Dizem, popularmente, que logo antes de morrermos passa na nossa cabeça um filmezinho que resume toda a nossa vida. Um amigo meu tinha uma teoria alternativa: nesse filme só tem os momentos mais constrangedores que passamos, como tropeçar pelado botando a calça apressadamente, cumprimentar alguém de longe e perceber que é um desconhecido, fazer um comentário desnecessário num jantar, essas coisas.
Mas eu acho que nos últimos tempos surgiu uma terceira versão disso. O filmezinho contemporâneo que passa na cabeça de quem vai morrer e viveu imerso na cultura digital é provavelmente um compacto só com cenas de todo o tempo perdeu organizando sua vida tecnológica – arrumando a agenda do celular, organizando as fotos no computador, limpando a caixa de emails, bloqueando pessoas ou jogos no Facebook, escolhendo avatar pro What’sApp, escolhendo filme no Netflix, procurando o torrent certo, e por aí vai. Toda vez que eu me pego fazendo uma dessas coisas, não consigo evitar de pensar que “um dia eu vou morrer e estou aqui perdendo tempo com os labels do Gmail”.
Esse é um dos golpes mais sacanas da cultura digital. A cada ano (ou mês, ou dia), somos apresentados a uma novidade que promete simplificar nossa vida e nos dar mais tempo livre. Mas o sistema no qual estamos inseridos e que produz todas essas novidades produz junto uma série de pequenas ações, conteúdos e compromissos que nos afogam ainda mais.
O especialista em cultura de convergência Henry Jenkins já escreveu em Cultura da Convergência sobre o que chama de “A Falácia da Caixa Preta”, ou seja, o conceito periodicamente resgatado (e enganoso) de que “cedo ou tarde todo conteúdo de mídia vai fluir através de uma única caixinha”. A certa altura, após algumas reflexões teóricas, ele destaca: “não sei quanto a vocês, mas eu estou vendo cada vez mais caixas pretas na minha casa”. E, completo, junto com as caixinhas vem as tarefinhas. Isso só vai acabar de fato quando estivermos dentro de outra caixa, embaixo da terra.
Pra quem trabalha inserido em contextos digitais, não há muito o que se fazer a não ser manter uma atenção constante e uma mentalidade minimalista caso não queira ser levado pela enxurrada de atualizações, notificações e providências burocráticas disfarçadas de design fofinho dentro de caixinhas.
Uma vez, ouvi o Lama Padma Samtem dizer isso numa palestra: “onde se constrói piso, as folhas se acumulam”. Enquanto não encontramos uma saída definitiva, só nos resta varrer com certa graça.
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Foto: Raumrot
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Nota do editor: esse texto foi originalmente publicado no blog Conector.
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