E se eu dissesse que um menino doce e inteligente de 12 anos, recém chegado da Bolívia, mora em uma casa de apenas 90m² no centro de São Paulo com mais 27 pessoas, entre parentes e desconhecidos? Que essa casa velha e úmida mal comporta todas as beliches cobertas com roupas de cama maltrapilhas, porque tem que ceder espaço para colunas babilônicas de tecidos e máquinas de costura?
E se eu dissesse que esses 28 trabalham cerca de 13 horas quase ininterruptas por dia, no mesmo lugar em que moram e comem e vão ao banheiro e dormem e acordam e começam tudo outra vez, por R$350,00 mensais?
E se eu dissesse ainda que todos os 28, por não terem como pagar pela casa velha e pela comida úmida, contraem dívidas absurdas e infindáveis com o indivíduo que os contratou, e, por isso, tem seus passaportes e pertences apreendidos até que o pagamento venha?
E se eu dissesse que quem financia isso tudo é você?
Quantos escravos trabalham pra você?
Em abril do ano passado, a Anna Haddad veio ao PapodeHomem para falar sobre o trabalho escravo no mercado da indústria têxtil no Brasil.
Abrindo o leque, temos essa informação bem pesada. No final do ano passado, foi divulgado pela ONG Walk Free Foundation — de acordo com números do Índice de Escravidão Global, que o Brasil tem 200 mil pessoas em situação de trabalho escravo.
Em sua primeira edição, de 162 países, a pesquisa revela que o Brasil se encontra em 94º lugar no ranking dos países com maior registro de trabalho escravo. No mundo, são 29 milhões de pessoas vivendo em regime de escravidão moderna, uma situação de trabalho em que pessoas são forçadas a realizar atividades contra a sua vontade, sob diversos tipos de ameaça.
São vítimas de trabalho forçado, tráfico humano, trabalho servil derivado de casamento ou dívida, exploração sexual e exploração infantil.
[…] No Brasil, o trabalho quase escravo se concentra nas indústrias madeireira, carvoeira e de mineração, de construção civil e nas lavouras de cana, algodão e soja. Outro campo sensível é o turismo sexual no Nordeste e a exploração da mão de obra de imigrantes bolivianos em oficinas de costura.
Jornal O Globo – 17/10/2013
A gente come, veste e senta em cima de algo que, com grande probabilidade, tem ligação direta com algum tipo de trabalho escravo. Estamos em 2014, caso seja necessária a informação.
Pensar que se trata de 0,1% da nossa população ou que parte dessa fatia é formada por imigrantes que vieram se arriscar em nosso país é normal. Pensamentos infelizes, mas mais comuns do que imaginamos. No mesmo texto, a Anna também nos mostra um vpideo muito interessante do escritor, psicólogo e jornalista da ciência, Daniel Goleman, sobre a nossa capacidade de desconexão com o outro e/ou com o processo passado pelas coisas que consumimos.
Fácil nos distanciar dessa realidade, uma vez que consumimos o produto final e podemos imaginar que o problema não é nosso, mas de quem vendeu ou das autoridades.
Link Vídeo | Daniel Goleman fala da sua desconexão
Mas ainda há muitas pessoas que veem essa conexão e buscam maneiras de limar o seu cotidiano do trabalho escravo. Mais há ainda, existe gente engajada em denunciar as práticas de trabalho escravo no Brasil.
Conheçam o Repórter Brasil
Um grupo formado por jornalistas, cientistas sociais e educadores. Esse é o pessoal que faz correr o Repórter Brasil, ONG focada em denúncias de trabalho escravo no Brasil. O projeto foi fundado e é presidido pelo Leonardo Sakamoto.
Nos últimos 19 anos, mais de 45 mil pessoas foram libertadas do trabalho escravo em fazendas, carvoarias, oficinas de costura e canteiros de obras espalhados pelo país.
Para que essa violação aos direitos humanos cesse é necessário, antes de mais nada, informação de qualidade. Reportagens que mostrem onde o problema está, investigações que desvendem quem ganha com ele, análises que indiquem como resolvê-lo.
As informações da Repórter Brasil são usadas, há 13 anos, pelo poder público, o setor empresarial e a sociedade civil como instrumentos de combate a esse crime e na promoção da dignidade de milhões de brasileiros.
do Repórter Brasil.
Há, no site deles, uma lista detalhada — intitulada “Lista Suja do Trabalho Escravo” — sobre as empresas que possuem, hoje, alguma prática de trabalho escravo no Brasil. Eles também divulgam as exclusões, quando há, de empresas que se adequaram.
São denúncias importantes e pesquisas de extrema relevância que apontam todas as pontas do trabalho escravo por aqui. E, para isso, eles precisam de ajuda.
“É mais fácil um empresário que superexplora trabalhadores ter acesso a crédito público do que reportagens que tratam do tema consigam se financiar. Daí, a importância de uma campanha de assinaturas como essa”
Leonardo Sakamoto.
R$9,00 é o valor pedido pela ONG, para ajudar a manter a operação do Repórter Brasil por aí.
Com apenas R$ 9,00, que serão descontados automaticamente todo o mês do seu cartão de crédito, você vai ajudar a Repórter Brasil a continuar produzindo conteúdo totalmente aberto, gratuito e de qualidade sobre a escravidão contemporânea no Brasil.
Todos os apoiadores receberão, ao final de cada ano de sua contribuição, um relatório digital mostrando como a Repórter Brasil aplicou o seu dinheiro, e um balanço feito por uma empresa independente de auditoria.
O Brasil está em um caminho bom
Voltando ao estudo divulgado pela Walk Free, o Responsável pelo ranking — o sociólogo norte-americano Kevin Bales — disse que o Brasil está trilhando um bom caminho contra a escravidão moderna:
No Brasil, segundo o estudo, cerca 1 em cada mil moradores trabalha em condições análogas à escravidão.
Bales disse que o país é o que “provavelmente criou o melhor conjunto de políticas do mundo” para combate da escravidão, mas é necessário acelerar a sua implantação.
Entre as medidas elogiadas pelo sociólogo está a “lista suja”, cadastro oficial de empregadores que foram flagrados explorando mão de obra análoga à escravidão.
Folha de S. Paulo, 17/10/2013
A ideia é continuar a luta e minar cada vez mais a ação de quem, com uma facilidade grande de desconexão, possa ampliar esses números de escravidão forçada. fechando com o Goleman, lindamente citado pelo texto da Anna:
“Os objetos que compramos e usamos têm consequências ocultas. Somos todos vítimas passivas do nosso ponto cego coletivo. Nós não notamos. E não notamos que não notamos. Somos indiferentes às consequências ecológicas, de saúde pública, sociais e econômicas das coisas que compramos e usamos. De certa forma, a própria sala é o elefante branco na sala, e nós não vemos. E nos tornamos vítimas de um sistema que nos aponta para o outro lado.”
Update! Operação flagra trabalho escravo e infantil em carvoarias do interior (de São Paulo)
Dezenove trabalhadores foram encontrados nesta terça-feira (21) em condições análogas à de escravos em carvoarias do interior de São Paulo. Sete crianças e adolescentes também foram flagrados trabalhando durante uma megaoperação conjunta para combater o crime em Pedra Bela, Joanópolis e Piracaia. Ao todo, dez estabelecimentos foram alvo da blitz, e seis acabaram interditados.
[…] Segundo ele [o superintendente regional do Trabalho e Emprego de São Paulo, Luiz Antonio de Medeiros], os produtos abastecem grandes supermercados da capital. “Eles precisam saber de onde compram o carvão. Não podem se eximir.” Medeiros afirma que toda a cadeia será investigada. “Agora é dar continuidade à operação. São milhares de carvoarias que querem competir entre si recorrendo, para isso, a um trabalho degradante.”
G1 São Paulo, 21/01/2014 (ontem), 18h35.
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