Quem participou de rodas sobre masculinidades ou cursos de equilíbrio emocional para homens comigo nos últimos sete ou oito anos provavelmente me escutou falar abertamente sobre aspectos sombrios de meu passado várias vezes.
Já fui agressivo com mulheres com quem me relacionei de diversas maneiras, já xinguei, berrei, quebrei coisas, fui pouco participativo em casa, dei piti achando que estava sendo macho, briguei pra dirigir mesmo quando estava bêbado. Agi com rigidez excessiva com pessoas que trabalhavam comigo ao me ver na posição de líder. Fui babaca e escroto em diversas ocasiões. Tive comportamentos autodestrutivos com álcool, drogas, pornografia e sexualidade. Brochei mais vezes do que consigo contar. Publiquei textos vergonhosos nos primeiros anos de PdH, a maioria deles fora do ar. Me tranquei em processos solitários (não sei se depressivos pois tinha dificuldade em pedir ajuda), de profundo isolamento e confusão. Em alguns momentos, senti que não merecia viver. A lista segue.
Os amigos e amigas de convivência próxima nesses doze anos ao longo dos quais escolhi São Paulo como casa já conhecem boa parte disso.
Também tenho falado sobre em contextos públicos. Como no documentário "O silêncio dos homens". Tratei disso no próprio PdH, em textos e em vários dos milhares de comentários que deixei por aqui. Abordo o assunto em palestras, quando surge contexto adequado ou me perguntam a respeito. Conversei sobre parte desses temas em podcasts (Mamilos e o podcast da BandNews, por ex) e em entrevistas. E quando alguma pessoa próxima me questiona e tem tempo pra escutar, falo o que estou relatando a vocês agora.
Escrevi sobre no livro "Violência doméstica e familiar contra a mulher: um problema de toda a sociedade" do Instituto Patrícia Galvão, lançado pela Editora Paulinas. Sou um dos autores convidados para o livro e abro meu artigo explicando que não poderia falar sobre o tema sem antes me implicar no assunto e assumir responsabilidade pelo que fiz de ruim e violento como homem ao longo dos anos, em contextos domésticos e profissionais.
A maneira como conduzo processos com os homens passa por responsabilização, por sermos capazes de olhar no espelho e reconhecer o que já fizemos de pior. Não saberia como atuar desse modo sem fazer o mesmo na minha própria vida.
Procurei conversar com as pessoas afetadas por minhas ações destrutivas, escutando, pedindo desculpas e, principalmente, procurando me transformar como homem. Carrego até hoje mensagens recebidas, e com frequência as releio para me certificar de que lembro de tudo aquilo que não desejo repetir. E me comprometi a dar meu melhor pra mudar, pois sei que um pedido de desculpas pode ser vazio se não vier acompanhado de ação.
Este texto não é pra buscar elogios ou pagar de humildão virtuoso. Não é uma tentativa de justificar o injustificável. É sobre dar, novamente, o mesmo passo que convido outros homens a fazerem semana após semana em meu trabalho.
Falar de novo e de novo sobre nossas piores ações dá bastante medo. Até hoje bate um frio na barriga e às vezes me sinto um impostor. Pois compartilhar histórias não é garantia nenhuma de mudança. É só um correto e necessário passo de uma longuíssima estrada de mudança pessoal e responsabilização — na qual sigo caminhando.
Talvez essa profunda intimidade com a agressividade, vergonha e com emoções destrutivas, como a raiva e o sentimento de não merecer viver, me ajudem hoje a dialogar com os mais diversos homens (e também com mulheres) em situações similares e tentar ajudá-los a romper esses ciclos.
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Fui criado pra ser provedor, protetor, reprodutor e autossuficiente. Pra falar grosso, xingar muito e ser bom de briga, seja na rua ou na luta profissional pelo sustento. Aprendi desde cedo que o mundo é uma selva e preciso garantir o meu, matar no peito e aguentar o tranco. O "kit homem".
Internalizei tudo isso e falhei miseravelmente. Durante muito tempo me senti um não-homem. Meus pais se separam cedo e, morando com minha mãe, seguia o que ela me dizia. Vivi cercado de mulheres, tias, primas, avós. Além de me recusar a beber e falar palavrões (o que parecia causar ira e certa vergonha em meu pai), era magrelo, feio, ruim de bola, fracote, espinhudo, virgem de boca e de sexo, rejeitado e covarde, morria de medo de apanhar nas brigas. Meus talentos eram escrever, inventar jogos, Magic: the gathering e RPGs.
Me recordo de meu pai ter ficado bravo e envergonhado de mim pois me recusava a falar palavrões, evitava beber e não quis que ele me pagasse uma noite com uma prostituta, quando adolescente.
Quando comecei a crescer e bater minhas asas, resolvi exercitar pra ficar mais forte e deixar de ser tão medroso. Fiz judô e capoeira também. Passei a xingar e beber bastante, assim como experimentar várias drogas. Saí pra viajar e morar fora (trabalhando pra pagar as contas). Comecei a ter mais autonomia, fui aos poucos descobrindo coisas nas quais era bom, desenvolvendo um senso básico de autoestima, que até então desconhecia.
O próprio surgimento do PdH, quase treze anos atrás, está conectado a essa jornada. Ele veio ao mundo alguns anos após o início dessa busca. Imaturo, junto de uma rede de outros homens frustrados e rejeitados que tentavam se ajudar, achávamos ser os caras legais.
Demorou um bocado até acordarmos para o imenso machismo presente em nosso modo de pensar, agir e escrever. Na minha cabeça, machista eram meus colegas adolescentes que iam às micaretas beijar mulheres à força. Eu nem beijava ou transava com mulher alguma, como poderia ser machista?
Motivado pelo pânico de continuar me sentido um não-homem, procurei fazer tudo pra ser um "homem de verdade". Mas em minha perspectiva limitada, isso significava ser forte, sedutor e bem-sucedido profissionalmente. Se durante a adolescência era o fracote rejeitado, me tornei o jovem adulto machinho e machista, que não se achava machista.
Sair desse lugar exigiu tempo, dores causadas e sofridas, muitas puxadas de orelhas e a generosidade sem fim de amigas, ex-parceiras, amigos e até mesmo de pessoas que mal me conheciam e se propuseram a me explicar o mundo, abrindo meus olhos pra me reconhecer como o machista inseguro que de fato era.
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Hoje tento não ser mais nada disso.
Me dediquei a ler inúmeros livros e artigos sobre feminismo escritos por mulheres, assistir filmes educativos, ir a encontros e permanecer quieto, calado e atento. Fazer perguntas a mulheres (próximas e outras não) sobre o que poderia fazer de diferente. Escutá-las. Procurei me auto-responsabilizar e desenvolver a capacidade de me acolher sem afundar em processos de culpa — que acabariam por transformar tentativas de mudança em processos depressivos autocentrados. Quem já se achou um lixo humano sabe como é complicado aprender a se acolher.
Sigo escutando elas, mesmo quando acho que já entendi. Na prática, isso tem se traduzido em me relacionar amorosa e profissionalmente de outros modos, por exemplo. Em conduzir cada nova etapa de trabalho no PdH em rede, de mãos dadas com grupos e coletivos de mulheres. E também em manter a pia limpa.
São anos e anos de caminhada, envolvendo idas ao psicólogo, imersões em equilíbrio emocional, auto-compaixão, períodos de dor, solidão e vergonha, retiros, aprofundamento e conexão com a prática regular de meditação, guiado por professores e professoras legítimos, inserido em redes de praticantes dedicados. Tornei a mudança uma prioridade e não um assunto periférico "pra quando sobrar um tempinho". A todo momento sigo fazendo perguntas, procurando seguir atento quando piso na bola e me chamam atenção.
Como escutei de um amigo, isso não significa que parei de errar. Claro que me reconheço tendo atitudes machistas no cotidiano. Apenas (acho que) costumo notar mais rápido.
Não sou líder, modelo de nada, novo homem, virtuoso, bonzinho, nem desconstruídão. Sou uma pessoa bastante falha, oscilante, orgulhosa, com uma história tortuosa, recheada de ações e posturas babacas, cretinas, dignas de vergonha. Um homem comum.
Como procuro ajudar a resolver o problema?
Tenho dado meu melhor pra seguir avançando e ofereço o que posso em todos os locais nos quais me convidam e onde atuo hoje.
Em escolas, fábricas, universidades, coletivos, empresas, ONGs, órgãos públicos, rodas com homens que cometeram agressões, com pessoas que desejam trabalhar com masculinidades, nas turmas de equilíbrio emocional e até mesmo na minha família. Dedico a maior parte de minha capacidade profissional e tempo de vida para ajudar outras pessoas a mudarem, com o que aprendi, ao longo desses quase treze anos trabalhando com homens e masculinidades.
Grande parte dessas atividades não são remuneradas — o que só conseguimos fazer por cobrar quando vamos a empresas. Perdi a conta de quantas vezes atuei em escolas, com grupos independentes, coletivos e com órgãos públicos, sem sermos pagos. Respondemos (a equipe do PdH) individualmente chamados e pedidos de ajuda de pessoas de todo o Brasil, por email, DMs e comentários. Todos os dias. Quem trabalha com ativismo sabe que essa definitivamente não é uma área em que se entra se sua prioridade for dinheiro.
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Agradeço de coração a todas e todos que vêm me auxiliando, pelas mais diferentes maneiras. Agradeço às pessoas que causei dor por terem aceitado minhas desculpas. Às que tiveram a paciência e generosidade de me puxar a orelha. E às professoras e professores diversos pelos ensinamentos oferecidos. Espero que escrever sobre as coisas ruins que fiz como homem, compartilhando isso de maneira clara e estruturada, possa ser benéfico e ajudar outras pessoas em seus processos.
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