Parece que boa parte dos problemas modernos da humanidade se resume a intolerância sobre as diferenças.

E parece que boa parte desses problemas seriam resolvidas com um pouco mais de empatia.

Dentro dessa lógica, sabe outra coisa que ajudaria a resolver? Conhecer o Paradoxo Sorites.

Passado

O termo é atribuído ao filósofo grego Eubulides de Mileto e era empregado para ajudar a 'problematizar' sistemas dogmáticos da época. Anos mais tarde, o conceito foi resignificado pela formulação da indução matemática, mas manteve sua aplicação inicial de mostrar a inconsistência de algumas 'visões de mundo'.

Falando assim, porém, parece que estamos tratando de algo muito complexo de ser compreendido e na verdade é justamente o contrário disso – dentre todos os conceitos abordados aqui na Tecla SAP até agora, este é um dos mais fáceis. Ajuda se a gente tratar o Paradoxo Sorites por seu sinônimo Paradoxo dos Montes.

Entrando propriamente na explicação, o Paradoxo dos Montes é assim chamado porque ele basicamente consiste no raciocínio sobre: Qual é a quantidade certa para que passemos a considerar o acúmulo de um determinado objeto "um monte"? Ou: Em que momento um monte de determinado objeto deixa de sê-lo quando vamos removendo unidades desse objeto?

Quantos grãos de areia são necessários para que tenhamos um monte de areia?

Quantos carros são necessários para que tenhamos um monte de carros?

Quantas pessoas são necessárias para que tenhamos um monte de gente?

O paradoxo se estabelece porque é impossível responder a essas perguntas definitivamente. O que é 'um monte' pra você pode ser diferente do que é 'um monte' pra mim. E mais: a nossa própria definição de monte muda conforme o contexto.

Se você vai numa festa de aniversário, 10 pessoas podem ser tratadas como 'um monte de gente'. Agora, se você vai numa manifestação, 10 pessoas dificilmente serão um monte. Como eu gosto de dizer: VAREIA.

Você quer saber se tinha um monte de gente segundo a Polícia ou segundo os organizadores?

Presente

O parodoxo comumente cria um problema de comunicação. Isto porque uma comunicação efetiva só se estabelece quando os dois interlocutores compartilham o que as teorias da comunicação chamam de signos, ou seja, representações comuns.

Na maior parte das vezes, pensamos em signos como palavras, afinal esse é o exemplo mais fácil. Porém, se toda palavra é um signo, nem todo signo é uma palavra, por exemplo: Emoticons. Eles representam uma determinada reação que, desde que você não esteja falando com a minha mãe, ambas as pessoas na conversa entendem.

Signos, portanto, servem para construir imagens mentais. Quando eu falo a palavra 'escola', eu e você imaginamos uma escola. As imagens que criamos nas nossas mentes até podem não ser idênticas, mas elas devem ser suficientemente parecidas para que, aplicadas num contexto, você consiga compreender o que eu te digo.

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O problema com os montes é só um exemplo disso. Quando digo um monte de areia, você imagina algo diferente do que eu imagino. E isso pode até não ser um problema a princípio. Mas a coisa vai ficando complicada quando começamos a partir para substantivos mais abstratos como, sei lá, democracia, liberdade, greve, golpe…

Eu acho isso que você está falando um monte… de bobagem!

Futuro

No geral, as pessoas que aplicam e explicam esse paradoxo costumam dizer que a regra passa a ser ditada pelo senso comum. O que é um outro jeito de dizer que o que a maioria entende como sendo um monte passa a ser, para todos os efeitos, um monte.

O problema é que, às vezes, as circunstâncias da vida começam a nos fazer questionar a interpretação da maioria. E vamos concordar que 'as circunstâncias da vida' estão acontecendo mais ultimamente ou que pelo menos o efeito 'questionar a interpretação da maioria' está sendo mais recorrente do que antes.

Nesse caso, portanto, se eu e você não conseguimos dar os mesmos nomes para as mesmas coisas (um chama de monte, outro não; um chama de impeachment, outro de golpe), o ruído na comunicação fica altíssimo e aí a gente passa a não conseguir se entender mais. Sem conseguir se entender, as possibilidades de chegarmos numa resolução pelo diálogo ficam resumidíssimas.

Discutir, portanto, torna-se inútil. Algo que eu e você já sabemos que vem acontecendo com a maioria das discussões atuais, principalmente na internet quando a falta de entonação na fala, de reação corporal, de percepção de humanidade no interlocutor, etc, também contribuem para o ruído.

Não é raro ver casos em que a discussão de um tópico naturalmente se direciona para a discussão dos termos que uma e outra pessoa está usando. Venho percebendo que cada vez mais é importante ter um pouco de boa vontade e fazer um exercício de interpretação a partir do que a pessoa 'quis dizer' e não exatamente do que ela de fato 'disse'.

É um ponto bem sensível. E eu admito que às vezes isso pode ser bem difícil, bem como, qualquer atalho pode significar um erro de interpretação e um possível entrave maior ainda num ponto mais adiante na discussão. Mas a gente não tentar, vamos continuar sem conseguir chegar a lugar nenhum.

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Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>