Eu tenho um conhecido que teve uma vida engraçada. Nasceu no interior de São Paulo, veio ainda moleque pra capital com os pais, trabalhou desde cedo ajudando aqui e acolá, no começo da fase adulta, arranjou emprego em uma das metalúrgicas do ABC, empresa que trabalhou até se aposentar. Hoje, vive de televisão, remédios e lamentos.
A vida pode ser bandida (e de fato é), mas não consigo tirar da cabeça que foi a vida que ele escolheu.
O fato é que temos duas opções em jogo: servir ao tempo ou servir à vida. O primeiro diz respeito ao cotidiano arrastado, daquele costume de falar sempre “mais tarde” e, quando se está de cara com esse, troca por um “depois”, até que o dia se acaba naquele alívio de tirar das costas o fardo de viver. Tem gente que prefere assim (e quem sou eu pra ir lá julgar).
Do outro lado da moeda, temos o “servir à vida”, que nada mais trata que dar à vida o que ela pede. E nem estou falando de grandes feitos e de brilhantes atos que ficam para a posteridade. Isso tudo diz respeito a fazer as coisas das quais se tem vontade, coisas que borbulham pela cabeça no caminho que te faz tomar outros caminhos. Como bem diz a frase do último wallpaper do PdH, “nenhum homem deveria nascer e morrer no mesmo lugar”. Tomei isso como meta de uns poucos tempos pra cá.
Conheci outra figura há pouco tempo. Seu nome é Ademar Berois, um uruguaio de mais de 70 anos que, no percurso de sua vida, teve diversas oportunidades de servir ao tempo, sentar e sossegar até que viesse mais tempo, até que esse se acabasse. Mas, só de tinhoso e turrão, Berois foi acatando os pedidos de sua vida, os anseios de seu coração jovem, até as súplicas de um idoso órgão responsável por guardar as delicias e amarguras da vida.
Danado de tudo, Ademar Berois fugiu da guarda do Estado quando criança e foi morar com parentes. Dormiu embaixo de uma mesinha que tinha, ao lado, um bau. Curioso, ele abriu a tal arca e encontrou uma série de livros do Júlio verne, e Alexandre Dumas. Foi assim que ele aprendeu a ler e a desenvolver a fala tão poética que possui hoje.
Berois foi atleta de luta greco-romana. Chegou a ganhar de um lutador duas categorias acima da sua, num golpe magistral que até saiu nos jornais da época. Berois também foi levantador de peso, competindo em diversas modalidades. Berois era um galã, parrudo e galanteador. E claro que sofreu por amor.
Com todas as qualidades esportivas, Berois se apaixonou pela música folclórica do sul. Aprendeu a tocar milonga e sempre que está com um instrumento na mão, o acaricia como se acaricia uma dama carnuda das mais belas curvas. Da força à delicadeza, Ademar Berois começou a aprender a esculpir quando jovem, aprendendo com um velho artífice. Roubou-lhe o ofício ao virar também artista plástico.
Hoje, ele divide seu tempo entre esculturas e a bicicleta, outra de suas paixões. O velhote uruguaio adora competições sobre duas rodas e, sempre que conversa com sua “magrela”, pede desculpas por não lhe dedicar o tempo que queria.
Ademar Berois, um homem cuja a vida agora vira documento. Roubando o Ofício – Ademar Berois é um filme em forma de documentário que tenta resumir todos os pequenos feitos pessoais de uma pessoa que tem, em sua essência, a vontade deliberada de servir a vida e fazer o que lhe der na telha. Um homem que mudou, e mudou e, sempre que achou válido, mudou.
Não, essa não é uma publicação patrocinada, meu amigo. É uma crônica singela sobre um exemplo de que fazer o que quer é completamente possível. Segue o trailer do doc:
Link YouTube | Feliz aquele que tem uma vida cheia de choros e sorrisos
Em tempo, por falta de espaço no texto, coloco aqui algumas imagens de fotos que consegui no dia que conversei com a figura que é o Ademar Berois. Situações que citei acima, de recortes da vida do velho uruguaio e, também, algumas das obras dele que conseguimos registrar. São belas imagens de uma vida bela.
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