Nós, humanos, somos monogâmicos? É da nossa natureza trair? Se ser fiel é fácil, por que a traição é o único pecado que merece dois mandamentos?
Eis os clássicos 10 Mandamentos, retirados da Wikipedia:
“Eu Sou o Senhor, o teu Deus
Não terás outros deuses além de mim
Não farás para ti nenhum ídolo
Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus
Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo
Honra teu pai e tua mãe
Não matarás
Não adulterarás
Não furtarás
Não darás falso testemunho contra o teu próximo
Não cobiçarás (a mulher do teu próximo)
Não cobiçarás (a casa do teu próximo)”
Monogamia é rara
Link YouTube | “We can’t do this!” – Cenas do filme Match Point
Fato, ser fiel não é fácil. Claro que você pode achar que é, e pode até ser, mas no seu caso. Fidelidade é um grande tabu em nossa sociedade, extravasada em mandamentos, punições severas a infiéis – de pedradas nelas a “se pego, mato” – e ficções cativantes nas quais amantes roubam a cena.
Afinal, somos animais monogâmicos? Socialmente sim. Em grande parte das culturas modernas as famílias giram em torno de um homem e uma mulher; poligamia é uma exceção. Agora, a história biológica diz outra coisa…
Já vimos nos textos anteriores que a estratégia reprodutiva de mais sucesso em animais que se reproduzem em pares envolve algumas escapadas de cerca. Homens vão ter um maior sucesso reprodutivo se conseguirem ter filhos com várias mulheres e mulheres terão mais sucesso se tiverem filhos com homens que possuem uma melhor qualidade genética, que não necessariamente estarão disponíveis ou serão seus companheiros.
Nossa história evolutiva se deu neste contexto, no qual uma certa infidelidade compensava. Mas somos uma espécie cultural e, como vários comentários gostam de me lembrar, não somos governados apenas por nossos instintos. Então o que nossa cultura nos diz?
De 185 sociedades estudadas por Clellan S. Ford e Frank Beach em 1951, 29 estipulavam a monogamia e menos de um terço delas impunha fidelidade restrita. Nas outras 154, o homem podia ter várias mulheres (poliginia) desde que pudesse sustentá-las. Quer uma segunda opinião? George Murdock, antropólogo de mão cheia, pesquisou 238 sociedades diferentes para seu livro Social Structure (1949). Encontrou a monogamia como sistema único de relacionamento em 43 delas. Monogamia é rara.
Em boa parte das sociedades, passadas ou recentes, poder e riqueza eram sinônimo de mulheres. Os líderes tinham direito a grandes haréns, e o resultado disso para Gengis Khan nós já conhecemos.
Mas nós evoluímos culturalmente, escrevemos e lemos livros, desenvolvemos tecnologias e abrimos mão destes hábitos bárbaros. Não matamos mais uns aos outros, e compreendemos o valor da fidelidade, certo?
Os duros fatos
Vou deixar a especulação costumeira e partir para números concretos. Conhece o conceito de paternidade discordante? Trata-se de uma criança que não é filha biológica de seu pai, ou melhor, do marido da sua mãe. A forma mais direta de saber se houve uma traição. Não só houve uma relação como ela resultou em um filho, ou seja, é uma estimativa bem por baixo de quanto as mulheres traem – e não vejo razão para pensar que os homens são diferentes.
Ah, claro! Estava me esquecendo dos números: até 30% dos filhos são discordantes. Os números variam de acordo com região e tamanho de amostra, de 0,8 a 30%, muitos apontam para algo entre 3 a 4%. A ponto de isso ser um problema em clínicas de aconselhamento familiar.
E veja: não estou falando de laboratórios que fazem exame de paternidade, onde simplesmente pelo fato de estarem desconfiados já se espera que haja um número maior de discordantes. Falo de clínicas que testam o DNA dos pais e dos filhos em busca de possíveis doenças que podem ser tratadas ou evitadas com antecedência, o tipo de lugar onde só se vai quando se tem certeza de ser pai.
Imagine o médico falando: “Não se preocupe, apesar do senhor ter tal e tal problema genético, seu filho não herdou nada disso”. Afinal, o exame foi para doenças; o teste de paternidade foi apenas um bônus um tanto dolorido. 😉
Com as novas tecnologias fica ainda mais fácil de trair e ser descoberto. Redes sociais como Facebook já são mencionados em pelo menos 20% dos processos de divórcio no Reino Unido, na maioria dos casos por “conversas sexuais inapropriadas”. Esta infidelidade é nova ou sempre esteve presente mas não tínhamos como saber antes? Como um site para promover traição pode prosperar se os clientes não traem?
Podemos ser monógamos sociais, nos casarmos com apenas um companheiro(a) e jurarmos ser fiéis. Mas não nos comportamos de acordo: nossa monogamia biológica é um tanto quanto utópica ainda. Até onde aquele casa e separa de atores, empresários, políticos e outros não é uma poligamia serial?
Notem que não estou dizendo que isso é bom ou ruim, não é porque relações extra-conjugais são comuns que não dói descobrir ou é OK fazer. Mas fingir que somos fiéis sempre e não discutir o assunto é tapar o Sol com a peneira, e não é de hoje.
Especulação do autor
Se não somos monógamos biológicos e nem na maioria das outras culturas, por que a sociedade ocidental é tão presa a ela?
Porque não funcionaria de outra maneira. A ideia de ter várias mulheres pode parecer legal, até ser posta em prática, já que dificilmente você teria uma (e eu também). A matemática é simples. Na esmagadora maioria das sociedades onde há poligamia, ocorre a poliginia, um homem com várias mulheres. Quantas mulheres? Quantas você puder sustentar. Para cada homem rico com 10 mulheres, sobrariam 9 outros homens sem mulher nenhuma.
Segue-se aquela distribuição de riqueza: poucos com muito e muitos com pouco ou nada. O que, portanto, impediria um homem solteiro – sem mulheres, filhos e mais nada – de se vingar de quem tem mais? Exatamente: nada. Quando uma sociedade impõe a monogamia, por mais que não seguida a risca, garante a todos o direito a uma mulher.
Por mais f*dido que você esteja, tem direito a sua mulher, só sua. Uma forma bem direta e eficiente de manter milhões de pessoas unidas em um mesmo local de maneira civilizada.
Agora, por mais que isso seja ou não natural, antes de fazer qualquer coisa, não se esqueça do princípio de reciprocidade. Não faça com os outros o que não quer para você. 😉
Fontes:
Barash, David P., and Judith Eve Lipton. O Mito da Monogamia. Editora Record, 2006. [Este livro foi base para toda a série “A evolução do cafajeste”, recomendo muito. Acessível, completo e sem julgamentos.]
Bellis, M., K. Hughes, S. Hughes, and J. Ashton. “Measuring paternal discrepancy and its public health consequences.” Journal of Epidemiology and Community Health 59, no. 9 (September 2005): 749-754.
Anderson, Kermyt G. “How Well Does Paternity Confidence Match Actual Paternity? Evidence from Worldwide Nonpaternity Rates.” Current Anthropology 47, no. 3 (June 1, 2006): 513-520.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.