"Na véspera de não partir nunca, ao menos não há que arrumar malas", dizia o poeta Álvaro de Campos.
Certo em partes ele, já que, convenhamos, não é tarefa das mais agradáveis fazer caber todo o necessário num caixote móvel. Acontece que na possibilidade de não partir nunca, perde-se também os alumbramentos que, arrisco dizer, só acontecem quando saímos da zona de conforto — seja quando, ainda crianças, desbravamos o bairro ou quando, já crescidos, conhecemos um novo lugar.
Contrariando o poeta, juntei, em fevereiro, o pouco que eu precisava em duas mochilas e peguei carona na Antônia, kombi da amiga Jaqueline Scissar. Elas saíram de Florianópolis, em Santa Catarina, foram até Chapada Diamantina, na Bahia, e voltaram à capital catarinense. No meio do caminho de volta, no Rio de Janeiro, embarquei nessa viagem também.
Mas nada que tinha na bagagem me preparou para o que viria.
Percorremos o litoral carioca, paulista e iríamos rumo a Florianópolis — se Antônia não tivesse quebrado na Serra de Maresias, nos forçando a terminar a viagem de avião.
Ao total, foram dez dias, o que pode parecer pouco em tempo, mas jamais em experiências vividas. Para mim, acostumada a viagens que incluíam hotéis com estrelas, pousadas charmosas e um certo conforto, estar a bordo de uma kombi, sem rumo muito certo e à mercê das intempéries da estrada foi um desafio.
Só que é justamente quando a gente se desnuda dos preconceitos que a mágica acontece. Conheci gente que abriu sua casa e coração para nos receber. Gente que dividiu o que tinha — sem pedir nada em troca.
Teve quem nos acompanhou de um destino a outro e acabou virando amigo, quem deixou saudade e aqueles que ficaram nos esperando na chegada. Também esbarramos com o machismo daqueles que acham que mulher não dá conta da boleia. Descobrimos que o Brasil, esse país de dimensões continentais, é tão rico e diverso culturalmente que seria preciso uma vida para absorvê-lo — mas a gente vai tentando. Em cada dança, em cada prato típico, em cada sotaque, fui me descobrindo pelo caminho.
Na base de cada viagem há muitas vezes o desejo de mudança existencial. E, segundo pesquisa de Adam Galinsky, professor da Columbia Business School, essa é uma possibilidade tangível, já que colocando o pé na estrada você pode, além de fazer bons amigos e acumular histórias para contar, turbinar sua capacidade cerebral e mudar sua personalidade para melhor.
"Viajar é a expiação de uma culpa, iniciação, incremento cultural, experiência" — já cantava a bola o livro Walkscapes: o caminhar como prática estética. Saí do Rio de Janeiro fugida de um bocado de insatisfações e cheguei a Florianópolis tão plenamente satisfeita que quase não cabia em mim. Imagino que com Jaque não tenha sido diferente. Mais de 20 cidades depois, ela, que se jogou na estrada buscando entre muitas coisas aventuras e independência, retornou ainda mais certa em transformar a experiência em estilo de vida.
A raiz indo-europeia da palavra experiência, aliás, é per, que é interpretada como "tentar", "arriscar". Viajar, assim, é um constante "por à prova" que vale a pena. Pelo menos aos que estão dispostos a expandir sua visão de mundo — e de si mesmos.
Porque aqueles que partem sabem: tem viagem que a gente faz pra dentro.
Dessas, a gente não volta nunca.
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