Não, não é mais um post na interwebs falando sobre a sustentabilidade do festival SWU. Tampouco, por supuesto, da visão de dentro de carro, van ou ônibus. Este artigo fala do festival sob um ponto de vista bastante particular: em cima de uma cadeira de rodas.
A tentativa, aqui, é a de transmitir a vocês um pouco do que vi e vivi naquele lugar durante os três dias. Chamar a atenção para uma questão que está, aos poucos, ganhando espaço e se difundindo: a acessibilidade.
Quem tem acompanhado o PapodeHomem neste segundo semestre deve saber que sou cadeirante (meu nome é Danilo, satisfação). Até aí, grandiscoisas, afinal, tem um cadeirante em cada esquina. No entanto, calhou de o PdH ser um dos insiders, o que acabou fazendo surgir a ideia de uma cobertura “especial”, alguém para falar sobre acessibilidade.
A ideia foi aceita e me arranjaram uma credencial de imprensa. Agora divido com vocês, não sem um certo atraso, como foi ser cadeirante no SWU.
Em busca do caminho perfeito
Fiquei hospedado num hotel em Itu, um capítulo a parte da aventura em termos de acessibilidade. Cheguei na sexta, dia 9, mais ou menos pela hora do almoço, comi e finalmente peguei a estrada rumo ao local do festival, a fazenda Maeda. Meus amigos, foi uma verdadeira saga. É verdade que este é um aspecto que potencialmente atinge a todos, mas está no pacote, então vamoquevamo.
A sinalização na estrada poderia ter sido muito melhor e mais eficaz. Saímos de Itu por volta de 14 horas e só chegamos ao local às 17h. Nesse intervalo peguei incontáveis retornos e passei por um pedágio – e não fui o único a cair ali. Entradas eu até achei, mas quando chegava lá e perguntava para alguém do staff se ela levava até o estacionamento premium, diziam que não e explicavam outro caminho.
Literalmente na entrada correta, um policial militar indicou um caminho totalmente nonsense. Gostaria muito de saber se ele fez de propósito.
Pois bem, depois de conhecer os arredores de Itu, finalmente encontramos o bendito caminho e lá fomos nós. Pensei então cá com meus botões: “Agora vai, Brasil!”. Ledo engano. A certa altura havia uma bifurcação. Um caminho levava ao estacionamento premium e outro ao comum. Perguntei para o pessoal do staff e adivinhem quem foi parar no comum?
Voltei à bifurcação e tomei o caminho certo. Pelo menos uma coisa boa: ninguém me barrava em lugar algum, as portas que a palavra “imprensa” não abria, “cadeirante” fazia as honras. Encontrei o lugar onde fazia o credenciamento e parei lá para lidar com a burocracia.
Fui descendo e perguntando como chegar até o estacionamento. E minhanossa!, ficava cada vez mais longe da entrada! O local onde a organização me indicou era, em termos relativos, distante, difícil e à beira de um abismo (tá, ok, era só um vale). Rodável, mas longe, bem longe de ser acessível.
Em contrapartida, ninguém me cobrou absolutamente nada. Fui passando e nada de me cobrarem. Compensação, será?
Reconhecimento do campo de batalha
Uma vez dentro, o primeiro item que me chamou a atenção foi o terreno, que se dividia basicamente em três zonas: gramado, áreas cobertas com brita e caminhos de terra batida. Os dois primeiros impraticáveis sem o auxilio de alguém para empurrar a cadeira; o último, razoável, desde que não chovesse.
Não houve nenhum inconveniente maior, exceto pela hora em que uma das rodas se prendeu num buraco invisível no gramado. Cheguei a descolar da cadeira, mas aí senti uma mão no meu peito (ui!) evitando que eu caísse. E felizmente não choveu. Chuva tende a gerar incompatibilidade com cadeiras de rodas – se for no barro então, danou-se.
Sim, antes que argumentem, eu sei que se trata de um megaevento e que seria impossível fazer algo assim num esquema indoor. No entanto, acredito ser possível e praticável a construção de caminhos estratégicos, como uma passarela que conduza às instalações do evento, ou pelo menos àquelas consideradas principais. Com que material eu não sei, deixo pesquisa e implementação aos responsáveis técnicos.
Instalações e infraestrutura
Dezenas de tendas se espalhavam por todo o espaço. Algumas vazias ou com pufes para o pessoal descansar ou ficar fazendo nada mesmo. Outras tinham alguma atração e, por fim, as restantes eram as “praças de alimentação”. Todas, sem exceção, eram acessíveis: tinham rampas com inclinação boa e raramente estavam lotadas, salvo as de alimentação que simplesmente lotavam durante a noite.
O espaço onde aconteceram os fóruns além de amplo era igualmente acessível, com rampa e lugar reservado para estacionar a cadeira (e eu fui o único a utilizar, diga-se de passagem).
Chegamos então ao item principal: banheiro. Considero tão importante que há um tempo costumava brincar, sobre qualquer lugar, que “o importante é ter banheiro adaptado, no resto dá-se um jeito”. Eu não cheguei a ir em todos os (conjuntos de) banheiros, mas tenho certeza de que nem todos tinham cabines para cadeirantes, pois na sexta, logo na primeira vez em que precisei usar, não as encontrei. Somente no sábado achei algumas cabines, duas delas na área reservada à imprensa.
Convenhamos, banheiro químico é um atentado violento à higiene.
Mas, realmente, não sei se existe alguma alternativa viável a esse tipo de banheiro. Esses eventos concentram uma grande quantidade de pessoas por um período de tempo muito curto, é preciso algo que seja desmontável. Por outro lado, algum de vocês (não vale quem tem algum tipo de contato) sabe como é que uma parcela significativa dos cadeirantes se vira no banheiro?
Parece-me justificada a necessidade de se pensar em alguma alternativa, digamos, mais restrita e asséptica.
Não bastasse isso, encontrei na área comum uma situação curiosa. Por lá havia uma plataforma, um tablado restrito às pessoas com deficiência, e logo ao lado da rampa havia dois banheiros cujas portas davam direto para a plateia. Quer dizer, dependendo do horário era abrir a porta e dar de cara com a multidão.
Privilégio ou necessidade?
Para os shows nos palcos principais, “Ar” e “Água”, a passagem de cadeirantes para a área premium estava liberada independentemente do tipo de ingresso ou credencial. Porém, tratou-se de medida ligeiramente paliativa: a área premium era um espaço de uns 20-30 metros de comprimento entre o palco e a área comum, ou seja, era mais perto do palco, mas o problema de lotação continuava.
Aqui eu preciso abrir um parêntese: sempre tive certo receio de falar sobre condições para cadeirantes. Não é exatamente medo, é uma espécie de mal estar, preocupação de empregar as palavras erradas ou mesmo passar a ideia de que me aproveito (ou, falando por todos, que nos aproveitamos) da situação para conseguir algumas mordomias. Já ouvi isso e mais de uma vez.
São incontáveis as vezes em que tive de fazer malabarismos corporais para subir escadas, ir a banheiros, atravessar um lugar etc, só para não ter de reclamar e ficar – e isso é frequente – com aquela pecha de “Folgado, só porque é aleijado”. A esses dedico o argumento mais simples que existe: senta numa cadeira de rodas por um dia inteiro, campeão.
Costumo chamar o que eu reivindico de “mínimo lógico”, o mínimo necessário para que eu e outros possamos curtir as coisas do modo mais normal possível. Se o jeito é criar medidas que pareçam mordomias, isso foge ao meu controle. Paciência, dotô.
Retomando, o problema da superlotação persistia na área premium. Ser cadeirante e estar no meio da multidão pode ser uma experiência desesperadora.
Imagine o que é bater na cintura da pessoas, não tendo a mínima visão de qualquer coisa, imagine estar sufocado porque o seu ambiente está praticamente fechado, imagine gente esbarrando em você e caindo no seu colo a todo instante e imagine que você tem tantos espasmos que suas pernas parecem ganhar vida própria e saem chutando a galera. Por fim, imagine essa multidão pulando alucinadamente e te prensando contra um anteparo qualquer. É isso.
A saída? Deram a ideia de nos colocar no chiqueirinho, o espaço entre o palco e a área premium. Acabou rolando e foi dali que assisti a quase todos os shows que me interessavam.
Experiência de quase-morte
Mas nem tudo são flores, meus amigos. Houve dois momentos de pura tensão.
O primeiro aconteceu logo no começo do show mais esperado da sexta-feira e o meu mais esperado: Rage Against the Machine. Acho que a organização do SWU não estava suficientemente familiarizada com a energia que o público costuma liberar no show dos caras. Resultado: de tanto pularem e forçarem, a barreira da área premium começou a ceder.
Todo mundo deve ter visto na TV ou na Internet a cena em que o show é paralisado e eles pedem para todos darem “três passos para trás”. Pois é, eu estava literalmente do lado “do foco da dengue”!
https://www.youtube.com/watch?v=-D6vXZUzugg
Foi uma correria. De repente um monte de gente chegando com tubos de aço e outras peças para reforçar a barreira, um outro tanto de homens segurando-a com as próprias mãos. E toda a galera gritando: “Tira eles daqui”. Ouvi até um “Get them the fuck out of here!”. Este “eles” éramos eu, um paraplégico do Paraguai (ele ficava em pé) e o Marcelo Yuka, que não sei que fim levou, pois não o vi mais aquele dia.
E saíram nos empurrando para longe da zona de risco.
O segundo foi durante o show do Cavalera Conspiracy, na segunda-feira à tarde. Estávamos (uma galera aqui do PdH estava comigo) lá na área comum curtindo o som quando do nada começa subir aquele poeirão. Olho para o lado e os caras tinham formado uma roda pra bater cabeça. Misericórdia, gente. Faz isso comigo não… Se não tivesse um pessoal comigo provavelmente eu teria sido pisoteado!
Felizmente nada grave aconteceu e eu sobrevivi pra contar e aumentar os causos.
Balanço final
Algo que eu não disse ao longo do texto é que cerca de dois meses antes de entrar para a equipe do PdH (mais ou menos em maio), entrei, sistemática e insistentemente, em contato não apenas com a organização do SWU, mas com absolutamente todos os patrocinadores e parceiros, indagando sobre como a questão da acessibilidade estava sendo tratada.
Recebi de todos a mesma resposta: tudo está sendo devidamente providenciado. O próprio Fischer chegou a me responder alguma coisa por DM no Twitter, embora sempre me orientasse a contatar a organização. Esta, por sua vez, me pediu um email especificando todos os problemas que costumo enfrentar. E eu mandei.
Não satisfeito, falei com dois amigos, ambos cadeirantes e de alguma forma mais engajados do que eu, a Tabata, atriz, e o Jairo, blogueiro e colunista da Folha. A resposta que conseguiram foi basicamente a mesma.
Acabei deixando pra lá porque desisti de ir devido a alguns problemas pessoais. Só fui voltar a pensar nisso uma ou duas semanas antes do festival, que foi quando surgiu a oportunidade de ir.
A avaliação que faço, e adianto que falo como leigo, pois meu conhecimento e opinião baseiam-se exclusivamente na minha experiência (embora acredite que boa parte dela possa ser de algum modo generalizada), é que dava para ter feito mais.
Não estou dizendo que foi ruim ou que deixou a desejar. Tomaram as medidas comuns que qualquer pessoa com alguma sensibilidade tomaria. Creio que perderam, contudo, uma excelente oportunidade de inovar, de ir além, de pensar nas minúcias.
O evento em si, como festival de música, achei foda! Eu me diverti e curti demais. Foi uma experiência pessoal realmente fantástica (por uma série de outras razões que não se ligam ao SWU propriamente dito). Não apenas isso, estive também na companhia das melhores pessoas.
Entretanto, no quesito acessibilidade, algo que tinha potencial para ser excelente, que poderia se tornar referência, foi apenas bom, “satisfatório”.
Espero, mesmo, que para a próxima edição, os organizadores ousem superar o mais do mesmo também neste aspecto.
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