O Mundo Está Melhorando. É um meme para aqueles focados no mundano. A conclusão que se espera todos bons cidadãos aceitem, numa congratulação mútua de reconhecimento da grande inteligência dos que a afirmam uns para os outros. Afinal de contas, que era dourada essa em que se pode chamar o Uber em cinco segundos no smartphone para o encontro com seu Tinder. Que beleza: O Mundo Está Melhorando!
MAS. O mundo realmente está melhorando? E o que essa sentença significa mesmo, no fim das contas? É uma asserção a considerar – ou trata-se de algo como “a maioria dos pesquisados avaliou esse refrigerante favoravelmente em relação às marcas líderes de mercado” — meramente um dístico supersticioso, algo que pessoas razoáveis precisam descartar, já que não vem de grande reflexão?
Neste curto ensaio espero avançar a minúscula tese de que “O Mundo Está Melhorando” é uma ideologia, um dogma, uma questão de fé. Como todas as ideologias, é um conjunto de crenças falsas e tomadas sem devido escrutínio, e que nos impedem de nos engajarmos na difícil tarefa de pensar sobre o que é estar no mundo. Refiro-me a essa ideologia como OMEMUísmo, cuja sigla indica “O Mundo Está Melhorando!! Uhú!”
Não é preciso ir muito longe para reconhecer como o OMEMUísmo já permeia a cultura pop. O OMEMUísmo, em resumo, é a conclusão –tomada como tão óbvia, sólida como a rocha, e inquestionável, que parece além de qualquer dúvida – de que o mundo está numa trajetória de manifestação do destino como progresso. E que, implicitamente, a tecnologia, o capital e o poder são as donzelas que acompanham a humanidade nessa viagem progressiva inevitável.
OMEMUI!! Bate aqui, mano Prometeus!! O OMEMUísmo se tornou uma espécie de religião secular composta de dois sacramentos principais: a tecno-utopia e o neoprogressivismo. Como religião que é, fornece a seus discípulos a crença fervorosa, livre de reflexão; a pregação, sem lógica; e a condenação de outras ideias, enquanto permanece impermeável ao autoexame. Como todas as religiões, seus dogmas são sacrossantos: estão além da razão, das evidências, do argumento ou do questionamento. São proferidos como revelações divinas, como a palavra de um poder superior.
Aqui está o convite para que, eu e você, heréticos do espírito humano nessa era dourada da máquina, comecemos a questioná-los. O mundo realmente está melhorando?
Abaixo listo algumas coisas em que o mundo está ficando “melhor”:
O mundo está ficando melhor em extinções em massa (como Elizabeth Kolbert na The New Yorker documentou de forma assombrosa).
O mundo está ficando melhor em mudança climática (como o James Hansen da NASA demonstrou persuasivamente).
O mundo está melhor em estagnação econômica (como os laureados pelo Nobel Joe Stiglitz e Amartya Sen convincentemente argumentaram).
O mundo está ficando melhor em aumentar o número de endividados e instrumentos financeiros tóxicos com pouco valor real (como uma passada de olhos em estatísticas financeiras básicas revela).
O mundo está melhor em corrupção. O Índice de Percepção da Corrupção, uma medida confiável ainda que imperfeita, mostra pouca mudança ao longo do tempo. Enquanto isso a confiança em quase todo tipo de instituição cai rapidamente.
O mundo está ficando melhor em injustiça. Enquanto que a desigualdade entre os países diminui, a desigualdade interna aos países aumenta – o que sugere que as sociedades estão convergindo para os maiores modelos de injustiça social entre elas, e não para os melhores exemplos.
O mundo está ficando “metapior”. Mudança climática e extinção, como muitos tipos de “pior”, tem uma característica comum: são irreversíveis. Não é possível desfazê-los. O planeta, ao contrário do que rezam as crenças de capitalistas ingênuos, não vem com certificado de garantia, assistência técnica ou contrato de serviço. Mudanças irreversíveis não só pioram o mundo – elas o levam a melhorar em piorar. Elas diminuem o teto de progresso possível, para todos os tempos.
Posso seguir nessa linha, mas talvez você já reconheça o argumento. Então, novamente: o mundo está realmente melhorando? Agora, talvez, você reconheça a falta de lógica do OMEMUísmo à luz da razão. Dizer que o mundo está “melhorando”, em qualquer dessas questões, como qualquer criança de seis anos sabe, não só é ilógico – é absurdo, irracional, tolo. Ora, melhorar em ficar cada vez pior não é algo que qualquer um de nós poderia, de sã consciência, desejar.
O OMEMUísmo é o equivalente a argumentar que um assassino em série está melhorando porque é capaz de descartar suas vítimas com mais eficiência… e então proclamá-lo reabilitado! Mesmo sob o mais desavisado escrutínio, este é um projeto insuficiente e incompleto, onde custos e benefícios, até os mais extremamente óbvios, são ignorados, omitidos ou negligenciados.
A verdade, se nos aventuramos a encará-la, é bem diferente. O mundo está de fato ficando melhor. Porém, exatamente em muitas das piores coisas. Estas são coisas que pessoas razoáveis não desejam, uma vez que nos ameaçam existencial e irreversivelmente, e não apenas culturalmente, mas emocionalmente, materialmente e espiritualmente.
Para onde então, essa contabilidade moral nos leva? Vamos examinar esse extrato de custos e benefícios morais. Por um lado, o mundo está melhorando, exatamente como o OMEMUísmo sugere. Porém, por outro lado, o mundo está melhorando em piorar. E para que resultado o balanço aponta? Os custos e benefícios, as dívidas e patrimônios, parecem apontar convincentemente para… nenhuma direção. O Mundo Está Melhorando… mas está também ficando melhor em piorar, em formas que parecem ser bem importantes e significativas, uma vez que não podem ser desfeitas, uma vez que não podem jamais ser melhoradas novamente. Essas duas coisas são verdade, ao mesmo tempo. O grande erro do OMEMUísmo é ver apenas um lado do extrato – e afirmá-lo verdade total e conclusiva.
E ainda assim… quando examinamos os dois lados da planilha, não há uma direção clara de progresso a ser reconhecida. E é isso que começa a revelar o OMEMUísmo como uma ideologia de progresso técnico, e não uma filosofia de progresso humano. A contabilidade moral muito simples detalhada acima demonstra uma verdade humana comum: o progresso não se dá em linha reta, como manifestação do destino, com uma trajetória linear. O progresso, se é que se trata de uma ideia a se considerar, é um paradoxo, uma contradição, algo irreconciliável. Não é capaz de conter apenas em si mesmo espaço para a razão, já que ninguém seria tão insensato a ponto de querer, desejar, precisar, buscar o progresso como ele ocorre hoje.
Sou um dinossauro. Um proscrito. Sou um liberal que viu a luz, e um conservador que já viveu na escuridão. Então não acredito muito no progresso humano. Acredito em progresso material, progresso social, e talvez, algum tipo ingênuo de progresso ético. Mas o progresso humano é nebuloso, indistinto, uma tempestade marinha. Podemos dizer, hoje, que somos pessoas melhores do que éramos milhares de anos atrás? Podemos dizer que somos mais sábios, mais espertos, mais nobres, mais autênticos?
Não tenho certeza. O balanço não se faz fácil. E, algumas vezes, evidentemente não fecha.
E é exatamente por isso que eu e você precisamos de mais do que meras ideologias. Convicções falsas, crenças errôneas – elas apenas nos condenarão a ser bobos que não conseguem sequer fazer o balanço de suas contabilidades morais – que não conseguem nem mesmo ler tais registros contábeis, para começo de conversa.
E é por isso que precisamos de filosofias. Ideias, campos de pensamento amplos e vastos que nos livram das ilusões da irracionalidade, e que nos conduzem, talvez, para a terra prometida da possibilidade. E em nenhuma outra instância há mais necessidade disso do que na arena do potencial e do progresso humanos. Ora, mesmo escravocratas e senhores da guerra possuem ideologias. Mas sem filosofias, sob as quais podemos erigir impérios da razão, nosso trabalho nem mesmo começou.
Você é mais pragmático. Não quer falar de filosofias, essas coisas inúteis. Então me permita colocar isso que disse acima de forma mais pragmática.
O OMEMUísmo é um conto de fadas. É uma historinha de um mito de criação da metamodernidade. É-nos ensinado que a prosperidade humana é um metal perfeito e puro, forjado no cadinho da revolução industrial.
O mundo moderno nasceu numa revolução de vapor e fogo. Abundância, quantidades infinitas incessantemente disponíveis jorrando das oficinas da criação. E então agora, mais do que nunca, graças à fórmula alquímica da tecnologia, do capital e do poder, o mundo vai melhorar.
Como todos os mitos, nosso mito da criação da abundância revela uma verdade no coração da mentira. Os fatos são estes: a prosperidade mendicante da metamodernidade não é um bem puro, disponível infindavelmente e abundantemente infinito, forjado nobremente numa maravilhosa e virtuosa oficina.
Nasceu do estupro da terra, foi nutrido por guerra e holocausto, e acabou concebido na senzala e na sweatshop. E hoje é comandado por um sistema financeiro retorcido e remendado, que mal contém os vulcões da turbulência social, bem como por exércitos de diretores de baixo escalão que desesperadamente anseiam por dias melhores, para que possam devotar ainda mais suas vidas à pilhar a terra e saquear o futuro na nobre busca por … novos tipos de desodorante.
É verdade que o mundo está melhorando – no sentido mais estreito possível. Mas é mais verdade que exatamente essa busca desenfreada por uma noção simplista de progresso que, paradoxalmente, contraditoriamente, piora o mundo de muitas formas reais e irreversíveis.
Então. É o confronto com, o desembaraço e a solução desses paradoxos e contradições da Barganha de Predador com a prosperidade que são os grandes desafios com que esta nossa geração precisa lidar. Não apenas filosoficamente, mas de forma pragmática, no mundo real, aqui e agora. Precisamos lidar com isso, caso contrário certamente perderemos qualquer pequena graça que nossos ilustres ancestrais tenham obtido em nosso nome.
Já mostrei que o OMEMUísmo é insuficiente, simplista, errôneo. Agora vamos examinar porque é assim, ao seguir nosso examine dessa expressão tão curiosa “o mundo está melhorando”.
“O mundo” em “o mundo está melhorando” claramente não implica o planeta, o ambiente, a sociedade ou o bem-estar humanos. Nenhuma dessas coisas está de fato melhorando. Então ao que essa palavra faz referência? Ela indica, simplificando bastante, “o mundo” em que os proponentes do OMEMUísmo vivem. Ela sugere que eles simplesmente não se dão ao trabalho de examinar o mundo real, num sentido mais amplo, seja ele humano, ambiental, social – seja em termos éticos ou materiais.
“O mundo” em “o mundo está melhorando” se aplica bem aos pródigos estilos de vida dos muito ricos, já que, no fim das contas, eles são os maiores defensores do OMEMUísmo. O mundo deles está de fato “ficando melhor”, ainda que de forma simplista: estão ficando mais ricos, mais saudáveis, e mais seguros. Eles não serão os refugiados deseperados de nações alagadas. “O mundo”, então, no OMEMUísmo não é o mundo – é apenas o mundinho dos OMEMUístas.
Talvez, numa análise final, “o mundo” dos OMEMUístas seja simplesmente um reflexo de seu mundo interior. Um homem rico se sente mais feliz com suas riquezas se mantém a crença de que elas não têm impacto sobre mais ninguém, se acredita que apenas beneficiam todos ao redor. Assim ele não sofre o ônus do remorso, da ansiedade ou da autorreflexão; melhor do que isso é ficar satisfeito com a própria virtude.
Esse “mundo” é o que realmente parece melhorar no OMEMUísmo. Trata-se de um mundo sem questões morais. Usei bem meu tempo na terra? Ganhei meu pão de forma justa? Claro que sim! Nem é preciso perguntar!! O Mundo Está Melhorando!! Assim “O mundo está melhorando” pode simplesmente muitas vezes apenas indicar que a cabeça dos OMEMUístas está bem enterrada num buraco: “encontrei uma ideologia com a qual posso me convencer de que minhas ações, não importa o quão duvidosas, são moralmente puras. No fim das contas, o mundo está melhorando!”
Em seguida, o que quer dizer o “está” de “o mundo está melhorando”?
E aqui uma curiosidade. Os OMEMUístas não conseguem precisar exatamente como o mundo melhorou. Apenas… melhorou. Afinal de contas, é seu destino. Eles parecem acreditar que mesmo aquelas dimensões estreitas nas quais proclamam a melhoria do mundo ocorrem como que se por alguma alquimia milagrosa. E assim o “está” é apenas o fim de um processo alquímico: com os reagentes corretos, o chumbo vira ouro, como por mágica.
Portanto você nunca ouvirá um OMEMUísta dar os devidos créditos a quem os merece. Temos um exemplo simples. As grandes e históricas reduções de pobreza global, mortalidade infantil e direitos da mulher: elas não foram um milagre, não foram mágica – e com certeza não foram apenas alquimia. Ocorreu bem o oposto: foram o trabalho muito corajoso, real e duro de uma legião de pessoas nobres, talentosas e dedicadas.
Essas coisas ocorreram principalmente porque o Banco Mundial e as Nações Unidas (entre outras instituições) explicitamente buscaram esses resultados, por décadas, montando uma bem planejada ofensiva global, investindo bilhões de dólares e milhões de horas de trabalho, e deliberadamente colocando esforçando para mitigar esses problemas.
E se o fizeram, foi porque os grandes economistas Amartya Sen e Mahbub-ul-Haq expuseram as bases teóricas para que o Banco e as NU o fizessem. Sem dúvida você sequer ouviu falar neles… e isso porque provavelmente os OMEMUístas – que geralmente são brancos – não parecem querer dar créditos para homens de pele marrom, mesmo quando são duas das maiores mentes dos últimos séculos.
Ou talvez eu esteja indo longe demais, e a verdade seja mais prosaica: os OMEMUístas são simplesmente ignorantes quanto a mentes e ideias, a teoria e prática que deveriam estar celebrando, gozando inconscientes das causas dos efeitos que eles mesmos consideram tão importantes. Isso, é claro, é ideologia: o oposto de conhecimento, reflexão e razão.
Volto a enfatizar esse ponto. O “está” em “o mundo está melhorando”, os OMEMUístas nos querem fazer crer, é uma alquimia mágica. Se você é um OMEMUísta, não parece ser é necessário nenhum pensamento ou esforço para organizar sociedades, vidas, ideias ou pensamentos humanos. Tudo que precisamos é simplesmente aplicar a fórmula mágica da era do ouro: tecnologia, capital, poder. E então, vualá: OMEMU.
Simplesmente misture os reagentes tecnologia, capital e poder, com liberalidade – e todo sofrimento humano de alguma forma se tornará prosperidade. Porém, nada é mais incorreto do que isso: o mundo está melhor, na perspectiva estreita em que está, somente porque instituições, leis e contratos sociais foram cuidadosamente projetados e aplicados por essa geração de mentes grandes e corajosas, caso contrário, não estaria.
Enfim, examinemos o “melhorando”. Já demonstrei que “melhor” é inadequado, uma vez que o mundo, em muitos aspectos, está ficando melhor em piorar. Mas aqui temos um problema mais profundo. A teoria de “melhor” contida em “o mundo está melhorando” é tão simplista que até uma criança lhe faria troça. Meu mundo melhorou porque eu tenho mais coisas que não preciso, não quero, e nem devia ter?
As dimensões de “melhor” que os OMEMUístas escolhem são sempre lineares, quantificáveis e contínuas. Tomemos um exemplo simples. A duração da vida humana está aumentando. OMEMUístas nos levam a acreditar que isso é um bem puro. Mas para muitos entre nós, esses anos adicionais são anos de terrível sofrimento, piores do que não viver – e assim dedicar esforços humanos para obtê-los é no mínimo duvidoso. Isso não é uma questão pequena. Revela uma enorme falácia.
Para os OMEMUístas não há componente moral na melhoria; não é preciso pensar mais do que isso; nada mais a examinar ou a se revelar. “Melhor” é simplesmente sempre mais: maior, mais rápido, mais barato. E ainda assim o que persiste não examinado pelos OMEMUístas não é somente os custos da busca de tais benefícios simplistas – mas o próprio valor humano verdadeiro desses benefícios.
“O mundo está melhorando”. Não se trata de uma conclusão nem um pouco acurada. Seria mais preciso dizer que o mundo está melhorando, em certos sentidos estreitos… mas que também está melhorando… em piorar… e assim não está ficando o melhor suficiente, rapidamente o suficiente, no que realmente suficientemente conta como suficiente.
O OMEMUísmo é perigoso, como todas as ideologias, exatamente porque impede aqueles que creem na melhoria em sentidos estreitos de fazer a jornada mental na direção de compreender a outra perspectiva.
Mas o que dizer para aqueles que não fizeram essa travessia?
Permita-me então concluir minha heresia contra o Mito do Predador do infinito progresso alquímico. Estou cansado, e você também.
O mundo só está ficando melhor num sentido de um tipo muito estreito. É o mesmo sentido que o lobo pode usar para argumentar que, durante um longo verão, o mundo está melhorando para a ovelha. O vale está verdejante. As ovelhas estão tranquilas. Mas o inverno está chegando, e pode ser um inverno sem fim. Será o reinado dos lobos.
O mundo está melhorando exatamente nesse sentido muito estreito e egoísta, que vou chamar de Barganha do Predador. O mundo está ficando melhor para aqueles que são predadores; para quem a saúde do planeta, os vulneráveis, a economia e a sociedade pouco importam – enquanto suas próprias barrigas estiverem cheias. É somente nesse sentido estreito, da saciedade no aqui e agora, que avaliam o mundo como melhor.
A Barganha do Predador é o buraco negro no coração do OMEMUísmo. Ela pede que encaremos o próprio custo como recompensa. Encarar os impactos muito reais do “mundo está melhorando” sobre o planeta, os pobres, a legalidade e o contrato social como, no máximo, incômodos – e muitas vezes os encarar como o próprio progresso.
Que perverso, que bancarrota – que absurdo. Isso não é progresso, não há nisso nenhuma melhoria. Só há degeneração, declínio, derrocada, disfarçados de progresso.
Os OMEMUístas mais do que tudo gostariam de que todos, cada um de nós, aceitasse a Barganha do Predador. Assim nos juntaríamos a eles e nos tornaríamos predadores. E é o que temos feito.
A lista de países que hoje celebram o extremismo é assustadora: Canadá, Austrália, Reino Unido, Escandinávia, Turquia. Todas essas nações aceitaram a Barganha do Predador, e esperam se tornarem “melhores” – nos termos estreitos do predador. Sua expectativa é encher a barriga até estourar – que o planeta, a economia, os vulneráveis e a própria sociedade se dane.
E todos nós somos encorajados a aceitar a Barganha do Predador. “Se você se tornar um predador, apreciará o impacto negativo como uma recompensa”, dita a lógica do tecnoprogressismo, “o seu mundo também vai melhorar. É assim que o mundo funciona, no fim das contas. Os fortes precisam consumir os fracos, para que o progresso seja garantido para todos.” Todos que sobrarem, talvez. Isso enquanto se puder encher a barriga, de algo ou alguém mais fraco.
Porém a vida, que droga, não é tão facilmente ludibriada. Não é uma mera equação a ser resolvida, um algoritmo a ser melhorado. A Barganha do Predador é uma grande ilusão. Embora um predador possa encher sua barriga, o homem não nasceu para ser um animal.
Render os sentimentos morais, os impulsos sociais, e o mundo natural, apenas para aplacar instintos animais não vai levar qualquer ser humano a sentido, felicidade ou finalidade – à própria vida. Não serão capazes de prover uma convicção ardente de “essa é a vida que eu nasci para viver”. Só o levam a ainda mais escuridão. Quando matar não produz mais satisfação, os predadores se voltam uns para os outros. Não há nível, quantia ou medida de “melhor” suficiente para vencer a Barganha do Predador; essa é sua maior tragédia.
Permita-me colocar isso em termos mais prosaicos. Se nos tornarmos a primeira geração a assistir televisão de altíssima definição de um bilhão de polegadas, totalmente realista, do tamanho do planeta, mas não houver um planeta para nos alimentar, de que porra isso vai nos beneficiar? Ao competirmos com a vingança de trairmos nosso senso moral para obter brinquedos do tamanho do planeta, nos sentiremos dignos deles? Ao devotarmos nossas vidas para criar esses brinquedos, em vez de realmente fazer coisas nobres e grandiosas – viajar para as estrelas, curar os mais doentes – como nos sentiremos com relação à própria vida? É nesses termos que a Barganha do Predador é uma grande ilusão.
E é nessa grandeza que se oculta sua verdade íntima: o desespero. A Barganha do Predador é a última jogada desesperada das ideologias atuais, que acreditam que o homem é um melhor animal do que humano; que tem garras mais afiadas do que a mente; que tem um apetite mais forte que o coração.
OMEMUístas, portanto, nos enganam. São punguistas do espírito humano. São os agiotas da mente humana. Enganam-nos quanto a necessidade do difícil cálculo moral necessário para que cada um de nós viva vidas grandiosas, dignas e verdadeiras. Enganam-nos quanto aos grandes questionamentos. Esse tipo de melhor é suficientemente bom? O mundo que está melhorando é para todo mundo? O mundo de quem está ficando melhor? Está ficando pior para quem? Quanto essa melhoria pede, exige, custa, impacta – e ela é justa?
Engana-nos quanto à rebeldia, verdade, graça, maravilha, e o sonhar. Enfim, nos engana quanto a tudo que nos leva na direção de ascendermos ao nosso potencial mais pleno. Pelo contrário, nos caricatura, nos diminui, nos reduz – nos impede de crescer até o ponto em que nos tornamos algo menos que humanos, algo mais parecido com robôs. Robôs que freneticamente obedecem às vazias programações da tecnologia, do capital e do poder. No serviço de melhorar o mundo… em piorar… e de não melhorar o suficiente, rapidamente suficiente, em todas as coisas que contam o suficiente, para o que é suficiente.
Os deuses amaldiçoaram Prometeu por conceder o dom do fogo à humanidade. Talvez naquela época, como agora, fossem mais sábios do que os homens. Os OMEMUístas querem nos fazer acreditar que o dom do fogo foi utilizado apenas para iluminar a humanidade na direção da justiça em meio à escuridão da noite. No entanto, eu e você sabemos: isso é só parte da história. O dom do fogo também acendeu os incineradores do holocausto, queimou os condenados da inquisição e alimentou as máquinas de guerra. E nesses momentos também, enquanto as bombas caíam, havia aqueles que diziam: o mundo esta melhorando.
Talvez os deuses soubessem, ao amaldiçoar Prometeu, que os homens fariam muito mal e o chamariam de bem; e fariam muito bem, e o chamariam de mal. Talvez a dificuldade em dizer qual é qual, e quem é responsável pelo que, é o que caracteriza o dilema humano. E talvez, apenas talvez, quando celebramos nossos dons de fogo, seria vom lembrar: não somos deuses. Não somos nem mesmos bem homens, até que nos sintamos pelo menos desafiados a amar.
E essa é minha verdadeira objeção à Barganha do Predador. O que ela realmente faz? Absolve-nos de nossa primeira e maior responsabilidade. Amar. Em troca nos oferece as tentações da abundância infindável. O Mundo Está Melhorando! Alquimicamente, magicamente, automaticamente! – que responsabilidade então, temos eu e você, de cuidar dele, de o acalentar, de o celebrar em sua fragilidade?
Mas para amar o mundo a nosso redor, em cada uma de suas formas alegres e milagrosas, além de nossos limites pessoais, é uma das maiores obrigações da vida. Sem amor, não há nenhuma abundância que possa saciar a sede humana. Não só de coisas, mas de conquistas, e nem mesmo as do próprio desejo. Desejo de ser. Graça, gratidão, enfim, pelo esforço de ser, é o que abençoa cada vida com sentindo, felicidade, finalidade e completude. Mas sem amor, não há graça. Há apenas o uivo noturno dos predadores.
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Esse texto foi originalmente publicado no Medium do autor.
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