Disseram o nome de Belito e Laís teve um sobressalto. Por um instante, pensou que fosse um advogado, mas estava muito tarde pra se falar de divórcio.

— A senhora é a esposa? — Insistiu a voz.

Laís hesitou.

Ele saíra de casa fazia dois meses, se declarando sem intenções de voltar. Levara só uma valise. Como estava se virando com tão pouca roupa? Belito sempre usou, no mínimo, duas cuecas por dia.

Sobre o aparador, permanecia a marca redonda na poeira. O abajur tinha se quebrado em tantos pedaços que Laís nem tentou colar. Havia sido ela a primeira a falar em separação, é verdade, mas a iniciativa de sair fora de Belito.

— Sou a esposa. — Afirmou, incerta.

— Meu nome é soldado Josino, da 7ª CIPM. — Começou o outro. Quase deu seu número de registro — Aconteceu um acidente. Se a senhora pudess—

— Acidente? Com o Belito? Ele está bem?

Silêncio.

The Wu Village (1993), por Wu Guanzhong
The Wu Village (1993), por Wu Guanzhong

O soldado Josino acabara de se graduar. Aquela era sua primeira emergência. Espremeu o cérebro: o que o major Ruas faria se estivesse aqui? Mas o major Ruas não estava lá e não disse nada:

— Seu marido… morreu. Se a senh—

— Onde?

— Na Sernambetiba, logo antes do Barramares. Do lado da cabine da PM. Foi agora, quer dizer, eu vi tudo. Aconteceu muito rápido, mas já chamei uma ambulância. Se a senhora quis—

Laís morava no Barramares, em um dos prédios detrás, e cruzou o condomínio de camisola e descalça. Será que Belito estava vindo encontrá-la?

Distinguiu o Suzuki cinza de longe, encravado em um coqueiro e virado sobre a lateral esquerda. O lado do motorista. O lado de Belito. Correu mais.

Quanto ao solitário Josino, aquela aparição branca e esvoaçante terminou de lhe destruir os nervos. As rosas amarelas espalhadas pela grama pioravam a situação. E soprava um vento que Josino, mesmo acostumado aos vendavais da Sernambetiba, considerava gelado demais para fins de maio no Rio. Ele se sentia doente.

Laís foi direto para o canteiro central.

O Suzuki Hatch, pequeno e frágil, parecia uma sanfona espremida contra o coqueiro. Por debaixo das ferragens, escapava um braço. Laís reconheceu o Tissot retangular de Belito. Tinham comprado juntos, na Rue de Mont Blanc, em Genebra. Belito adorava o relógio.

Josino se aproximou:

— É proibido… A senhora não pode—

A violência do impacto quebrara todos os vidros do Suzuki. Ela se ajoelhou sobre os cacos e baixou a cabeça, procurando pelo resto de seu marido. Nada. O carro, tombado para a esquerda, bloqueava a janela do motorista e deixava revelar apenas aquele braço.

Laís engatinhou sobre a grama. Pelo pára-brisas, também não conseguiu vê-lo. Estava escuro e ela enxergava somente um amontoado indistinto. Teve a impressão de que toda a parte interna do automóvel despencara sobre Belito.

O soldado Josino ia acompanhando as perambulações da estranha, agoniado. Tocaiava os confins da avenida: onde estaria a patrulhinha, a ambulância, algum superior, alguém?

De repente, ela se levantou.

Vez ou outra, o vento forte agitava a camisola e revelava porções de seu corpo. E Josino se perguntava: Será que ela não sente frio?! A mulher tinha pernas bonitas e ele reparou o sangue escorrendo de seus joelhos:

– Hã… A senhora não devia andar descalça por aqui. Tem cacos de vidro, sabe?

Laís se esticou na ponta dos pés, tentando alcançar a janela do passageiro. Não conseguiu. Alto demais. Precisava ver Belito, mas como?

Recuou um passo e pisou em uma rosa. Tinha as solas dos pés tão cortadas que nem doeu. Ainda estavam sensíveis o bastante, porém, para que ela pudesse diferenciar um caco de vidro dos espinhos de uma flor.

Percebeu as rosas. Espalhadas por todos os lados. Rosas amarelas, suas preferidas. Laís recolheu uma das flores e cheirou-a.

— Coitado, não foi culpa dele! — Desembestou o soldado Josino, renunciando à sua tentativa de autocontrole.

— Eu vi! Eu vi! — Repetiu.

Josino precisava falar:

— Ele nem vinha rápido, não. — Contou — Estava sozinho na pista da esquerda. Só ele na rua.

Laís olhou em volta: as flores haviam se espalhado por uma área maior do que ela imaginaria. Chafurdar o Suzuki seria inútil. Começou a procurar pela grama. Talvez encontrasse outros sinais de Belito, além das rosas.

— Quase aqui em frente à cabine, — Prosseguiu o soldado — ele deu seta pra direita nem sei por quê, como se fosse entrar no Barramares. Seta pro nada: não tinha ninguém atrás.

Apenas rosas, ela pensou. Rosas amarelas, mas apenas rosas. Continuou procurando.

— Ele vinha trocando de pista tranqüilo, devagar, a seta ligada até, quando, de repente, esse jipe apareceu sei lá de onde. A uns cento e sessenta quilômetros por hora, no mínimo! Um absurdo!

Nas sombras do carro destruído, Laís encontrou o embrulho, depositado aos pés de um coqueiro como presentes sob uma árvore de natal. Abaixou-se para recolhê-lo.

O soldado Josino estava revoltado:

— Nas madrugadas de fim-de-semana, esses moleques de condomínio acham que a Sernambetiba é pista de corrida. Toda hora tem pega por aqui. Cento e sessenta virou velocidade normal, vê se pode! E o safado do jipe ainda vinha pela direita!

Zhangjiajia (1997) de Wu Guanzhong
Zhangjiajia (1997) de Wu Guanzhong

Laís reconheceu de imediato aquele papel de presente verde-escuro: Kosmos, no Centro, o sebo favorito dos dois. Escrito em caracteres grandes, com caneta fosforescente, estava o seu nome: Laís.

A caligrafia geométrica de Belito era inconfundível, mesmo em apenas quatro letrinhas. Havia o L apertado, formando um ângulo agudo ao invés de reto; o a que, com sua junção do meio rebaixada, parecia um triângulo; o acento do i mais longo do que a própria letra; e o s sem curvas, na verdade um z ao avesso. Belito, com certeza.

Atrás dela, Josino leu as quatro letras e, finalmente, fez a conexão entre essa estranha e a voz com a qual falara ao telefone.

Quis sumir de vergonha, mas reparou um sorriso no rosto de Laís. Ela sorria! A viúva!

Ansiosa, mas tomando cuidado pra não destruir o papel, Laís desembrulhou o presente. Belito conseguira! De algum modo, ele e seu Maurício, o curador do sebo, tinham encontrado o que o ela procurava há catorze anos: Quando Morrem os Pêssegos, de Jácome Gol, primeira edição, de 1925. Agora, uma vez mais, Laís possuía todos os livros de um de seus autores prediletos.

No começo do casamento, Belito e ela haviam morado no Chile, em uma casinha simpática no bairro de Vitacura. Um belo dia, porém, em junho de 1982, uma cheia do rio Mapocho lavou a casinha simpática do mapa. As águas carregaram tudo o que tinham — naquela época, verdade seja dita, era pouco — mas esse pouco incluía os únicos cinco livros publicados de Jácome Gol, verdadeiras raridades.

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Da desgraça, nasceu um passatempo delicioso, que os uniu ainda mais: vasculhar os sebos do país e reconstruir, livro a livro, a biblioteca que fora por água abaixo. Catorze anos depois, faltavam apenas alguns; entre eles, o seu preferido: Quando Morrem os Pêssegos.

Folheou o presente. Estava repleto de trechos sublinhados e anotações nas margens. Seu dono anterior, com certeza, também era entusiasta de Jácome Gol.

Voyeuse, Laís se lembrou de outro prazer íntimo que dividia com Belito: xeretar os comentários de leitores passados, desvendar a alma deste estranho que lera aquele livro sabe-se lá quando, mas que deixara nele a marca de suas opiniões.

Assim, eles passavam horas e horas. Enroscados na cama, virando páginas que quase se desfaziam em suas mãos e discutindo o motivo pelo qual uma frase havia sido sublinhada décadas antes.

E tudo sempre acabava em sexo. Pelo menos, durante os bons tempos. Mas Laís não queria saber de nenhum outro tempo.

Levou o livro ao nariz e saboreou o aroma de papel velho.

Parece criança com brinquedo novo, pensou Josino. Abria, folheava, passava de mão em mão, até cheirava. Sempre com aquele sorriso bobo nos lábios, um brilho estranho nos olhos.

Mas ela era a esposa. A viúva, se corrigiu. Merecia um relatório completo da morte do marido. Assumiu sua postura militar — ficava mais à vontade assim — e continuou de onde havia parado:

— O jipe vinha pela direita, a uns cento e sessenta quilômetros por hora. Quando seu marido começou a trocar de pista, com a seta ligada, o jipe não estava nem visível ainda. De tão rápido, imagino que ele deve ter aparecido de repente no espelho retrovisor do Suzuki. Então, pra evitar a batida por trás, seu marido guinou pra esquerda, acabou perdendo o controle do carro e subiu no canteiro.

Completou:

— Foi isso.

Cranes Dancing (2002) de Wu Guanzhong
Cranes Dancing (2002) de Wu Guanzhong

Pronto. Josino sentiu-se aliviado. Cumpri minha obrigação. Fiz o que podia. E deu de costas para a mulher do livro.

Uma longa dedicatória enchia a segunda capa e as primeiras páginas dos pêssegos, espremida por entre o nome do autor, o título e os dados bibliográficos. Ambos nunca hesitaram em deixar sua marca nos livros que liam, fossem raros ou valiosos, e os excitava imaginar um outro casal, décadas no futuro, tentando decifrar suas vidas e motivações.

Uma, duas, três vezes Laís repassou aquelas palavras. Belito pedia perdão: listava, em sua mea-culpa, erros novos e antigos, e implorava por clemência. Laís riu. Como se ela também não tivesse estourado sua cota de erros!

E se o amor de Laís abonara tantos crimes anteriores, escreveu ele, tomara que ainda restasse piedade para absolvê-lo uma última vez. Porque ele estava voltando. Na verdade, Belito observou, queria ter voltado há tempos. Adiara o retorno por achar que algo assim importante deveria acontecer em uma data especial.

Afobada, Laís olhou para o relógio. Uma e meia da manhã. Já era sábado, 25 de maio de 1996. Ela pensara nisso o dia inteiro e, na afobação da noite, acabara esquecendo:

25 de maio de 1996, seu aniversário de casamento.

Na dedicatória dos pêssegos, Belito dizia tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco. Suas frases sugeriam mais do que afirmavam e concluíam, quase todas, com o lembrete de que poderiam conversar sobre aquilo pessoalmente. Que teriam o resto da vida para falar sobre o que quisessem. Pessoalmente.

A última linha, entretanto, era enfática:

Do seu marido, Belito. 25 de maio de 1996. 15 anos completos de paixão.

Sublinhara ele próprio as duas palavras, um velho hábito seu. Gostava de dar ênfase ao que considerasse essencial.

Também costumava se gabar do uso exato que fazia da linguagem. Desta vez, como sempre, ele fora preciso em seus termos. Escrever 15 anos completos de felicidade seria hipócrita. Ambos lembravam-se bem dos maus momentos. Haviam sido muitos.

Mas a paixão, de fato, estivera presente durante cada dia daqueles quinze anos. Sem abatimento, sem falta. A mesma paixão que os mantinha unidos alimentava os golpes que desferiam um contra o outro. Golpes intensos, às vezes cruéis. Sempre apaixonados. Da paixão ela jamais duvidara.

Começou a chorar.

Feito o relatório, Josino se afastara. Que digerisse sozinha a dor, refletiu. Quanto a ele, cabia-lhe esperar pela ambulância que não chegava nunca.

Aproximou-se ao reparar as lágrimas de Laís e ficou ainda mais sem graça. Sentiu-se quase culpado. De algum modo, deveria ter impedido o acidente. Era ele, Josino, o responsável pela viuvez da mulher.

Acariciou os ombros daquela completa estranha. Em sua cabeça, a experiência compartilhada pelos dois, em uma madrugada fria defronte à praia, lhe permitia a liberdade do toque. Apenas, para evitar mal-entendidos, tomou cuidado com o gesto e foi o mais suave que pôde:

— Fica assim não, dona Laís. Sei como a senhora se sente, já passei por isso também. A gente tem que ser forte, tem que confiar em deus. Não fomos nós que perdemos uma pessoa amada, foi deus quem ganhou uma.

Laís aceitou a carícia. Virou-se para ele e percebeu, pela primeira vez na noite, a presença do policial. Mas Josino entendera tudo errado.

Ela não perdera nada. Pelo contrário.

Abraçou o livro: Laís estava chorando de felicidade.

Aqui você encontra “Quando morrem os pêssegos” e outros quatro contos sobre perda.
O conto que você está lendo, "Quando morrem os pêssegos", faz parte do meu recém-lançado livro de contos Onde perdemos tudo.

Onde perdemos tudo, livro de contos de Alex Castro

O conto “Quando morrem os pêssegos” faz parte do meu livro Onde perdemos tudo, que está sendo lançado esse mês pela editora Oficina Raquel, com projeto gráfico da artista plástica Isabel Löfgfren. São cinco contos unidos pelo tema comum de perda: perda de amizades, perda de amores, perda da vida.

O lançamento paulista é depois de amanhã, sexta, 14 de outubro, às 19h30, na Casa das Rosas. O lançamento carioca vai ser na quinta, 20 de outubro, às 18h, no Castelinho do Flamengo. O livro já está disponível em pré-venda, pelo site da editora, e será enviado no dia 21 de outubro. Quem comprar antes disso ganha um exemplar autografado com uma dedicatória personalizada. Compre aqui.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu