Adoro correr.
Participar das corridas de rua é um costume que levo de longa data. Ainda lembro da primeira, há uns 25 anos, e pretendo continuar praticando enquanto a chispa estiver acesa e o corpo permitir.
O fato é que durante este período o perfil das corridas de rua mudou muito – assim como o de quem participa. Hoje em dia sinto que este evento tem deixado de entregar algo que eu encontrava há tempos atrás. Aquele sentido de integração, de fazer parte de um coletivo, de compartilhar o desafio com os demais, da conquista.
Talvez pelas dificuldades da época, eram poucos os eventos e saber onde e quando haveria a próxima era uma aventura, conseguir inscrição, então, era difícil. Corrida que premiava a participação com medalhas, nem pensar, era uma raríssima exceção.
Hoje é bem diferente. Kits super recheados, opções de corridas à beça e super medalhas à disposição.
Um belo dia, ou melhor, numa bela corrida há poucos anos atrás, algo me chamou a atenção. Não que fosse a primeira vez que me deparava com algo assim, mas receber a medalha de participação meio de qualquer jeito, dentro de uma sacola plástica com a banana e a garrafinha de água após a prova, me pareceu um indicador de que realmente algo se havia perdido, que a conexão do evento com o corredor era outra, que o propósito de estar ali havia mudado.
Uma medalha é um símbolo da conquista, da recompensa, do mérito. E para quem a recebe, estes valores podem carregar outros sentimentos e alcançar outras dimensões, representar muito mais do que ter sido capaz de cumprir a distancia proposta. Fazê-la chegar ao corredor dessa forma é uma falta de respeito com estes valores e, conseqüentemente, com o corredor.
Como diz o ditado, “nada está tão mal que não possa piorar”. Alguém há de lembrar, inclusive, de ter recebido a medalha junto com o kit, ou seja, antes mesmo de correr. Isso mata qualquer simbologia que a medalha e a distância percorrida possam carregar.
Logística, redução de custos, falta de infraestrutura ou simplesmente desleixo, são algumas das explicações para tal comportamento. Pra mim a mensagem parece clara: aqui esta a medalha que mencionamos quando você comprou o kit da corrida, está entregue. Fizemos a nossa parte. Ponto final.
Para muitos, a medalha pode ser um mero detalhe irrelevante que logo estará na caixa de brinquedos velhos da criançada. Talvez o número de “curtir” na foto da corrida seja mais importante do que a maneira como recebeu a medalha. Para outros pode ser algo tão importante que ninguém nem pode por a mão.
Eu gosto das minhas medalhas e as valorizo. Fazem parte da minha história, assim como a corrida faz parte de minha vida. Tenho todas. Bem, quase todas.
Justamente a da única corrida que venci na vida, sumiu, desapareceu, escafedeu-se. E por ironia do destino, foi uma das únicas que eu realmente recebi, que me colocaram no pescoço.
Voltando ao nosso tema, gosto das medalhas e achei que era um desrespeito recebê-las assim. Por isso, tive uma ideia: trocar minha medalha com algum corredor ou corredora, depois da prova. Pareceu-me uma excelente oportunidade de recebê-la como eu achava que tinha direito e ao mesmo tempo proporcionar ao outro a mesma coisa.
Às vezes tem dado certo.
Uma vez abordei um senhor que ainda levava sua medalha na mão, embrulhada. Perguntei se ele queria trocar pela minha, também embrulhada. Expliquei que ele merecia recebê-la como se deve e fiz o movimento de colocá-la no pescoço dele. Ele topou e fez o mesmo comigo.
Parabenizamo-nos, apresentamo-nos , conversamos algo sobre a corrida que acabávamos de fazer e ele desembestou a falar de seu currículo de provas, histórico de lesões e pessoas importantes do mundo da corrida que havia conhecido.
Digam-me, que corredor nunca teve vontade de compartilhar suas glorias, seus desafios, as mazelas do esporte? Devido à iniciativa de trocar medalhas, senti que havia feito algo e consegui ser condecorado como acho que merecia.
Ele terminou dizendo:
“O tempo que eu tenho de corrida você não tem de idade, meu jovem. Quantos anos você tem?”
Quando já há certa intimidade, a coisa pode ser bem divertida. Fiz parte de um grupo de corrida e quando propus a uma companheira trocar de medalhas, ela adorou a ideia de “recebê-la como teria direito”. Fizemos toda uma encenação como se estivéssemos numa premiação oficial, como se fossemos os reais vencedores da corrida, com pódio e plateia. Super divertido. Quando vejo esta medalha lembro dela mais do que da própria corrida.
Com outro membro do grupo construí uma amizade, e entre nós praticávamos com muita freqüência esta troca de medalhas.
Por outro lado, em algumas oportunidades, não funciona.
Uma garota não quis trocar sua medalha. Durante a prova, me dei conta de que estávamos no mesmo ritmo, percorrendo alguns quilômetros lado a lado inclusive, e tive nela uma referencia para o passo que deveria seguir para cumprir minha meta de tempo.
Ao final da prova a encontrei, já com sua medalha no pescoço. Como o numero de peito também continha o nome, chamei, me apresentei e perguntei se queria trocar de medalha comigo.
Ela logo me perguntou porque e fez aquele movimento de uma menina que protege a boneca frente uma ameaça. Expliquei que era por gratidão por haver compartilhado a corrida comigo e que assim eu sempre teria a medalha dela e ela a minha. Ela me olhou de cima a baixo e se foi. Perdemos a oportunidade de parabenizar um ao outro pelo esforço e pela conquista. Talvez eu tenha compartilhado a corrida com ela, mas ela não comigo, não sei. Nunca saberei.
Na maioria das vezes, no entanto, a troca de medalhas ocorre, com mais ou menos interação.
Correr nos faz estar sozinhos, mas isto não significa necessariamente estar só e experimentar a solidão.
Hoje, quando olho minha coleção, não vejo apenas a minha historia, mas a de varias outras pessoas também. É gratificante.
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