Estar morto não é exatamente ruim. Na verdade, não precisar mais cortar as unhas do pé ultrapassava, com vantagem, todos os demais incômodos da situação. Ao menos isso era o que pensava Malaquias. Enquanto vivo, ele foi obsessivamente incomodado com a possibilidade de ter unhas grandes como as do seu tio Terêncio, um gaúcho barbudo e cabeludo que só usava sandálias de couro para ostentar a unha do dedão direito tão dura e longa que nos churrascos de família fazia sucesso ao abrir com ela garrafas de cerveja.
Foi por esse detalhe pessoal que Malaquias passou suavemente pela fase de confusão que acomete inicialmente todos que morreram e foram parar no Céu. Seu único e persistente descontentamento era com o fato de que o lugar parecia um daqueles resorts em ilhas do Pacífico que vemos nos fundos de tela dos monitores de pessoas sem criatividade.
Os anjos, aqueles coxinhas vestindo camisolão, transitavam por todo lugar como funcionários daquele gigantesco empreendimento hoteleiro. A felicidade é kitsch, pensava Malaquias, e então se lembrava da frase de Twain, que dizia preferir o Paraíso pelo clima e o Inferno pela companhia.
E o aborrecimento de Malaquias aumentou quando os gerentes daquele resort celestial o convidaram para participar de um amigo secreto. Malaquias detestava amigos secretos. Considerava esse o ritual social mais abominável e vazio do fim de ano, e interpretou o convite como uma provocação e uma sugestão de que talvez, bem, talvez ali não fosse seu lugar.
Então imaginem a surpresa de Malaquias quando retirou o papelzinho dobrado de um jarro de vidro trazido por um anjo e viu o nome de Gabriel José de la Concordia García Márquez.
Aqui vale duas explicações. Em primeiro lugar, Malaquias faleceu em janeiro de 2014. Em segundo lugar, no Céu não há Facebook, Televisão ou outra forma de anunciar quem está partindo daquela para essa melhor porque, convenhamos, no Paraiso as pessoas têm mais o que fazer.
Logo, Malaquias, ele próprio um escritor fracassado que bateu a caçuleta aos 34 anos, não tinha como saber que um dos maiores escritores do mundo havia morrido há poucos meses.
Pior ainda ficou a situação de nosso anti herói quando soube que o presente teria de ser o exemplar de um de seus livros, pois todos os participantes eram artistas.
A perspectiva de presentear Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de literatura, com um de seus romances tornou os dias que antecederam o evento um verdadeiro inferno (perdoem o trocadilho) para Malaquias. Durante toda sua vida ele foi um escritor não apenas desconhecido, mas atormentado. Sua jornada aqui na Terra foi uma sucessão de desesperadas tentativas e grandes fracassos.
Enquanto vivo, Malaquias conseguiu apenas publicar um livro, e isso após pagar uma gráfica com dinheiro emprestado de seu padrasto. Os exemplares publicados não encontraram livraria que os vendesse, e acumularam-se debaixo de sua cama após distribuir cópias para amigos, familiares, o zelador Rubair, a faxineira Francisca e o flanelinha Uéslisnaips, seu maior fã.
Malaquias passou a beber durante a criação de seu terceiro romance. Foi nesse ponto de sua vida que perdeu o emprego de vendedor na Livraria Cultura, a namorada terminou o relacionamento de quatro anos e a imobiliária promoveu ação de despejo do quitinete em que morava.
Vivendo na dependência de empregada de duas tias solteironas, Malaquias terminou seu último romance. Conseguiu fazer o upload da obra em seu blog antes de parar debaixo das rodas de um caminhão, durante o retorno de uma boca de fumo no Gol de seu amigo viciado em pedra. A vida de Malaquias, em suma, parecia miserável, e foi por isso que ele não lamentou muito quando foi informado que havia falecido.
Como ele, portanto, poderia presentear a Gabriel García Márquez com um de seus romances? Ainda que a materialização de um livro no Paraíso fosse um procedimento fácil para todos agraciados com a vida eterna, a ideia de que o autor de Cem Anos de Solidão perdesse dez dias da eternidade lendo uma de suas obras aterrorizava a Malaquias.
Porém, resignado e com um exemplar de seu livro Xadrezão da Vida debaixo do braço etéreo, Malaquias dirigiu-se ao salão celestial em que ocorreria o amigo secreto.
Ele não tinha condições de imaginar que a maior surpresa ainda estava por vir.
Estavam todos lá, todos aqueles que faleceram após janeiro de 2014 e Malaquias não tinha condições de saber.
Atônito, ele viu diante de si Philip Seymour Hoffman, José Wilker, Bob Hoskins, Ariano Suassuna, Fausto Fanti, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro, Robin Williams, Manoel de Barros, Roberto Bolaños e outros tantos rostos que sua ignorância da cultura popular não lhe permitia reconhecer.
Todos os maiores artistas que faleceram ao longo de 2014, mas nenhum deles demonstrava qualquer sinal de arrogância. Todos riam e brincavam como crianças, festejavam como se fosse uma festa de aniversário de um menino de cinco anos e todos fossem seus coleguinhas. Suassuna sentou no chão de tando rir das imitações e piadas de Roberto Bolaños, Fausto Fanti não parava de tietar Philip Seymour Hoffman e Manuel de Barros dava gargalhadas devido a uma história pessoal que Suassuna lhe contava.
Gabriel García Márquez, quando viu Malaquias, abraçou-lhe como se fosse um irmão, e sorriu de entusiamo ao receber uma cópia de seu romance.
– Eu queria ter lido enquanto vivo – disse Gabriel, na língua do coração que todos falam no Paraíso – Mas não tinha como saber das suas obras.
– Você queria ter lido meus livros? – gaguejou Malaquias. – Mas como teria como saber que eu era?
– Bem, enquanto vivo eu não sabia quem você era. Mas aqui no Paraíso, bem aqui no Paraíso temos como saber de tudo se perguntarmos aos anjos.
Malaquias não respondeu, estava transtornado. Notando a confusão de nosso amigo, Gabriel García Márquez abraçou-lhe pelos ombros e mostrou-le todos os participantes daquele amigo secreto.
– Você não notou algo peculiar aqui? Todos somos os últimos artistas representantes do século vinte, todos aqui marcaram com sua arte a vida das pessoas e definiram as últimas décadas do século passado. Com nossos falecimentos, o século vinte também finalmente acabou, embora tenha demorado um pouco, embora tenha persistido, teimoso, até a segunda década do século vinte e um.
– Mas eu, eu não marquei ninguém, ninguém lá embaixo sabe quem eu sou, salvo o flanelinha Uéslisnaips, meu único fã.
Gabriel García Márquez gargalhou:
– Você ainda não foi descoberto entre seus contemporâneos, e vai levar algumas décadas. Mas quando seus romances forem encontrados, rapidamente sua genialidade será reconhecida e você será considerado o maior escritor do século vinte, na verdade o único que conseguiu definir com perfeição as últimas décadas daquela era. Então nada mais adequado do que você participar desse amigo secreto, que os anjos planejaram só pelo prazer de ver o fim de um século inteiro sorrindo e brincando no Paraíso.
Malaquias, sabendo disso, fingiu não ficar muito empolgado. É que nosso anti-herói era teimoso como o final do século vinte, e não gostava de dar o braço a torcer. Além disso, para ele, o Paraíso continuaria sendo um resort cafona, e os anjos uns coxinhas de camisolão.
Só ficou realmente feliz quando, décadas depois, Uéslisnaips chegou no Céu. Esperou-o no portão do Paraíso e foi o primeiro a lhe dar um abraço, com lágrimas nos olhos, enquanto dizia:
– Eu sei que no xadrezão da vida eu e você fomos peões descartáveis e esquecidos, meu irmão. Mas um dia você vai ser reconhecido como a única pessoa do seu tempo capaz de perceber e apreciar aquilo que ninguém percebia. Sem instrução e trabalhando duro, você vai ter sido o maior leitor do fim do século vinte.
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