Eu estava saindo de casa num dia como outro qualquer quando aconteceu algo me impressionou um pouco. Na verdade, não era um dia tão “qualquer” assim, e nem foi tão pouco assim. Eu estava de muito bom humor, o que para um jovem da minha idade, que trabalha, fica no fio da navalha todo fim de mês e tenta se virar nessa vida, é um dia especial.

Estava indo para agência, pensando nos jobs que teria no dia, quando um velho que vinha subindo o morro (que eu começara a descer) parou abobalhado, me olhou de cima em baixo e soltou a pergunta:

“Quantos quilos?”

Parei por um segundo sem saber o que fazer… talvez a primeira vez em muito tempo que eu fiquei sem palavras. Enquanto o velho olhava pra mim, rindo, esperando uma resposta, eu me recompus e continuei meu caminho. O bom humor havia ficado na esquina, no início do morro. Deve estar lá até hoje. De vez em quando passo por ele e me lembro do velho. Não me lembro de ter olhado para trás.

Eu sempre fui gordinho, gordo e atualmente estou gordo para caralho. Talvez a melhor resposta para o velho seria exatamente essa constatação. Só que eu não consegui falar nada, porque talvez, de todas as vezes que escutei algo do tipo, eu nunca tenha me sentido tão mal. Por que aquele velho se sentiu no direito de me parar na rua e sem mais nem menos me perguntar isso?

Eu acho que se ele só falasse que eu tava gordo, ou que eu precisava de emagrecer, eu talvez não sentisse tanto — o que não seria menos invasivo da parte dele.

Fui para o trabalho pensando em mil coisas que eu podia ter dito. Que eu podia ter dito que ele estava errado, que não se para uma pessoa na rua e pergunta algo assim. Que ele era só um velho. Que… bem, eu estava gordo mesmo, então eu merecia.

Foi aí que eu engoli de vez a bolota de chumbo que tava na garganta.

Eu tinha sofrido algo comparável ao que todo tipo de minoria sofre todos os dias e que eu, nunca nessa profundidade havia sentido antes. Pensei nas pessoas que sofrem esse tipo de coisa todos os dias, a vida toda. O buraco negro que se cria no seu âmago é insuportável. Suga todo seu humor, toda sua boa vontade e toda sua perspectiva. Questionei como as pessoas conseguem viver com isso.

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A culpa é o que mais alimenta o que chamei de buraco negro. Um sentimento comum até, quando acontece esse tipo de coisa. E a pior parte da culpa são as memórias que ela traz.

Lembrei de um barbeiro, lá de Monlevade, Minas Gerais, falando para a moça da locadora que eu estava (vivi metade da minha infância/adolescência em locadora):

– Você acredita que ele parou na frente da barbearia e ficou me olhando? Me olhando?!

– É mesmo?

– É, uma bicha… gorda ainda por cima. Você acredita? Uma bichia, gorda, ficou me olhando na porta da barbearia, parado assim assim, me olhando de cima embaixo.

– …

– Ele veio, parou assim… veado. Gordo ainda.

Foi nessa hora que ele me viu. Eu cortava cabelo com ele, meu pai e meu irmão também. Fingiu não me conhecer e, olhando pra mim, continuou repetindo com nojo, cada vez mais aparente na sua expressão, “bicha” “gordo ainda, o filho da puta.”

Eu peguei a fita que queria alugar, entreguei pra moça, fiz todo o trâmite com ela, enquanto o barbeiro continuava a repetir sua revolta com bichas gordas que o olhavam. Fui embora da locadora lançando um olhar de pena da moça que, deus sabe quanto tempo ainda teria que escutar a ladainha, e me sentindo mal, sem saber direito o porquê.

São dois casos diferentes, mas que me fizeram sentir praticamente a mesma coisa: pior. Fica um gosto ruim na boca, como quando você come algo podre. E me faz, hoje, sentir ainda mais empatia para quem passa por esse tipo de coisa diariamente.

Obs.: esse texto foi originalmente publicado no Medium.

Pedro Turambar

Pedro tinha 25 anos e já foi publicitário. Ganha a vida fazendo layouts, sonha em poder continuar escrevendo e, quem sabe, ganhar algum dinheiro com isso. Fundou o blog <a>O Crepúsculo</a> e tem que aguentar as piadinhas até hoje. No Twitter