Ligo o velho Fordão. Depois de duas manhas ele ruge dócil.

O motor entra em funcionamento e lucidamente me dou conta que estou a bordo de um Ford Custom 1951 modificado, um hot rod. Autêntico, por sinal. Câmbio na coluna, três marchas a frente e uma ré.

Ligo o som e aparece na tela do DVD um filminho achado no YouTube sobre outros hots. Nem ligo, engato a primeira e o pequeno Goodzila que mantenho na minha garagem começa a se deslocar. Já na saída, minha vizinha acostumada a cor preto fosco do carango, ainda estampa a mesma cara incrédula da primeira vez que o viu.

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Aceno. Sorrisinho. Deixo-a rumo a minha aventura. Na primeira esquina, testo os freios. Parou. Alívio. De pé, na calçada, um homem estático, de sacolas de super-mercado, está petrificado pela visão. Inimaginável o que pensa ele olhando o velho carrão com visual criminoso. Forço a embreagem dura, engato a primeira, o motor V8 solta sua potência e sigo meu curso.

Sol, tarde linda e um hot rod. A vida sabe ser bela quando quer.

Vamos deslizando pela avenida e sob olhares incrédulos posso ler labialmente:

“Um Hot Wheels gigante, mãe! Olha o carro do Stallone!”

Próxima esquina. Sinal. Stop. Fico ouvindo o velho motor 8ba, projeto e arquitetura do próprio Henry Ford, ecoando sons do passado. História pura. Estou a bordo de um clássico.

Meus devaneios são de abrupto interrompidos por um motoqueiro de sorriso aberto.

“Massa, cara. Show mesmo. Ainda vou ter um…”

Arranca rápido e fico pensando no que ele disse. Vai ser um longo caminho, mano.

Sigo meu destino. Trocando marchas, trocando reminiscências. O ronco viril e o cheiro suave de gasolina vão suprindo minhas lembranças.

Adiante um aceno. Um senhor de oitenta anos. Paro o carro no meio fio. Chega na janela lentamente. Aciono o vidro elétrico. Dá tempo de ouvir a frase:

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“Muito carreguei batata num destes… Tá um pouco diferente, mas vi meu passado, obrigado.”

Sou atacado por uma emoção arcaica para um old school: ternura.

Adiante, man. Contorno mais uma esquina e já vislumbro ao longe meu destino. Construção antiga, sólida, grades. Meio quarteirão. Lá muita gente sofre e aprende. Aproximando. Diminuo. Já dá para ouvir a trilha musical do DVD: ZZ Top.

Há uma vaga bem em frente. Estaciono o monstro. Ops, homem da lei a estibordo. Leva a mão ao nariz. Já olho de canto de olho o porta-luvas. A resposta está ali. Ele sorri, acena de polegar um positivo e meneia a cabeça para cima e para baixo em tom de aprovação. Alívio outra vez.

Desligo a máquina. Dá pra ouvir pequenos estalos do motor reclamando. Abro lentamente a porta e salto do macio banco de couro para a vida real. Contorno o carro. Cromados brilhando, vidros escuros, pneus banda branca. Visual fora da lei.

Fico estático em frente à velha, mas bem cuidada, construção. Da portaria um aceno discreto. Disciplina. Abre-se o grande portão de ferro e sai quase correndo meu carona.

Arrastando sua mochila de rodinhas da Hot Whelles, vem meu filho de seis anos:

“Manero, pai, veio no Fordão!”

Coloco-o na cadeirinha elevada no banco de trás. Cinto colocado. Ainda posso vê-lo, se exibido, acenando para os coleguinhas boquiabertos. Ligo o motorzão.

Olho o relógio: ainda dá tempo pra ver Chaves na TV com meu filho.

Sou um homem comum. Pai. Marido. Sem tatuagem. Sem brinco. Mas sou cool. Tenho um hot rod.

Carlos Alberto Alvares da Cunha

Pecuarista, 54 anos, pai do Vitor, escritor frustrado, hot-rodder. Twitter: <a>@ford51hot</a>."