Olá, meu nome é Robert Capa. Ou melhor, André Friedman. Ou melhor, Ernõ Friedmann. Modéstia a parte, sou um homem que você deveria conhecer.
O problema é que estou morto. Mas, se isso serve de consolo, sua avó pode ter me conhecido, de um jeito mais próximo do que seu avô aprovaria, caso ela tenha circulado pela Europa, Ásia ou América nos anos 30, 40 ou 50. As mulheres sempre tiveram certa queda pelo meu estilo despojado, um cigarro pendendo no canto da minha boca e várias câmeras penduradas ao redor do meu traje de combatente.
Digo que estar morto é um problema, mas isso não é exatamente um problema para mim, assim como não é nada estranho eu estar escrevendo aqui, neste momento. Sou, afinal, um defunto capaz de façanhas. Até hoje prego peças nos vivos, e também surpreendo a posteridade com minhas obras recém divulgadas. Além disso, se você nasceu nas chamadas “Geração X”, “Y” ou “Z”, saiba que quem batizou sua geração assim foi, no frigir dos ovos, eu.
Na Hungria
Nasci em 1913, em Budapeste, com o nome de Endre Ernõ Friedman, em uma família judaica. Ser judeu naquela época, inclusive na Hungria, era sinal de que haveria problemas com as autoridades. Ainda mais para alguém que, já na juventude, começou a desenhar para a Munkakör, um grupo de artistas e intelectuais vanguardistas de minha cidade natal. Meu apelido, naquela época, era “Tubarão”, e vocês podem imaginar a razão – se não conseguir, pergunte para sua avó (brincadeira).
Mal fiz dezoito e arranjei uma encrenca danada, ao fotografar e participar de um protesto contra o regime autoritário de Miklós Horthy, um declarado antissemita e rematado filho da mãe que ferrou com meu país. Lembro até que, reparando que os manifestantes se empolgavam com qualquer palavra de ordem sugerida, comecei a gritar, só de brincadeira, algo sem sentido: “Ferro-Velho, Ferro Velho”. Todos repetiram em coro.
O resultado disso é que acabei preso pela polícia secreta do Míklós, apanhei bastante e fiquei algum tempo enjaulado. Fui solto graças à intervenção da esposa de um policial, uma senhora que conhecia minha família (e que, cá entre nós, era daquelas coroas, como se dizia na época, fogosas). A única condição para eu ser libertado era que fosse embora da Hungria imediatamente.
E lá fui eu para a Alemanha, em 1931, abandonando meus pais e meu irmão mais novo.
Na Alemanha pré-nazista
O problema, claro, é que, naquela época, a Alemanha já estava infestada de nazistas, embora não tivessem ainda mostrado suas garras. A República de Weimar estava implodindo. Tentei estudar jornalismo na Deutsche Hochschule für Politix, mas a política restritiva para judeus me impediu de continuar os estudos.
Eu precisava trabalha e estava sem um tostão. Além disso, não me dava bem com a língua alemã. Porém, não queria abandonar meu sonho por um emprego braçal de imigrante do leste europeu. Como não podia ser jornalista, arrisquei tudo na atividade de fotógrafo, porque era, como disse na época, “a coisa mais próxima do jornalismo que se podia fazer sem precisar dominar uma língua”.
O mundo estava em ebulição e eu não queria ver tudo com meus próprios olhos: eu queria mais, queria mostrar a todos o que vi. Em 1932, ainda morando na Alemanha, dei um pulo na Dinamarca e, com 19 anos, já fiz meu primeiro grande trabalho: fotografei o Leon Trotsky discursando em Copenhague, após ser escorraçado pela turma do Stalin.
Percebam a situação: eu morava em um país cheio de nazis e era judeu, refugiado, socialista e tinha tirado uma fotografia do Tio Trotsky. Isso não deveria deixar os nazis muito contentes comigo. Além disso, estava passando realmente fome no meio daquela alemoada antissemita.
Em 1933, antes que acontecesse algo semelhante ao que ocorreu em Budapeste, fui para Paris.
Em Paris
Lá comecei a trabalhar como jornalista freelancer, apresentando-me como André Friedman, pois esse nome ajudava a esconder meu passado subversivo. Não me critiquem: meu grande amigo David Seymour fez o mesmo. Mesmo assim, era difícil ganhar a vida.
Em meio à dificuldades financeiras eu conheci ela, a mulher que, literalmente, construiu o homem e o profissional que eu me tornaria pelo resto de meus dias, mesmo após minha morte. Não se engane, meu amigo, todo homem precisa de uma mulher assim ao seu lado.
Gerda Taro era também judia e refugiada em Paris, assim como eu. Logo, comecei a lhe ensinar as manhas da fotografia e não demorou para ela se revelar tão talentosa quanto seu professor e amante.
Como disse, foi Gerda que me ajudou a “criar” Robert Capa. E não digo apenas o nome, embora esse tenha sido o passo inicial. Usei meu apelido de juventude (“cápa” significa tubarão em húngaro) como inspiração, enquanto Gerda concebia o produto, inventando o personagem: ela começou a oferecer meus trabalhos nas agências noticiosas locais divulgando que eram do “famoso fotógrafo americano Robert Capa”.
O truque deu certo. Pouco tempo depois, eu estava vendendo meus trabalhos e fazendo meu nome no fotojornalismo. Até hoje acho engraçada a história – pessoas que recusavam minhas fotografias mostraram interesse por elas quando o mesmo trabalho foi apresentado de modo diferente. Aprendi que não basta ter talento: é preciso fazer uma boa propaganda, ainda que com meias verdades.
Mas meu sucesso mundial, e também minha desgraça, veio com a Guerra Civil Espanhola. Em 1936, Gerda e eu fomos à Espanha cobrir a luta dos anarquistas, comunistas e democratas nacionalistas contra o golpe de estado tentado por Franco. Foi aí que meu “nome” tornou-se célebre mundialmente.
E qual foi meu segredo?
O sucesso de Robert Capa
Simples: outros fotógrafos eram menos corajosos (ou menos loucos) que eu. Antes de mim, as fotografias de conflitos armados limitavam-se somente à captura de dois momentos: antes das batalhas e após as batalhas. Pois bem: fui o primeiro a fazer fotografias durante as batalhas.
Mas, para isso, tive de agir como qualquer soldado: usando roupa de combatente, lado a lado com os soldados da Frente Popular, corri em trincheiras, engatinhei entre barricadas e rastejei próximo às linhas inimigas, esquivando-me de balas. A única diferença é eu que não empunhava uma arma, mas uma máquina fotográfica. Como eu costumava dizer:
“Se as fotografias não são suficientemente boas, é porque não se está suficientemente perto.”
Foi nessa época que capturei uma cena impactante, e a fotografia correu o mundo: um combatente, com arma na mão, morto no front durante uma batalha em Córdoba. Consegui capturar o exato momento em que ele foi atingido. Por décadas discutiu-se quem era o pobre sujeito, e a descoberta da verdade foi uma daquelas peças que preguei e da qual só ri totalmente depois da minha morte.
Mas depois explico.
O que preciso contar agora, vou contar rapidamente, por me doer muito. É que, ao lado da fama, veio a tragédia. Em 1937, cobrindo a Guerra Civil Espanhola próximo à Madrid, o amor da minha vida morreu em um acidente de carro estúpido. Gerda e eu estávamos noivos, embora isso fosse segredo, e prometi que jamais me casaria com outra mulher.
Como disse em uma entrevista a Marta Gellhorn, “em uma guerra, você precisa odiar alguém ou amar alguém, você precisa ter uma dessas situações se não, não consegue suportar o que acontece”. Com a morte de Gerda, eu não tinha mais o amor que me sustentava no campo de batalha. Também frustrado com os rumos da Guerra Civil na Espanha, voltei para casa, mas os nazistas estavam à espreita, salivando para tomar a França. Tive de me refugiar no novo mundo, e fui para Nova Iorque em 1938.
Nos Estados Unidos, por pouco tempo
Porém, não me afastei do front. Ao contrário, mergulhei no meu trabalho, tornando-me íntimo do perigo e da guerra, flertando com a morte. E nada disso faltava durante a Segunda Guerra Mundial. No mesmo ano em que saí da Europa, voei para a China, a fim de cobrir a luta da resistência contra a Invasão Japonesa. Como certa vez disse, “para um correspondente de guerra, perder uma invasão é como recusar um encontro com Lana Turner após completar cinco anos de prisão em Sing Sing”.
Falando em atrizes, ao retornar para Nova Iorque, me envolvi com a esposa de um ator britânico. Não me condenem, era uma ruiva irresistível, e seu marido não dava conta do recado. Além disso, acho que vocês, brasileiros, vão aprovar minha conduta ao saberem que John Justin era filho de um argentino. Minha relação com Elaine Justin durou quase até o fim da Segunda Guerra e, naquele tempo, eu ficava mais tempo cobrindo batalhas do que ao lado dela.
O resultado foi que ela me trocou por outro cara.
Mas não havia tempo para lamúrias. Em meados de 1943, acompanhei as tropas americanas em sua movimentação pela Sicília e Nápoles, tentando enxotar os nazistas da Itália. Lá, tive uma das lições mais terríveis sobre a verdadeira natureza das guerras.
Chegando a Nápoles em outubro, deparei-me com o funeral coletivo de vinte adolescentes que se tornaram partisans e pegaram em armas antes da chegada dos aliados, para combater o fascismo. A professora deles, também morta, havia sido a líder da tropa juvenil. A cerimônia ocorria em uma história, e lembro de ter descrito a cena em minhas memórias:
“Entrei na escola e fui tomado pelo cheiro doce e azedo que vinha das flores e dos mortos. Na sala, estavam vinte caixões improvisados, não suficientemente coberto por flores e pequenos demais para ocultar os pezinhos sujos das crianças – crianças maduras o suficiente para combaterem os alemães e serem mortas, mas também crescidas demais para caberem em seus caixões.
Aqueles pés de crianças mortas era a forma como a Europa, onde nasci, escolheu me recepcionar. Tirei meu chapéu e saquei minha câmera. Apontei a lente para as faces das mães prostradas… aquela foi a minha imagem mais verdadeira sobre a vitória em uma guerra.”
Também estive na Normandia naquele famoso “Dia D“, quando as troças aliadas começaram uma investida definitiva contra as forças do Eixo. Fiz 106 fotografias da invasão das praias normandas, mas um problema técnico fez com que sobrassem apenas onze, que fizeram história.
Durante o tempo que acompanhei as tropas americanas, testemunhei o horror criado pelos nazistas. Até então, no mundo livre havia apenas boatos, notícias não confirmadas a respeito daquelas monstruosidades em que meu povo era exterminado. Muitos fotógrafos, naqueles dias, capturaram imagens dos campos de concentração. Eu, porém, do Reno a Order, não capturei imagem alguma. Como disse em minha autobiografia, “os campos de concentração estavam cheios de fotógrafos, e cada nova fotografia servia apenas para diminuir o efeito total do terror”.
Mas falemos de amenidades. Naquele tempo a atriz Ingrid Bergman (se eu não flertei sua avó, leitor, ao menos ela sabe quem foi Ingrid Bergman… pergunte a ela!) estava na Europa levantando a moral dos soldados americanos, e eu dei um jeito para que ela levantasse a minha moral de um modo especial. Retornamos juntos para Hollywood em 1945, e ganhei um bom dinheiro trabalhando para produtoras americanas, mas era tedioso e Ingrid não era Gerda.
No ano seguinte, já não suportava mais aquela vida longe da ação. Dei um fim a tudo isso e viajei para a Turquia.
Em 1947 fui para a União Soviética com um grande amigo que fiz na América. Se você não leu até hoje as obras do meu camarada John Steinbeck, lamento sinceramente. Recomendo que interrompa suas leituras e leia agora sua obra Vinhas da Ira, que resume muito bem a visão que tínhamos sobre a sociedade. Viajamos por Moscou, visitamos as ruínas de Stalingrado e, disso tudo, saiu no ano seguinte o livro Um Diário Russo, escrito por John e ilustrado por mim.
Retornei da viagem determinado a colocar minhas ideias políticas a serviço da minha profissão. Foi assim que fundei uma cooperativa de fotógrafos em Paris, chamada Magnum Photos, da qual participaram alguns dos maiores talentos da fotografia do século XX, como Henri Cartier-Bresson e o corajoso George Rodger. A cooperativa está em funcionamento até hoje, enfrentando a era digital com bravura, e ainda é um bem sucedido exemplo de empreendimento comunitário, do que tenho muito orgulho.
Bom, foi justo nessa época que inventei o termo “Geração X“, usando-o para batizar um ensaio fotográfico sobre jovens que atingiram a maturidade imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, uma geração promissora mas com um futuro cheio de dúvidas diante de si. Logo a seguir, em uma viagem de divulgação da Magnum Photos no Japão, um jornalista me perguntou se eu aceitaria fazer a cobertura da Guerra na Indochina.
Não foi preciso muito para que eu aceitasse o desafio. Em 25 de maio de 1954, quando o regimento francês que eu acompanhava passou por uma área sob o poder do inimigo, afastei-me do comboio para conseguir um bom ângulo. Pisei em em um campo minado. Não lembro de qualquer explosão.
Foi aí que morri.
Se você pensa que minha história acaba aqui, está muito enganado. Surpreendo, brinco e encanto os vivos até hoje.
Lembrem-se que sempre houve muita especulação sobre a identidade soldado que fotografei morrendo em combate. Várias teorias surgiram, algumas especulando que ele era Frederico Garcia, o “Taino”, valente combatente anarquista que foi atingido no front. Porém, em fevereiro desse mesmo ano (é, em 2013!), um japonês chato, também fotógrafo e escritor, estragou a peça que preguei e que perdurou por décadas.
Em um especial para a televisão de seu país, ele conseguiu provar que, na verdade, o soldado não havia sido atingido fatalmente, quando o fotografei: ele apenas torceu o pé enquanto corria pelo campo de batalha.
Mas o melhor é a história da “maleta mexicana”.
A maleta mexicana
Link YouTube | La Maleta Mexicana (2011) – Filme complesto
Em 1995, começaram a surgir boatos de que, escondido em algum lugar, havia centenas de negativos inéditos de fotografias minhas durante a Guerra Espanhola.
A verdade é que pensei ter perdido esses negativos durante a invasão nazista na Europa, mas meu amigo e ajudante Imre Csiki Weisz, ao qual eu enviava minhas fotografias para que as revelasse, salvou-as em uma maleta que viajou tanto quanto eu e acabou, anos depois, nas mãos de um diplomata mexicano, o qual não deu muita importância para o tesouro, descoberto décadas depois por seus herdeiros. Como disse o curador do International Center of Photography, aquela maleta era o “Santo Graal” da minha biografia profissional.
Essa história até inspirou um comovente documentário de Trisha Ziff, intitulado La Maleta Mexicana, que fala não apenas de mim, mas de Gerda, do meu amigo Chim e da valorosa aventura dos combatentes da Guerra espanhola, que você pode (após ler Vinhas da Ira) assistir no vídeo aqui de cima.
Bom, é isso, meu amigo. Agora posso chamar você de amigo, já que conheceu minha história.
E se você tiver mais alguma dúvida a meu respeito, pode perguntar a alguma amiga de sua avó (dessa vez pouparei sua família da brincadeira, em nome de nossa recente amizade) que tenha viajado pela Europa, Ásia ou América do Norte nas décadas de 30 a 50.
Porque, bom, você sabe, meu sobrenome é “Tubarão”.
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