Eu já estava cansado. Sim, sem dúvidas. No entanto, a sexta-feira é um dia reservado para esquecer o nascimento. Pra mim soa mais como o gongo de uma luta de boxe entre um adolescente desengonçado e purulento e o Muhammad Ali em sua época de ouro.

Sem programas. Sem pessoas. Chegar em casa. Lambidas mornas do velho pulguento nas canelas. Deitar na cama. Apagar a luz. Silêncio. Caralho, como eu sou otimista! Nem pensar!

— Vamo lá, Olivo! Esses gringos não vão sair daqui com as próstatas vazias e as caras limpas! — disse David, o editor.

Dois búlgaros vieram visitar a filial pobre, portanto precisam de macacos amestrados à disposição. Ambos com bochechas peludas e na casa dos malditos trinta e poucos. Droga, vou ter que tomar uísque de novo pra aturar esses picas-finas! Após o primeiro drinque já tô com vontade de enfiar o dedo no meu rabo e rasgar tudo. Roubar uma garrafa de conhaque, um bom charuto e estourar minha garganta com qualquer filho da puta na rua. Morder a garganta de um daqueles gordos idiotas e mijar nas famílias sentadas às mesas. Porém, me levanto discretamente e sussurro ao ouvido de David:

— Tô fora, David. Mais uma hora aqui e vou arrebentar uma hemorroida.

— Porra, Olivo! Daqui a pouco a gente vai no Photo, cê vai perder essa? Na faixa? — Retrucou David arregalando os ovos de codorna.

— Essa e se tiver outras também. Até mais.

Ao sair ainda consegui ouvir “Qual o problema desse viado?” e “Ele é sempre sério assim… deve ser ausência do pai na infância”. Tudo bem. A nossa capacidade de abstração é que nos permite xingar e rir dos doentes e de qualquer coisa que não entendemos.Viva a razão!

Na rua, viados com botox e silicone à base de petróleo. Mendigos, putas e a famosa fragrância potente de mijo seco. Sem novidades. Pego o metrô. Para as pessoas de narizes delicados, ruminantes da humildade, preocupados com o próximo (filho da puta, que fique bem claro), amamentadores de ideias parecidas com as lasanhas de micro-ondas, patricinhas cheirosas com seus namorados maconheiros e mansos, provavelmente jamais terão momentos como o conseguinte.

Parei com o pé esquerdo em cima da faixa amarela do metrô e aguardei o trem de costas para a saída do túnel. Vinha o primeiro trem. Desacelerou devagar. As portas de abriram. Centenas de rostos estúpidos entraram e saíram como ratos, se empurrando pelas portas. Depois de alguns minutos, logo apareceu o segundo trem do início da madrugada, repetindo todo o processo. Quando chegava o terceiro trem, uma senhora loira com uma calça jeans que dividia sua boceta em duas metades rechonchudas e uma boca estreita de lábios sem cor se aproximou de mim.

— Moço, você não vai pegar o trem? Hein, moço? Você não vai pegar o trem? — repetiu ela.

Foi ai que percebi que não conseguia me mover. Meus olhos estavam fixos em algum ponto e eu sequer conseguia olhar pra cara da tia. Vários trens passaram em seguida. Consegui notar algumas pessoas que passavam me encarando, e fui empurrado por várias que saíam do vagão. Logo vieram alguns funcionários do metrô.

— Você tá bem, rapaz? — perguntou em tom firme um homem alto e moreno parado na minha frente — Vamos tirar ele daqui, vai.

Sem responder uma palavra ou mesmo olhar quem me segurava, fui carregado até uma pequena sala ao lado da administração do metrô.

— O que será que esse cara tem? — questionou aflito um moleque atarracado que vestia uma camiseta azul de poliéster,

— Sei lá, pô. Ele não responde nada! Deve ter tomado alguma coisa por ai — respondeu puto o grandalhão bronzeado que me apertava o braço.

Ao chegarmos à saleta, me revistaram e desenroscaram minha pequena bolsa do pescoço. Diversas tentativas de contato, água gelada na minha cara e nada. Vasculharam minha bolsa, finalmente encontraram meus documentos.

— Olivo! Faz um esforço aí meu, onde você mora? O que aconteceu? — gritava o morenão agachado em minha frente.

Leia também  Entre a velhice e a juventude

— Ihh…olha isso aqui Pedrão – comentou o baixinho retirando um livro da bolsa — O Idiota, de Dostoiévsky.

— Deixa eu ver — levantou Pedrão pegando o livro.

— Têm algumas coisas escritas em uns pedaços de papel amassados aqui também – continuou o bostinha se preparando pra ler — “a única certeza absoluta é que vamos escovar os dentes e limpar o rabo por mais tempo que poderíamos imaginar”, olha esse cara! Tem mais ainda, saca só: “as moscas são idiotas e têm mau hálito”.

— Deixa essa merda ai, Fabinho — cortou Pedrão — Vamos levar esse porra lá fora, a Dani já tá chamando uma ambulância. Tá vendo, Olivo? Cê vai de ambulância ainda, não é nem de táxi!

Ao me colocarem na ambulância, cai com a cara na maca e minha bunda ficou pra cima. Durante o trajeto, o motorista ria com Fabinho a respeito da situação e do meu nome. Fiquei imaginando se algum dia, enquanto meus pais me davam banho ou trocavam minhas fraldas, ou se preocupavam com o barulho enquanto eu dormia, imaginavam que em breve eu estaria letárgico numa maca encardida, tendo a minha existência ridicularizada por parafusos da grande máquina social. A maior prova de amor para um filho é o impedir de nascer.

Sem minhas roupas e com um lençol verde, fui deixado de lado em uma cadeira de rodas numa longa fila de velhos que apodreciam no corredor. Duas velhas horrorosas e amareladas aguardavam alguma coisa sentadas no único banco que havia por ali.

— Puxa, o que houve com esse garoto? — Perguntou a fofoqueira do caralho ao enfermeiro que passava por ali.

— Não se sabe ainda. Tentou se atirar no trilho do metrô e agora não responde a nada.

— Jesus! Tão novo! — lamentou uma das bruxas com seu vestidinho florido olhando para o teto.

Depois de uma hora, finalmente um enfermeiro cansado começou a empurrar minha cadeira para uma outra sala. Nela havia três múmias fazendo hemodiálise e um outro saco de rugas deitado numa cama, assistindo televisão. Enquanto o homem vestido de freira estacionava a cadeira, uma jovem enfermeira de cabelo cacheado e tingido com tinta de segunda me prendia o braço com um soro, logo destampando uma longa seringa que aproximava do meu braço.

— Onde é o banheiro? — Perguntei a ela, despertando subitamente.

— Por ali — respondeu espantada — mas você está bem?

— Jamais — retruquei saindo para o banheiro.

Com o lençol verde todo mijado, segui para o balcão exigindo minhas roupas e a porra da bolsa. Confusa, a recepecionista gorda e desajeitada me apontou para uma sala onde estava minha bolsa, mas que as roupas eu só conseguiria ver depois de obter alta. Em segundos já estava na sala lotada de caixas amarelas com o símbolo de contaminação, e minha bolsa em cima de um banco de plástico. Ao pegar a bolsa, logo apareceu uma terceira enfermeira de cabelos ruivos e pernas tortas, segurando uma prancheta.

— Antes de sair você precisar assinar isso aqui — grunhiu ela em monotom.

— Não vou assinar porra nenhuma! — disse já saindo da sala.

— Mas você está saindo sem alta e se negou a tomar o medicamento — gritou ela com o lábio inferior tremendo.

— É claro, boneca. Você pode estar no fim da linha, mas aposto que também seleciona as seringas que deixa entrar em você.

Ao sair com meu traje de indigente, o Sol da manhã já começava a mostrar uma cidade extremamente desconfortável, que em seu conjunto cochichava ao meu ouvido: “Tenho todo o tempo para esperar você desistir”.

Danilo Barba

Repórter do Portal AreaH. Há 25 anos na mesma pergunta: o que está acontecendo? Lembra-se diariamente da morte para sair da cama. No Twitter, <a>@criancasqueijo</a>"