Meu pai morreu há seis meses de uma crise de pedra na vesícula – uma unha encravada para a medicina. Ele estava bem, bastante ativo, trabalhando e vivendo normalmente. Foi de repente.
Quando alguém próximo morre, muitas pessoas se aproximam para contar os seus relatos de experiências parecidas. Um desses relatos achei especialmente significativo:
“Lamento pela morte do seu pai, assim, tão repentina!”
A pessoa seguia na tentativa de consolo
“O meu pai também morreu cedo. Mas ele tinha câncer havia vários anos e nós tivemos tempo de nos preparar para a sua morte. Já assim, tão de repente… Entendo que seja difícil. Meus sentimentos.”
No velório, descobri que meu pai tinha um círculo de amigos bem grande. Acabei ouvindo algumas frases por cima, e elas se repetiam. Só mudava a doença. A parte “nós pudemos nos preparar, pois Fulano estava doente havia algum tempo” me chamava a atenção. Afinal, o que impede uma pessoa de se preparar para a morte de seus amigos e familiares mesmo que nenhum deles tenha o diagnóstico de uma doença grave?
Parece que os que não estão doentes são eternos.
É uma maluquice, mas vivemos como se a doença fosse um vírus que acaba com a vida que, até então, era eterna. Só pensamos no fim da vida se recebemos o diagnóstico de que nossa morte ou a morte de alguém querido está próxima. Nossa mente tem um alcance temporal tão curto que, em geral, mal consegue raciocinar para além de vinte anos. Se a morte está para além de vinte anos, é como se ela nem existisse.
Mas o fato é que não podemos sequer garantir que ela não chegue nos próximos vinte minutos!
Acho que um bom médico deveria dar o mais útil dos diagnósticos a todos os seus pacientes. Imagine o seu cardiologista dizendo:
“Seus dias estão contados. Você tem, no máximo, mais 60 anos de vida. Isso se tiver muita sorte.”
Quem sabe, assim, ousaríamos dar uma olhadinha para a tão temida morte sem a necessidade de ter um câncer para isso.
“A morte é natural”, poderíamos pensar. “Para que ficar pensando nisso? Afinal de contas, quando eu tiver que morrer, vou morrer mesmo! Não há o que fazer. Não preciso ficar pensando nisso e entristecer minha vida.”
É provável que nossa mente venha com este discurso. Mas uma das coisas mais úteis que aprendi na vida é que os pitacos da nossa mente são pouco confiáveis e extremamente aleatórios. Portanto, é melhor eu me voltar para pessoas cujas mentes têm uma base de operação mais confiável que a minha. E, com isso, tentar desenvolver a mesma base para ter ideias mais interessantes e úteis. Por isso, não é inteligente colocar o pensamento da morte debaixo do tapete só porque sua mente assim sugeriu.
Tive a oportunidade de ter um bom médico que me deu o diagnóstico acima citado. Ele me avisou, explicou a doença e recomendou como tratamento doses diárias de contemplação da morte. Passei a examinar o fato de que os meus dias e os do meu pai, da minha mãe, do meu irmão, dos meus amigos, dos meus colegas de trabalho estavam todos contados. São finitos. Acabarão. Sumirão do mapa.
Puf!
Tantas vezes evitei esses pensamentos… Imaginava que poderia atrair a morte. Às vezes concluía que pensar nela não resolveria coisa alguma. Mas decidi confiar no médico: com alguma disciplina, segui suas orientações sobre as doses de observação da morte.
Como contemplar o fim
Eis que alguma coisa mudou. Meu cotidiano ficou mais leve. Algum colega de trabalho surtava e, miraculosamente, eu não ficava mais tão irritada. Alguém me fechava no trânsito e eu dava a passagem – nem buzinava. Isso tudo porque eu passei a observar por alguns minutos o fato de que os meus dias e os dias de todos estão contados. A contemplação regular desta verdade inexorável enfraquece a seriedade que damos às coisas e nos municia de um olhar mais compassivo e aberto para com o mundo e as pessoas.
(Não preciso dizer que, em alguns momentos, eu esqueço de tudo isso e me vejo desejando coisas bem pouco auspiciosas para as pessoas. Felizmente, esses momentos têm diminuído.)
Eis que, num dia desses qualquer, meu pai morre. De repente. Exatamente como eu vinha contemplando! No news! O fato desta realidade imaginada não ser algo completamente novo me ajudou muito. O fato de eu ter me ocupado dessas questões antes foi e tem sido muito útil. É óbvio que a morte dele foi uma experiência muito intensa e que me entreguei às lágrimas em muitos momentos. Entretanto, pude manter alguma estabilidade de mente, corpo e energia, e ajudar os que estavam ao meu redor. Lembre-se: estabilidade nada tem a ver com frieza e falta de amor; aliás, muito pelo contrário.
Quando alguém tão próximo morre, fica intensamente escancarado que as pessoas morrem! A frase não é tão redundante assim, pois vivemos como se a morte literalmente não existisse. É como se precisássemos ver para crer, o que é extremamente limitado. Ainda que a morte seja tão óbvia, a ignoramos o tempo todo.
É espantoso que aquilo que sempre foi implacável possa causar tanta confusão e desespero quando se apresenta: é como se nos pegássemos desprevenidos sobre algo que sempre soubemos de antemão.
Saber que há morte não é o suficiente
Sabemos que a morte existe. “Saber” não basta para mudar a nossa postura na vida. Continuamos com ações aleatórias e descuidadas pelo mundo, mesmo estando conscientes de que a qualquer momento nosso corpo pode entrar em colapso. Esta é outra coisa extremamente útil que aprendi na vida: aquilo que a mente sabe não necessariamente será sabido pelo coração (e vice-versa). Em outras palavras, o que é óbvio para a mente através do raciocínio não é óbvio para as emoções e para o coração. Uma coisa é saber a receita do bolo; outra coisa é comer o bolo. Por isso, ao tratarmos a morte como um evento simplesmente natural e comum, estaremos agindo superficialmente, pois não incluímos na análise o quanto este processo nos toca no momento em que ele de fato se apresenta.
Link Vimeo | Este vídeo já rolou aqui no PdH, mas sempre vale o repeteco…
Por maior que seja a falta que eu sinta do meu pai agora; por maior que seja meu amor e carinho por ele, carrego o processo da morte dele no meu coração. Foi como ter recebido um ensinamento muito elevado direto na corrente sanguínea, tal sua intensidade. Com suas várias virtudes e defeitos, meu pai me ensinou tantas outras coisas, mas este ensinamento final de sua morte tem tido o poder de tornar a minha vida mais compassiva, leve e significativa, apesar da saudade que fica. Conscientemente, lembro-me de sua morte sempre que posso e olho para isso cada vez com mais vontade. Lamento quando estou muito ocupada com outras bobagens e não tenho tempo de observar com mais calma essas questões.
A morte vista de frente tem o poder de implodir as “sujeirinhas” que alimentamos com alguém, as alucinações sobre relacionamentos, dinheiro, desentendimentos e demais “nhenhenhéns” da vida. Quando nos damos conta com nossas vísceras de que vamos todos morrer, reorganizamos as nossas prioridades.
Resolvi compartilhar isso com vocês para lembrar que somos uns esquecidos. Que esquecemos de coisas realmente importantes que contribuem para a nossa verdadeira felicidade. Com um outro grande médico, aprendi que “tudo o que temos que fazer é nos lembrar”. Quanto mais nos lembrarmos da morte, menos nos esqueceremos que não vale a pena investir energia em coisas estreitas. Mantendo uma visão mais ampla, nossa vida ganha sentido e cor, ainda que externamente continue tudo igual: você continua no mesmo emprego, no mesmo apartamento, com o mesmo namorado, mas, no fundo, está tudo diferente. Internamente, tudo mudou.
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