Trabalhar com Medicina de certa forma me fez perder um pouco de fé na humanidade. Não me refiro ao povo que sofre em nosso sistema de saúde falido, mas à imensa quantidade de trambiqueiros e armadores espalhados por aí, loucos para obter alguma vantagem – inclusive no mundo da Saúde.
Tive a ideia desse texto em conversa com meu pai, perito judicial federal em algumas cidades do Estado do Rio de Janeiro. Ele me relatava que, por baixo, 70-80% das pessoas que tentam se encostar no INSS não apresentam incapacidade, ou seja, estão é querendo mamar nas tetas generosas da nossa falida previdência.
Aproveitei para acrescentar os já famosos “caçadores de atestados”, que volta e meia a gente consegue pegar em flagrante.
Caso 1: Gesseiro prestativo
Em um hospital público que trabalhei, havia um técnico de imobilização gessada que era super prestativo. Um belo dia ele chega para mim e mostra um amigo dele, com uma fratura de tratamento cirúrgico, e pede para que ajudemos o cidadão. Lógico que internamos e operamos o cara.
Alguns dias depois, eis que o gesseiro chega com outro amigo, também com uma fratura cirúrgica. Mesma coisa, interna, opera.
E a coisa foi se repetindo. Como o cara era gente boa, ninguém desconfiou de nada. Afinal de contas, por ser gesseiro e conhecer muita gente, era natural que fosse procurado quando pessoas se quebravam. E acreditem, tem fratura pra caceta nesse mundo.
Um belo dia, a casa caiu. Um colega descobriu que esse gesseiro havia montado um esquema que aproveitava a dificuldade que os pacientes têm em encontrar local para realizar cirurgias. Quando o paciente chegava para o gesseiro, ele cobrava uma grana para “apresentar” o paciente aos seus queridos ortopedistas do hospital onde eu trabalhava. Nós resolvíamos o problema de graça, como mandava o figurino, achando que ajudávamos ao amigo, e o espertalhão embolsava um troco.
Em tempo: eu pedi exoneração desse emprego antes de saber que fim levou o malandro.
Caso 2: Trocando as bolas
Esse foi no mundo dos convênios. Já fiz um artigo no PdH sobre nomes esquisitos que os criativos pais e mães brasileiros colocam em seus rebentos. Alguns a gente nunca esquece. No presente momento eu esqueci o nome do cidadão que protagonizou esta história.
Sei que era um nome incomum. Recebi o paciente em meu ambulatório, um senhor de uns 50 e poucos anos. Até aí tudo bem. Só que havia um pequeno detalhe. Aliás, dois.
Detalhe 1: Eu reconheci o nome do paciente, então lembrei que já o havia atendido na emergência do mesmo hospital.
Detalhe 2: Eu não lembrava da cara do paciente, por isso a consulta transcorria normalmente, até eu olhar a data de nascimento na ficha do sujeito. Ou a data estava errada ou o senhor de 50 e poucos anos só foi registrado uns 30 anos depois. A idade do paciente era de 25 anos!
Nesse momento, lembrei quem era o paciente. E o cara era novo mesmo. Mas como ele havia feito a ficha se as recepcionistas pedem a identidade?
Resposta: quem fez a ficha foi o cara que eu atendi na emergência. Entre fazer a ficha e a consulta propriamente dita, ele saiu do ambulatório e entrou o coroa. Como o ambulatório estava cheio, ninguém notou. E se não fosse eu reparar na data de nascimento, eu também não teria notado.
Gênio do crime. Usou o próprio convênio para fazer consulta para outra pessoa. Não duvido que tenha cobrado um por fora.
O que eu fiz? Pedi a identidade do coroa só pra ver a cara de apavorado. Ele disse que estava lá fora, com o “filho” dele. Saiu e… Felizmente não voltou.
Caso 3: Daiane dos Santos quer se encostar no INSS
Uma vez eu fazia perícias com meu pai, para pegar o jeito da coisa. Engraçado foi o paradoxo do 1oº dia de atendimento. Quando comecei, vi os 3 primeiros casos e achei meu pai o cara mais cruel do mundo. Realmente as pessoas pareciam necessitadas, depois você pega a manha da coisa, as táticas para armar, e percebe que realmente a maioria quer é se encostar por qualquer motivo.
Um exemplo são as protrusões discais de coluna. Se você fizer ressonância em toda a população acima de 40 anos, 80% vai ter algum tipo de protrusão – desses, a minoria terá sintomas. Então usam isso para conseguir um beneficiozinho e sangrar nossa combalida previdência. Os peritos são atentos a isso.
Essa senhora que eu estava atendendo foi demais. Apelação. Dizia que tinha problema de coluna. Trouxe apenas um raio-x mostrando algum grau de artrose compatível com a idade (mesmo caso da ressonância que citei acima), ou seja, a imensa maioria é assintomática ou os sintomas são perfeitamente tratáveis e não incapacitantes.
Então fiz um teste. Pedi a ela que tentasse encostar as mãos nos pés, de pé, sem dobrar os joelhos.
Vou contar para vocês, a velocidade e a elasticidade com as quais ela o fez me deixaram com inveja. Eu estava ali examinando a Daiane dos Santos. Uma pessoa com incapacidade laborativa não consegue fazer isso.
Indeferi. Com gosto.
Caso 4: Doping às avessas
Um staff meu da época da residência conta essa história aqui. Estava ele de plantão numa emergência da vida, quando chega um cidadão alegando dor nas costas (o bom e velho lumbago). Então ele prescreve uma injeção de antinflamatório e, como a emergência estava tranquila, sai para tomar um café.
Eis que, ao retornar ao seu posto, quem ele vê conversando com amigos? Exatamente, o próprio paciente. Sem saber que o meu staff estava ali de tocaia, o cara solta a seguinte pérola:
“Já tomei a injeção, vou voltar lá pra pegar o atestado e podemos jogar bola.”
Meu colega então, antes de dar o atestado, diz que ele precisava tomar outra injeção para garantir que a “dor” não voltaria.
A injeção? 10mg de diazepam (um tranquilizante). Venoso, que é pra fazer efeito na hora. Final da história: o cara saiu completamente grogue do hospital. Certamente não pode ser escalado.
(Antes que alguém acuse o colega de faltar com a ética, ora, Diazepam, por ser relaxante, pode sim ser utilizado no tratamento de uma lombalgia. Conduta “perfeita”.)
Caso 5: Como se livrar de um hóspede indesejado
Um problema que afeta hospitais públicos é quando são internados moradores de rua e afins. Comparada à vida fora do hospital, a internação é um luxo para esse povo. Comida quentinha, enfermeiras cuidando, algo que a dura realidade da rua não faria jamais. O que acontece: o paciente simplesmente se recusa a ter alta. Daqui não saio, daqui ninguém me tira. E ocupa um leito que poderia atender a alguém que realmente está precisando.
Um colega espirituoso achou uma solução inusitada para um caso desses. Como a prescrição da dieta do paciente está sob nosso controle, o cara lascou a caneta:
“Dieta para hipertensão, diabetes, insuficiência hepática, insuficiência cardíaca, insuficiência renal, hipocalórica e anticonstipante.”
Traduzindo: ele retirou da dieta sal, açúcar, proteínas, gorduras, restringiu a ingestão de líquidos e ainda por cima botou comida laxativa pra cima do malandro. As enfermeiras informaram que, antes de ir embora, o paciente reclamou que o caldo estava “muito ralinho”.
É isso aí. Mexeu na comida, o bicho ralou peito.
Caso 6: O manco se enganou
Em uma perícia realizada por meu pai, ele conta que um cara entrou pedindo para ser encostado no INSS, só para variar um pouco. Mancava da perna direita ao entrar. Feita a perícia, o cidadão ao se levantar da cadeira, começa a mancar… Da perna esquerda!
Pobrezinho, tão logo ficou bom de uma perna, o problema passou para a outra… Perdeu, trambiqueiro.
Caso 7: Janela indiscreta
Uma das principais armas do meu velho ao fazer perícias: a janela da sala pericial fica voltada para a saída do fórum. Com isso, a perícia não acaba quando o paciente sai da sala. Assim, muitas armações dentro do consultório são desfeitas bastando olhar na janela e ver o paciente ao sair do local. E não são poucas. Cito dois casos interessantes.
Um deles alegou ataxia cerebelar, doença que deixa a pessoa completamente sem coordenação motora. E realmente o cara não conseguia fazer movimento algum sem tremer e derrubar coisas. Caso certo para uma concessão de benefício, se não fosse a janela indiscreta, que mostrou o sujeito lépido e fagueiro, correndo para pegar o ônibus, numa milagrosa e rápida “cura”.
Outro cidadão chegou amparado por um amigo. Em suas alegações, dizia que não podia andar sozinho sem amparo de outra pessoa, o que era corroborado pelo comparsa, digo, companheiro.
Ou melhor, comparsa mesmo, pois a janela indiscreta mostrou os dois andando separados, cada um pegando um ônibus diferente.
Dr Health, ciente que, para acabar com toda essa malandragem, nem prendendo todos os otários…
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