texto) foi um não sem titubear, imagine qual foi o sentimento experimentado por esse pai que está há três anos — e milhares de quilômetros — separado de sua família.

Aos 42 anos e trabalhando como cuidador de idosos no Brasil, Nestor é formado em advocacia, jornalismo e teologia em seu país de origem, a República Democrática do Congo. Infelizmente para ele e para outros milhões de habitantes, a democracia está só no nome.

A RDC é rica em recursos naturais e tem a maior reserva de cobalto, essencial para baterias de smartphones e carros elétricos. No entanto, é o n° 176 de 188 no ranking do IDH

Colonizado pela Bélgica, o Congo conseguiu sua independência só em 1960, mas desde então experimenta uma série de conflitos e guerras civis. Foi palco de um combate patrocinado por Estados Unidos e URSS durante a Guerra Fria e, após trocas violentas de poder, foi comandado pelo ditador Mobutu durante mais de 30 anos. Quando Mobutu foi deposto em 1997, por um movimento comandado por Laurent-Désiré Kabila, esperava-se que o país vivesse uma trégua. Não foi o que ocorreu.

A guerra civil recomeçou em 1998 e, quando Kabila foi assassinado, em 2001, seu filho Joseph assumiu o poder. Convocou eleições em 2006 e foi reeleito em eleições cercadas por suspeitas de fraudes. Desde 2016, quando seu segundo mandato chegou ao fim, Joseph Kabila tem se recusado a deixar o poder, mesmo com uma reprovação de 8 em cada 10 congoleses.

Estima-se que, nas últimas duas décadas, os confrontos resultaram na morte de aproximadamente 6 milhões de pessoas. É o conflito mais sangrento desde a 2.ª Guerra Mundial. Ao todo, são mais de 200 grupos rebeldes armados. A ONU calcula em 2,7 milhões o número de pessoas que foram obrigadas a abandonar suas casas, e em 450 mil o montante de refugiados em outros países.

Por conta de sua atuação como apresentador em um programa de TV, Nestor precisou se tornar um desses expatriados.

Contratado em 2005 pelo canal de televisão Horizon 33, Nestor se tornou o âncora de uma atração de debates políticos, chamado “Election”. Duas vezes por semana, especialistas convidados falavam sobre a situação do país e respondiam a perguntas populares. Em conjunto com o cargo de diretor administrativo e financeiro em um escritório de advocacia, esse trabalho mantinha a família de Nestor morando no Gombe, um dos principais bairros da capital Kinshasa.

Atento e preocupado depois de pouco mais de três anos no ar, sentiu a situação política se agravar durante a polêmica reeleição de Kabila, em 2011 (organismos internacionais constataram muitas irregularidades no pleito e houve até a aprovação de uma emenda constitucional que impediu a realização de um segundo turno). “Se você fala de política na minha terra, você tem que ficar muito alerta. As pessoas podem te pegar facilmente”.

Quando seu chefe lhe pediu a carteira do trabalho, ficou preocupado. Pouco depois, enquanto estava dirigindo, percebeu que um carro virava junto com ele em qualquer lugar que entrasse. Resolveu acelerar além da conta para entender se estavam mesmo lhe seguindo, e estavam. Decidiu parar com o jornalismo.

“Eu pensei que, se eu parasse com o programa, eles iam compreender que eu não estava mais sendo um problema político. Mas a situação continuou”.

A perseguição a Nestor e sua família

Ele e a família se mudaram para o bairro de Kimbanseke para recomeçar, mas foram reconhecidos por uma equipe de mulheres apoiadoras de Kabila. “A gente sabe que você xinga nosso presidente”, elas gritaram. Depois, a situação se agravou. Em 12 de fevereiro e 30 de junho de 2012, a visita foi dos militares.

A equipe do chefe de segurança de Kinshasa, Célestin Kanyama — conhecido pela população sob o apelido “Espírito de morte” — bateu à porta da casa. “Eles chegaram e ficaram me procurando. Eu falei para minha mulher para descer e abrir a porta. Enquanto isso tirei o ar condicionado e entrei pelo buraco da ventilação, que levava à casa do vizinho. Enquanto eles entravam lá, eu, que conhecia o bairro, fugi”.

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Eles pegaram o passaporte que usava para viajar, os diplomas, o computador que usava no programa, o dinheiro que estava no cofre e quase todos os seus documentos. Ciente de que sua família também estava correndo perigo, Nestor passou a viver na clandestinidade, morando longe de sua família (a mais nova nasceu durante esse período) e sem informar seu endereço nem aos colegas do escritório de direito.

Após um grande período de incertezas, um amigo da Igreja, com fortes ligações oficiais, o aconselhou a sair do Congo. “Eu falei com esse amigo que teria que deixar mulher, minha filha pequenininha com um ano. Eu não queria sair do país”. Até que chegou um momento em que minha esposa disse: "eu não quero perder você. Vai!".

Como teólogo e pastor, Nestor havia sido convidado para pregar em Curitiba, em uma Igreja Quadrangular, mas deixara a viagem para depois. Os militares não sabiam, mas, por conta disso, ele tinha um passaporte reserva (para quando o anterior ficasse cheio) com um visto da embaixada do Brasil. Comprou as passagens, avisou que estava de saída já em seu último dia de escritório e veio para o país sem falar uma palavra de português.

Foto que fiz do Nestor, em São Paulo. Ele está determinado a trazer sua família ao Brasil

“Eu pensava que, no momento em que eu saísse, minha família poderia viver bem. Minha mulher e minha mãe, que haviam se refugiado nas montanhas, voltaram para o centro da cidade para continuar trabalhando. Mesmo assim, os militares foram visitar nossa casa mais duas vezes”. À milhares de quilômetros de distância, Nestor foi acusado de ter organizado e ter sido visto em uma manifestação contra Kabila.

“Colocaram meus dois irmãos mais novos, que ajudavam minha família e trabalhavam com contabilidade, na cadeia”. Eles perderam os empregos e, agora sem dinheiro, a família voltou a se esconder na periferia da capital. “Se você perdeu um trabalho, não está fácil ganhar outro. Eles estão vivendo em um país em que as pessoas não têm direitos. O que eles vão fazer?”

Depois de seis meses no Brasil, Nestor conseguiu o emprego como cuidador de idosos e passou a tentar economizar dinheiro. O primeiro objetivo era bancar a vinda da família para cá, mas, com a situação se deteriorando, tenta enviar o que sobra do salário que recebe para ajudá-los a comprar comida.

Acostumado a receber notícias da família pelo whatsapp, Nestor sentiu a situação se agravar depois que a filha mais nova ligou durante a madrugada relatando barulho de tiros em uma das ações militares que têm matado dissidentes durante a repressão a protestos. Por conta da violência, irmãos, esposa e as três meninas (de 15, 9 e 4 anos de idade) ficaram uma semana sem sair de casa. “As outras tentam não me preocupar além da conta, mas eu conheço a verdade pela pequenininha. Ela pediu para que eu a protegesse:

"Papai, eu não quero nada. Não quero comida, só quero estar com você onde você está".

Com a ajuda generosa de uma amiga, Nestor conseguiu comprar novos passaportes para a esposa e suas filhas. Com os documentos em mãos, agora a luta é para conseguir os vistos e comprar as passagens.

Nestor entrou com o pedido de reunião familiar em fevereiro de 2018, e no início deste mês de abril, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) enviou a solicitação para o Ministério das Relações Exteriores. Enquanto espera, aflito, tenta levantar os cerca de 12 mil reais necessários para as passagens.

Sua história chegou até mim contada por um amigo, Gustavo, quando ele decidiu pedir demissão do trabalho para conseguir resgatar o FGTS.

Mas além dos 5 mil reais a que teria direito serem insuficentes, como conseguiria oferecer condições básicas para a manutenção da família no Brasil sem um emprego?

Assim, esse nosso amigo em comum decidiu criar uma vaquinha para tentar levantar o dinheiro necessário. Eu e outros amigos nos comprometemos a ajudar, mas, conhecendo o alcance do PapodeHomem e o viés benéfico que muitos enxergam nessa comunidade, decidi estender o pedido de ajuda a vocês.

Vamos ajudar um pai, refugiado político, a se reunir com sua família? Acesse o link acima e faça uma doação.

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajude-um-pai-a-resgatar-sua-familia

Qualquer valor é mais do que bem-vindo.

Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas. Siga-o no <a>Instagram</a>."