Dois corações, duas mentes.
Um (de muitos) dos superpoderes adquiridos com a segunda paternidade é distinguir o que cada filho precisa em um mesmo momento, ainda que isso não se traduza em ação imediata. É um radar que escaneia em 360°, o tempo todo.
Depois do primeiro filho, a atenção agora está mais aguda. A audição, mais afiada para detectar o menor sinal de perigo – e o maior deles, o silêncio! A visão panorâmica consegue captar os movimentos de ambos os rebentos, mesmo que cada um esteja no limite do campo visual. O tato está mais viciado em afagar os cabelinhos com frequência. A mamadeira, a papinha e o prato de "arroz, feijão e carninha" são testados com o mesmo paladar à prova de sabores ácidos, azedos, amargos, ardidos ou tóxicos.
A cena: seus dois filhos brincam no chão, sem tatame, a sala está cheia de brinquedos, muitos dos quais vão para a boca do menorzinho, o piso está revestido de saliva – enquanto o maior o atazana com pequenos empurrões, apertos e outras formas sutis de desestabilizar a concorrência.
Você: A. Sai correndo e acaba com a farra toda, guarda os brinquedos e coloca todo mundo em posições seguras;
B. Dá um grito lá de longe "Pára, deixa ele quieto, tô avisando!" ou;
C. Nem liga e continua fazendo café de cueca enquanto sua mulher consegue finalmente fazer xixi e escovar os dentes duas horas depois de acordar?
Bom, pais de segunda viagem vão ficar em variações da opção B, mas tenho certeza que no terceiro filho, é da C pra baixo!
Não é que agora você "não liga" mais para o que acontece com o bebê, ou algo que decorre de interação de ambos – é que você confia mais na natureza. Sabe aquelas cenas dos filhotinhos de leão brincando de brigar uns com os outros? Mesma coisa. E olha, se todas as bactérias viessem do chão de casa, a família nunca sairia do hospital.
Os dodois que vêm da creche/escolinha derrubam todo mundo, mas as idas ao pronto-socorro ficam bem mais esparsas. Você sabe agora que febre não mata, que gripe passa, que pra tosse tem xarope, que pra dor tem remédio rosa e docinho – e que dormir é coisa do passado, estando todo mundo mal ou bem.
Não é desleixo, é experiência.
Mas enquanto a calibragem da balança faz pesar menos de um lado, torna outro quase insuportável. Quase. Eles sofrem, sofre-se em dobro. Compaixão vem do latim "com-passio" – sofro junto, e não podia ser uma descrição melhor do que é sentir com sua filha ou filho a punhalada que o mundo dá em um lugar que você nem sabia que existia neles ou em você. Um órgão novo, cheio de nervuras, que só não te faz morrer de dor porque é preciso sobrar um pouquinho de energia para resolver o problema, suportar a dor e remover a barreira, caminhar na tempestade quando as pernas já nem andar querem mais.
E agora não tem volta. A gente é um monte de gente. A gente anda em bando. Somos uma equipe, um time! E a nossa gangue não tem vergonha de chegar em lugar nenhum!
Antes, quando o primeiro filho fazia birra em algum lugar, a gente queria enterrar a cabeça no chão de vergonha. Mas esses pais-avestruzes já saem de cena no segundo ato. Adentram os pais-caras-de-pau! Que se dane quem está olhando, tem duas crianças aqui precisando ser acalmadas e não importa se isso envolve um malabarismo da sua parte, enquanto exibe o cofrinho, se vai precisar pegar um no colo e enfiar outro embaixo da mesa ou pedir no restaurante que o garçom traga o outro canudinho, ou um monte deles, porque… "eu quero".
Por mais que se queira não deixar que eles queiram tudo, ou tenham tudo o que querem, o querer deles é lei. E você tenta, inutilmente, ser um rebelde às vontades vulcânicas de dois súbitos pequenos ditadores – irresistivelmente amados.
Na segunda viagem, os pudores caem na medida em que sobe a quantidade de porcarias largadas em todo e qualquer lugar dentro do carro. Mas a gente viaja mesmo assim, por entre pipocas murchas e amendoins aniversariantes, com "aquela música" tocando repetidamente no som, porque o ouvinte mais sedutor desse mundo fez mais uma vez o pedido – o seu filho.
O outro, enquanto ainda não pode expressar com palavras seus desejos automotivos, não hesita em gritar, chorar ou balbuciar feliz o nível de prazer que o passeio lhe traz. Os dois vão dormir por fim, de qualquer forma, e aquelas cadeirinhas grudentas, uma virada de cara para o assento, outra para o lado oposto, não sustentam mais tantos sonhos móveis – você agora é o abraço que leva o filho mais pesado até em casa, até a cama.
Na hora da bronca, às vezes tem um chorando e o outro rindo. E isso parte o coração – no bom sentido. Tem um lado seu querendo ficar carrancudo, mas outro aliviando a barra para todo mundo. "Deixa disso, cara. Passa rápido esse tempo em que eles são crianças, deixa para lá". Exercer a disciplina, sim, mas com certeza entender que o que estou ensinando a eles está muito mais no universo emocional, via um tipo de comunicação intagível, absorvida ao se sentir pelo sexto sentido. Isso só se aprende conforme eles crescem.
Quando se tem mais de um filho, você ganha um objeto de pesquisa (o segundo) e o controle (o primeiro), e fica evidente: eles não aprendem com palavras (decoram, sim, mas não aprendem), nem pelo exemplo (ele até vai imitar, mas porque é mais seguro fazer certas coisas igual a você) – é a atitude, o tom e o estado de espírito que você carrega perto deles que determina o que eles levam com eles, para o resto da vida. Nossa memória afetiva grita, define rumos, decisões, enquanto as memórias analítica e factual, enquanto contribuem para a navegação prática, soam mais como sussurros.
Por mais analítico que eu tente ser ao pensar no que a paternidade em dose dupla significa para mim, no fim, tudo se esfacela em risos e lágrimas. Ser pai é uma grande massa de emoções, disforme, instável – mas tão presente em todos os momentos quanto a própria consciência. Está sempre tão perto quanto o fato de se estar vivo. E eu não sei mais o que é ser um sem os dois. Por isso resolvemos e bancamos sermos quatro, felizes em nosso cansaço, esperançosos em nosso desespero, realizados em nossa eterna incompletude.
Nada disso faria sentido se a ideia de ser pai mais de uma vez não tivesse um único fundamento: amar mais. Qualquer coisa diferente disso não parece ter razão de ser.
Um medo que minha companheira tinha quando pensávamos em realizar a segunda maior proeza de nossas vidas era de não sentir o mesmo que sentimos da primeira vez.
Mas a verdade é que não precisava ter medo! Não é o mesmo porque eles não são iguais. Mas é a mesma fonte de amor interminável de onde vem o sentimento. É amor 1 e amor 2.
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