Nota da edição: Tecla SAP é a nova série do PapodeHomem sob minha curadoria que pretende mostrar, explicar ou traduzir conceitos que fazem parte da nossa vida e que interpretamos errado ou simplesmente não conhecemos.

Como todo bom começo, estamos aceitando contribuições, além das boas e velhas sugestões, críticas e comentários. Espero que gostem. Ou que pelo menos seja útil.

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Desde pequeninos somos ensinados na escola (com ou sem partido) a responder prontamente a seguinte pergunta: por quem o Brasil foi colonizado?

Lá na quarta série, uma versão menor e mais cabeçuda de você respondeu a professora e ganhou um parabéns logo depois de dizer: Portugal! Na sua sala de aula mesmo deveria ter uma série de dicas pelo simples fato de estarem escritas em português. Nosso idioma é, provavelmente, a maior herança que temos dos tempos de colônia e nos faz sensivelmente diferentes, por exemplo, dos nossos vizinhos na América do Sul, todos falantes do espanhol.

Mas se você fosse uma criança muito pentelha (e esperta!) você poderia infernizar a vida da professora dizendo que o Brasil já foi colonizado por vários países. E continua sendo.

Hermione certamente faria isso.

Colonização moderna

Muito depois do que rolou no século 16, países foram colonizados de n formas. A maioria deles por meio da força bruta. Via de regra, um país entrava em guerra com outro, o mais fraco perdia e o mais forte passava a impor suas regras.

Sem se aprofundar muito na história, podemos citar o exemplo de Berlim pós-segunda guerra mundial. Derrotados, os alemães viram sua maior cidade ser dividida e virar um quintalzão das nações vencedoras – Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Não demorou muita para que as regras impostas por forças distintas dentro de uma mesma cidade fossem capazes de, literalmente, criar um muro para dividir as coisas. Berlim se tornou o maior símbolo da Ordem Mundial vigente representando fisicamente a bipolarização entre capitalismo e comunismo no ápice da Guerra Fria.

Faça amor, não faça guerra.

Mas para além da força bruta, existem outras formas "mais sutis" de dominar outros países. Além disso, a guerra é, na maioria das vezes, a opção mais cara.

Que tal então, ao invés de matar seu vizinho para colocar a casa dele sob as mesmas regras que a sua, simplesmente convencê-lo de que do seu jeito é melhor?

Colonização pós-moderna

De repente, você marca uma visita ao vizinho e resolve levar um prato de comida. Pra fazer um agrado e mostrá-lo como sua comida é boa.

Na semana seguinte, você visita-o novamente e dessa vez leva um livro. Só pra mostrar como sua literatura é vasta.

No próximo mês é seu vizinho quem convida, já de olho nos presentes que você tem levado. Você resolve caprichar e levar um jogo de videogame. Só pra mostrar como você sabe se divertir.

Passas-se um ano e o seu vizinho adora o que você come, o que você vê, o que você joga e o que você faz. Quem passa na rua, de repente, vê uma casa exatamente igual a outra.

E ninguém precisou morrer.

Olha só! Seu bairro.

Aplicando isso ao campo das relações internacionais, um professor de Harvard chamado Joseph Nye formulou, no final dos anos 1980, um conceito chamado soft power em contraposição ao que já se conhecia como hard power. Bem mais tarde ele foi mais fundo e destrinchou esse conceito no livro Soft Power: os meios para o sucesso na política mundial (tradução livre) de 2004 .

Na prática, soft power diz respeito a habilidade de um país de influenciar o comportamento ou o interesse de outro através de sua cultura ou ideologia. Hoje, com a globalização e a revolução digital, isso foi levado a proporções difíceis de imaginar na década de 1980.

Para sentir isso na pele, a gente pode ir dos exemplos mais básicos aos mais complexos. A comida que a gente come. A música que a gente ouve. Os livros que a gente lê. Os produtos que a gente consome. As viagens que a gente faz. Os modelos de negócio que a gente copia. O sistema político que a gente importa. As pessoas que a gente admira. A noção de mundo que a gente tem. A história que a gente ensina nas escolas.

Quase tudo que a gente faz, usa ou convive é importado de algum lugar, mas o mais bizarro é quando a gente se dá conta de que não são só as opções que nos são dadas, mas também a forma como a gente escolhe uma delas.

Através da mídia, da cultura popular e da diplomacia, países constroem reputações, expõem seus valores positivos e vão deixando armadilhas aos demais para que estes sigam seus passos ou sejam mais amigáveis. Assim, eles conseguem aliados, expandem sua influência e criam um círculo vicioso que lhe traz cada vez mais poder.

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Armas

Um exemplo prático que nossa geração vai poder ver é o do futebol. Esporte mais praticado no mundo e que mais movimenta dinheiro, ele é um exemplo da influência que um país exerce sobre outro atualmente e a tendência é de que seja cada vez mais assim. Ciente disso, duas potências mundiais estão arquitetando seus "planos de dominação" do mundo através do esporte.

Nos Estados Unidos, a Major League Soccer é uma espécie de primeira divisão do campeonato e até pouco tempo atrás contava apenas com alguns poucos jogadores conhecidos internacionalmente, a maioria em fim de carreira. Hoje, atuam nos Estados Unidos nomes como Kaká, Pirlo, Lampard, Villa, Drogba, Raul, Gerrard, Ashley Cole, De Jong, Giovinco e Dempsey, muitos ainda convocados para suas seleções.

Ao mesmo tempo, a MLS já ostenta médias de público de mais de 21 mil torcedores por jogo – bem acima dos 14 mil do Brasileirão 2016 até aqui. Isso mantendo uma taxa de ocupação dos estádios de 91%, o que lhe coloca atrás apenas de Alemanha e Inglaterra. O Brasil tem 38% e mesmo o líder do quesito, Palmeiras, não passa dos 75%.

Há dois anos, Dan Coutermanche, vice-presidente da liga, disse:

"Nosso objetivo é que a MLS seja uma das maiores ligas do mundo até 2022. Para chegar a essa meta, vamos trabalhar como nunca trabalhamos antes."

Mas se você não está convencido do poder de influência futebolístico dos americanos nos próximos anos, tudo bem. Vamos pra China.

Lá, a força do crescimento do futebol impressiona ainda mais. Como quase tudo no país, os números são astronômicos. O objetivo a curto prazo é fazer com que 50 milhões de chineses joguem futebol até 2020 e a meta final é transformar a China numa superpotência até 2050. Para conseguir isso, os clubes chineses que já importavam os destaques brasileiros (como Ricardo Goulart, Jadson e Renato Augusto), passaram a levar também alguns jovens (como Geuvânio) e, mais recentemente, contrataram destaques do futebol europeu por cifras obscenas (como Lavezzi e Hulk).

Mas o plano de expansão da influência chinesa através do futebol fica ainda mais claro quando analisamos fatores externos. Diversas empresas chinesas, não satisfeitas em anunciar nos principais campeonatos do mundo, resolveram simplesmente comprar um time inteiro.

Nesse ano, um grupo de investidores chineses liderados por Robin Li, dono do Baidu e sexto homem mais rico da China, comprou o Milan por € 400 milhões (R$ 1,49 bilhão). O clube se junta à rival Internazionale que teve 70% de suas ações adquiridas por outro grupo chinês de investimentos no valor de € 279 milhões (R$ 1 bilhão).

Fora da Itália, os chineses já adquiriram 20% do espanhol Atlético de Madrid, controlam 100% dos ingleses Manchester City e Aston Villa, e ainda têm mais de 50% do português Torreense. No time de Manchester, os chineses já mudaram até o escudo do time.

Tem placas em inglês e chinês nas dependências do clube.

Segundo especialistas, isto tudo faz parte de uma trajetória arquitetada pelo governo chinês de tornar o país mais aberto e interessante para o Ocidente, alterando a percepção das pessoas de algo como "eles estão muito longe" para algo como "eles estão em todo lugar", aumentando a representatividade chinesa no mundo.

Armadilhas

Acontece que nem sempre o que é importado faz parte de um plano de dominação mundial de quem quer que seja. Ao mesmo tempo que a globalização e a internet possibilitaram que países expandissem propositalmente sua influência sobre outras áreas do globo, é possível também utilizá-las para fazer ativamente o caminho reverso e buscar referências que os países não necessariamente gostariam de mostrar.

Deve-se ressaltar também aspectos positivos do soft power como, por exemplo, a liderança pelo exemplo. Ao invés de ser autoritário e "usar a força", seja lá o que isso signifique nos diversos contextos, um líder pode usar suas atitudes para se tornar mais amistoso com sua equipe e assim motivar o grupo a seguir no caminho desejado.

Como dissemos no primeiro artigo sobre a Janela de Overton, estes conceitos são ferramentas neutras. O que fazemos com elas está na nossa conta. Mas na dúvida, é melhor estar preparado.

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Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>