Levanto para trabalhar e a Polícia Militar continua em greve na região metropolitana de Recife.

Trabalho no bairro da Boa Vista, coração da cidade. Liguei agora há pouco e o meu superior disse que as ruas estão em clima de The Walking Dead. Ele achou melhor que eu ficasse em casa.

Os aplicativos de mensagem disparam alertas sem parar no meu celular. Não sei se a situação está como é alardeado nas redes sociais, mas são tantos boatos sobre assalto e arrastão que a cidade está um caos. O medo circula por todas as ruas, estampado em cada rosto que ainda tem a ousadia de seguir seu caminho.

Lembrei do filme A Origem, quando perguntam ao personagem interpretado pelo Leonardo DiCaprio “qual o parasita mais resistente?”. Ele responde que é uma ideia.

Sim, muitas pessoas foram assaltadas, lojas foram saqueadas e terão de arcar com prejuízos e todo o sentimento de tensão permanece. No entanto, o que se enfatiza nos principais jornais e veículos de mídia é uma busca por culpados e inocentes, inclusos e exclusos, heróis e vilões.

É como se alguém muito esperto tivesse percebido que estamos tão viciados em entretenimento, que a melhor forma de chamar nossa atenção é pintar cada cena de violência como parte de um filme de ação, com toda a excitação e drama típicos do gênero.

“Hoje não podemos sair apenas com a câmera, é preciso se proteger com capacetes, coletes e máscaras de gás. É um clima de guerrilha urbana e não sabemos o que poderá ocorrer nos próximos protestos. A prova de que estamos em uma guerra é que a minha foto foi selecionada entre outros registros de conflitos, como Síria e Nigéria.” | Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem (Clique para saber mais sobre a fotografia)
“Hoje não podemos sair apenas com a câmera, é preciso se proteger com capacetes, coletes e máscaras de gás. É um clima de guerrilha urbana e não sabemos o que poderá ocorrer nos próximos protestos. A prova de que estamos em uma guerra é que a minha foto foi selecionada entre outros registros de conflitos, como Síria e Nigéria.” | Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem (Clique para saber mais sobre a fotografia)

O ponto é que temos pessoas reais e não dublês e efeitos especiais envolvidos nisso.

É interessante como, em meio a tudo isso, começam a surgir, no celular, vídeos e mensagens parodiando toda a situação. Mesmo com as pernas tremendo, não conseguimos parar de falar inutilmente e realmente encarar a situação.

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Em paralelo, nas conversas entre amigos e amigas, surge uma espécie de competição para ver quem saiu primeiro do trabalho e passou por mais situações aterrorizantes no caminho. Há uma comemoração individual sobre as atrocidades que se presencia e um certo esquecimento de que há um todo, vários personagens envolvidos, reivindicações e revoltas de pessoas que desejam a mesma sensação de alívio.

No final, para o “cidadão de bem”, a discussão se torna apenas uma questão de como o caminho para o trabalho se tornou mais complicado.

Nesse filme, parece claro que os supostos malfeitores são aqueles que reivindicam melhores condições de trabalho e sobrevivência.

A mídia local cultua o sensacionalismo e cada um desses eventos é visto como sendo uma consequência direta da greve. Mas, se olharmos com cuidado, não é necessário que um órgão de segurança pública entre em greve para que essa onda de pânico e descontrole ecoe nas ruas. O medo já estava lá, desde o começo.

Basta que uma única engrenagem desse grande sistema pare e os outros setores seguem esse fluxo. Basta uma falha no processo e largamos toda a coerência, nos desfiguramos completamente em seres irreconhecíveis. É como se os movimentos de greve causassem um curto-circuito no que diz respeito a comer, pegar um transporte, bater cartão, fazer algo e voltar para casa com um sorriso. Subitamente, nosso lado monstro aparece com toda sua potência.

E ainda achamos que estamos no controle da situação porque temos alguns trocados e conseguimos manipular certos eventos à nossa volta. O que mais precisa de controle nós somos incapazes de controlar.

20h30m. Termina a greve dos policiais militares em Pernambuco.

Roberto Sampaio

Roberto Sampaio perde muito tempo de sua vida num palco imaginário. É guitarrista de blues, compositor, já fez aula de canto e é fã do Jimi Hendrix. Trabalha nas horas vagas como engenheiro. Pode ser encontrado nas ruas recifenses batucando em algo, <a>ou no Facebook</a>."