Moro em Copacabana, em um prédio de dez andares e quarenta conjugados por andar. Meus vizinhos são gringos, prostitutas, velhinhas.

Segundo as lendas urbanas, já houve até atropelamento por moto e debandada de rinocerontes nos corredores. (É verdade: aconteceu com o primo de um amigo!)

Algumas histórias, porém, são mais prosaicas que outras.

* * *

Copacabana tem a maior concentração de idosos do país: um terço dos moradores acima de 60 anos.

E eles estão por todos os lados. Seja reclamando de tudo (o mais comum), seja enxergando o bairro com olhos saudosos de cinquenta anos atrás, quando se apaixonaram e viveram ali seus grandes, melhores momentos.

Mancando pelas calçadas e gritando com atendentes. Expondo seus bócios conspícuos, suas pernas inchadas, seu olhos cegos. Às vezes, fedendo a mijo, pomada, fezes.

Nos meus piores momentos, penso: deus!, nunca me deixe chegar nessa idade!

Praia de Copacabana no Rio de Janeiro, Brasil (Copacabana Beach at Rio de Janeiro, Brazil)

Logo em seguida, me envergonho: de fato, se fôssemos dormir aos vinte e acordássemos aos oitenta, a vida seria intolerável.

Mas, pelo contrário, temos longos anos para nos acostumar ao lento declínio de nossos corpos, para substituir os velhos prazeres que já não aguentamos por prazeres mais plácidos e tranquilos:

Quem ontem escalou o himalaia hoje só quer manter os pés quentinhos.

Talvez sabedoria seja isso.

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O que um perde, outro acha

Portaria. Quatro pessoas esperando o elevador. Uma senhora loira, cheinha, muito baixa. Acompanhada de uma criança. um sujeito alto e magro, todo de preto rasgado, meio punk. E eu.

A senhora está desesperada:

“Ai meu deus, ai meu deus, o que vou fazer? Como é que isso foi acontecer comigo? Logo comigo? Quatrocentos reais!”

Ela briga com a criança por uma besteira e continua:

“Não adianta. Ninguém vai devolver. Ninguém devolve nada nesse país!”

Eu pergunto:

“A senhora está bem? Posso ajudar em alguma coisa?”

Ela conta que perdeu quatrocentos reais. Ali no prédio. Em notas de cinquenta. Que tinha acabado de receber do pessoal da temporada.

“Coloquei aqui no bolso de trás,” ela faz o gesto, “e quando fui ver, sumiu.”

“Será que não bateram na rua?”

“Não, caiu aqui no prédio mesmo! Mas não tem jeito, não tem jeito, ah, não acredito!”

Chegamos ao seu andar. Enquanto ela vai saindo, o quase-punk fala pela primeira vez, em um tom carinhoso e com forte sotaque hispânico:

“Agora é torcer para que o dinheiro acabe nas mãos de alguém que precisa.”

Mas a senhora sai sem dizer nada. Ou não ouviu, absorta no seu problema, ou achou que não valia a pena responder. Talvez tenha até considerado impertinente.

E ele, imperturbável, volta-se para mim e reitera:

“Dinheiro não tem nome. É difícil devolver, né? Então, sempre que perco dinheiro, eu penso: deus vai colocar esse dinheiro na mão de quem precisa.”

E continuamos subindo e subindo.

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O melhor andar

Depois de três semanas na estrada, chego em casa com mala de viagem, bolsa de mão com laptop, mochila do meu cachorro Oliver (com ele dentro), ecobag com as coisinhas do Oliver (ração, potes, cama, remédio), mais doze jornais de sábado e domingo debaixo do braço e o enorme saco de roupas limpas que a lavanderia tinha deixado na portaria.

Mal consigo entrar no meu apartamento. Exausto, caio na cama e durmo o dia inteiro.

Acordo à noite, com batidas na porta.

Ninguém nunca bate na minha porta. Não sem interfonar antes. Visto um short e vou ver quem é.

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“Sua mala está aqui fora”, diz uma voz, “o dia inteiro!”

Visto o resto da roupa e abro a porta. de tudo o que eu estava carregando, acabei esquecendo logo a mala no corredor do prédio. E nem dei pela falta.

“O dia inteiro!”, repete ela.

Dona Fátima, minha vizinha de andar, lá do fundo do corredor, dona de vários poodles com quem o Oliver sempre brinca, me explica:

“Meu filho, sua mala já está aqui o dia inteiro e eu preocupadíssima. Estava achando que tinha um corpo aí dentro. Ou uma bomba. Ou coisa pior! Depois que passaram várias horas e a mala ainda aí, vim ver de quem era, mas não consegui ler a identificação. Que letrinha pequena, né? Tive que bater na porta da moça aqui da frente e ela leu pra mim, e era sua! Que alívio, viu!”

Agora, sempre que nossos cachorros se encontram, Dona Fátima aproveita para comentar o episódio (claramente, ela nunca vai me deixar esquecer):

“Ainda bem que foi no nosso andar, viu? os outros andares são terríveis. as pessoas todas saem pra trabalhar e os corredores ficam desertos, é um perigo. aqui, não, tem eu, tem você, tem muita gente boa, honesta, que passa a tarde inteira em casa.”

E conclui, vitoriosa:

“Nosso andar é o melhor andar!”

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A eterna Miss Tomate

Minha vizinha, Dona Albertina, anda sempre maquiada, penteado bem armado, cabelos tingidos de louro, brincos balançantes. Nos pés, sandálias abertas revelam dedos entrevados mas com a pedicure perfeita.

Anda devagar. Corpo muito ereto. Cada passo é um esforço. No mínimo, uma decisão. eEla decide dar um passo. Depois, decide dar o seguinte. Um de cada vez. Devagar. Com fraqueza mas com segurança. Devagar e sempre.

Gosto de imaginá-la em casa, investindo toda uma manhã em se arrumar, dizendo para o espelho: até parece que vou sair descabelada que nem essas velhas loucas!, jamais!, logo eu que… (e reitera para si mesma um daqueles pequenos orgulhos bobos que trazemos da juventude): quem ganhou a maratona de dança do copacabana palace em 1947 não vai sem rouge até o posto seis, não, senhora!

Dona Albertina já não consegue mais se arrumar na mesma velocidade de antigamente. Mas seu marido morreu e seus filhos cresceram: ela tem tempo.

A ida à padaria é a parte mais importante do seu dia.

Para encontrar os vizinhos. Para sentir o cheiro de maresia. Para conversar com os cachorros do quarteirão. Para ver e ser vista. Para mostrar que ainda não está morta. Para celebrar que está viva. Para afirmar que é linda! Linda!

E assim, entrevada e vagarosa, a eterna Miss Tomate 1953 (aclamada por unanimidade pelo júri do festival do tomate de Paty do Alferes!) vai até a padaria comprar duas cavacas com recheio de goiabada. Que o seu manuel já se ofereceu diversas vezes para entregar em casa, de graça, para a senhora não ter esse trabalhão, Dona Albertina!

Mas seu manoel não entende nada.

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Existe muita beleza nesse ímpeto pela vida. Nessa recusa indômita à morte. Nessa dignidade que resiste a todas as indignidades.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu