Sérgio Buarque de Holanda, o pai fodão do mestre Chico
Em entrevista à Folha, o pensador brasileiro Raymundo Faoro contou que Sérgio Buarque de Holanda era um homem que gostava muito de sair com a esposa e seu círculo de amigos para conversar aos sábados ou aos domingos. O problema é que a noite carioca, em especial nos finais de semana, sempre fora muito badalada e concorrida. Assim, o velho Sérgio tinha um truque para conseguir uma boa mesa. Chamava o maître de canto e dizia:
“Sou pai do Chico Buarque.”
Apesar de alguns desconfiarem da credencial, isto costumava assegurar bons lugares para si e seus convivas. Ainda que se divertisse com a situação toda, Sérgio Buarque de Holanda sempre foi muito mais que “o pai do Chico Buarque”.
Nascido na São Paulo de 1902, sempre demonstrou amor pela cidade, sem, contudo, ter ficado atado a ela. Estudou no Ginásio São Bento e na Escola Modelo Caetano de Campos. Nessa época, aos nove anos, compôs aquele que seria seu primeiro trabalho escrito. Era uma valsa chamada “Vitória-Régia”, que denotava seu interesse pela música e pela cultura. Mas não seria como compositor, nem como artista, que Sérgio ficaria para a posteridade.
Já mais velho, em 21, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Acompanhou de perto todas as manifestações da Semana de Arte Moderna. Convivia com os modernistas e foi nomeado representante em terras cariocas da revista Klaxon, uma das pioneiras do movimento. A esta altura, estudava direito da Universidade do Brasil. O jovem Sérgio, por meio de seus trabalhos jornalísticos, despontava para as letras e para as análises do Brasil, sua verdadeira vocação.
Para além da Klaxon, fundou a revista Estética e foi participante ativo de diversos jornais durante toda sua vida. Dentre esses, estavam os Diários Associados, que o nomearam correspondente em Berlim, onde passou a se interessar cada vez mais por história e buscar uma análise sobre a formação do Brasil, baseado nos autores com quem tinha contato. Nessa época, teve um filho que deixou na Alemanha e praticamente não teve mais contato. Sérgio, que diziam ter um jeito de estrangeiro, era por vezes perguntado: “Professor, o senhor é filho de alemão?”, ao que o irreverente pensador respondia “não, sou pai de alemão”.
De volta ao Brasil, continuou seus trabalhos e seu amor pela leitura, um traço marcante de sua personalidade, apontado por todos seus colegas e familiares. Em entrevistas, todos se lembravam de Sérgio em seu escritório, lugar favorito do escritor.
Um ano marcante em sua vida foi 36, quando se casou com sua esposa para a vida toda, dona Maria Amélia ou Memélia, como também é conhecida. Ainda neste ano, foi nomeado professor assistente da Universidade do Distrito Federal e publicou aquele que seria um livro divisor de águas, um marco para a historiografia e para as análises interpretativas de nosso país.
Raízes do Brasil é até hoje um clássico. Neste, Sérgio foi capaz de fazer uma interpretação das origens do Brasil que, apesar de especulativa, perdura ainda na bibliografia de qualquer bom curso de ciência humanas, como uma daquelas obras que concordando com o autor ou não, você tem que conhecer tamanha sua importância.
Em sua obra de estreia, Sergio defende que o brasileiro é o homem cordial. Não no sentido de ser um cidadão polido como se pode imaginar, mas de um povo afetuoso (cordial vêm de cordis, derivado de “coração” em latim). Em breve resumo do livro, seríamos uma nação avessa à impessoalidade. Esta característica, quando levada ao âmbito público, como o da política, acarreta em desvios como a corrupção e o nepotismo, devido ao excesso de informalidade.
Seríamos um povo que sempre dá um “jeitinho” quando lhe interessa, reafirmando a velha máxima:
“Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.”
Isso, para o autor, se deveu a certa “frouxidão” das instituições instaladas por Portugal durante a colonização, que criaram um povo por demasiado flexível. Talvez por isso o “pai do Chico” se divertisse tanto quando ele mesmo se utilizava de um “jeitinho” para conseguir mesas na noite carioca.
A partir daí sua vida acadêmica e pessoal avançaram imensamente. Em 46, voltou a morar em São Paulo, assumindo o cargo de diretor do Museu Paulista. Por meio de estudos cada vez mais calcados na pesquisa histórica, lecionou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Viveu na Itália entre 53 e 55, onde assumiu a cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma.
Mas foi em 58 que assumiu seu cargo final como professor de História da Civilização Brasileira na Universidade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Para adentrar ao cargo, foi aprovado através de um concurso, defendendo a tese Visão do Paraíso, que viria a figurar entre os maiores livros da carreira de Sérgio. A preferência foi apontada por Chico Buarque, em entrevista, em que o músico conta da vez que foi dizer a seu pai que estava lendo Raízes do Brasil, ao que ouviu de seu velho:
“Leia Visão do Paraíso meu filho, é muito melhor.”
O trabalho, com enorme rigor acadêmico, foi fruto de muita pesquisa, apesar de sido escrito em um tempo muito curto. Neste livro, Sergio estudou como os povos descobridores da terra tinham uma visão da América como um Jardim do Éden terrestre, característica que antes já tinha sido incutida à África. Deslumbrados, afirmavam frases exageradas como a da famosa carta de Pero de Vaz de Caminha: “nesta terra, em se plantando, tudo dá”.
Além de Raízes do Brasil (1936) e Visão do Paraíso (1958), Sérgio Buarque ainda publicaria diversas outras obras, muitas igualmente importantes como Monções (1945) e Caminhos e Fronteiras (1957), que tratam da povoação e colonização do interior do país, em especial de São Paulo.
Há ainda outros trabalhos como Cobra de Vidro (1944), Tentativas de Mitologia (1979) e o famoso capítulo para a coletânea Historia da Civilização Brasileira, chamado Do Império a República (1972). Por sua obra e importância, o Buarque Pai ingressou na Academia Paulista de Letras em 58 e recebeu diversos prêmios importantes, destacando-se o Juca Pato e o Jabuti, ambos em 80.
Em sua vida pessoal, foi amigo de toda uma geração de intelectuais, que frequentavam regularmente sua casa, tais quais Antônio Candido, Vinícius de Moraes entre inúmeros outros. Além dos livros, deixou como legado sete filhos: Sérgio Filho (Sérgito), também professor universitário ligado à USP, Álvaro, Maria do Carmo, Ana de Holanda, Cristina Buarque, Heloísa Maria (Miúcha) e Chico Buarque. Destes, os quatro últimos se tornaram músicos de peso que, em minha opinião, já servem como o maior contributo de Sérgio à cultura nacional, da qual ele próprio era admirador.
Aposentou-se na USP no ano de 69, em solidariedade aos colegas presos pelo AI-5. Trabalhou nos Estados Unidos e na França, contribuindo com a Sorbonne. Recuou-se a mudar sua residência de São Paulo, como queria sua esposa. Sérgio dizia que a cidade lhe trazia os ares da mocidade. Permanecera assim no bairro do Pacaembu, no casarão próximo a uma praça que, hoje, leva o nome de “Raízes do Brasil” em sua homenagem. Continuou produzindo textos até bem próximo de sua morte.
Sergio Buarque de Holanda figura entre um dos grandes intérpretes da História do Brasil, ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., entre outros. Foi e continua sendo um dos grandes intelectuais deste país, sendo tão ou até mais relevante que o próprio Chico Buarque, e sabemos que isso não é pouca coisa.
Pior para os maîtres, que perdiam a oportunidade de contar aos amigos que conheceram Sérgio Buarque de Holanda, não apenas “o pai do Chico Buarque”.
Faleceu em 24 de abril de 1982, aos 79 anos, na cidade de São Paulo.
Link YouTube | Raízes do Brasil I
Link YouTube | Raízes do Brasil II
Obs: recomendo também a cinebiografia de Sérgio, com histórias ótimas de familiares e colegas.
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