O amor, aplicado numa relação, deveria pressupor companheirismo. Algo assim como a relação de protocooperação entre o pássaro-palito e o jacaré: nessa situação, ambos se ajudam, embora não necessitem um do outro para sobreviver.

Para além daquela vez que você pegou o carro do(a) companheiro(a) na oficina ou assumiu o posto de sous chef enquanto a(o) outra(o) liderava a cozinha, há um tipo de cooperação mais sutil e não menos importante que é capaz de içar o relacionamento a outro estágio — tornando-o mais sustentável e saudável.

No sono, o jacaré deixa o pássaro comer os restos. Um se alimenta e o outro fica com a boca limpa. Sucesso

Em fevereiro, viajei de Kombi com uma amiga, Jaqueline Scissar, que decidiu cair na estrada sozinha, depois de um ano planejando a viagem que a faria cruzar o Brasil. Antes disso, teve de driblar obstáculos menos visíveis que buracos na estrada, problemas mecânicos e até o dinheiro contado no bolso: A Jaque tinha um namorado que não a incentivava.

Na maioria das vezes, a insegurança se manifesta travestida nessa falta de apoio. O medo que o outro se sobressaia e veja que o que tem ao lado não é suficiente faz com que não queiramos impulsionar o(a) companheiro(a) a voos maiores. Vai que ele não volte?

Ausentar-se na hora do incentivo ou até desestimular a outra parte é um artifício que parece inevitável nesse cenário incerto. Faz com que nos sintamos mais seguros, até que um novo trampolim inevitavelmente surja na vida alheia e nos sintamos, novamente, ameaçados. E ser homem, em certa medida, é uma construção de identidade baseada no medo.

Por isso, tal postura é ainda mais evidente quando pensamos em relações heterossexuais em que há raízes fincadas no machismo estrutural em que somos educados. É difícil para eles, que desde a tenra infância são ensinados a serem provedores, compreender que suas companheiras são fortes e independentes o suficiente para, por exemplo, cruzar um país sem o seu auxílio.

Existe uma receita cultural de como um menino e um homem devem ser, agir, sentir e falar — e esse código de conduta que rege o comportamento masculino é combustível histórico do machismo. É nocivo para nós, mulheres, obviamente, mas também pode ser uma prisão para quem leva a carga nas costas, às vezes por uma vida inteira. Há uma nova masculinidade possível — e mas benéfica para todo mundo.

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Durante um tempo, a Jaque tentou convencer o namorado a acompanhá-la. Depois de muitas tentativas em vão, decidiu seguir viagem sozinha. A reação veio em forma de desencorajamento. Perigos na estrada, incapacidade e vulnerabilidade foram alguns dos argumentos usados para desmotivá-la. Por sorte, Jaque não esmoreceu. Entre a possibilidade de ver-se presa ao lado de alguém que não apoiava seus sonhos e a chance de ganhar o mundo, decidiu alçar voo solo.

Comprou a kombi e uma nova parceria nasceu, Jaque & Antônia. Juntas, saíram de Florianópolis, Santa Catarina, e foram até a Chapada Diamantina, na Bahia. "Mas você viaja sozinha?" foi a frase mais ouvida durante o trajeto. Sim, sozinha. Porque nem Jaque nem ninguém precisam de companhias que não nos incentivam a ser o melhor que podemos.

Num relacionamento protocooperativo, a relação é harmônica e ambos (ou mais envolvidos) são beneficiados. Se a companheira vai fazer a viagem dos sonhos, o amado está ali para ajudá-la a fazer as malas; se o namorado tem de mudar de cidade por conta do trabalho, o companheiro dá aquele incentivo, sem fazer o jogo sujo do "você terá de escolher o que é mais importante pra você".

É mais sobre suporte e menos sobre egoísmo.

Porque o amor é feito para quem se dá. Para quem tem pernas para acompanhar o outro nas aventuras, quando necessário, e braços para recepcioná-lo na volta, quando ele precisar ir por si só. Companhia, afinal, é isso: participar das ocupações, atividades e do destino de outra pessoa — e saber apoiá-la, até mesmo quando você não faz parte da estrada.

Gabrielle Estevans

Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Certa feita, enamorou-se pela palavra inefável. Desde então, também mantém uma lista de pequenas coisinhas indizíveis.