— Senhor?

— Pois não?

— Adão, na linha dois.

— Pode passar.

— Sim, Senhor.

— Alô?

— Oi, Adão. Tudo bom?

— Tudo, e o Senhor?

— Meio corrido aqui. Mas diga.

— Eu estava pensando aqui… Será que temos contratar um estagiário?

— Um o quê?

— Um estagiário. Lembra quando o Senhor arrancou uma costela para criar a Eva? Então, se eu der mais uma costela, o Senhor pode criar alguém para me ajudar com as tarefas aqui embaixo.

— Mas que tarefas? Tudo o que você precisa fazer é cuidar do Paraíso.

— Falando assim, parece fácil. Mas é mais complicado do que o Senhor imagina. Tenho que cuidar dos animais, regar as plantas…

— Adão…

— Não tem como aumentar um pouco o dia? O Senhor acabou de criar tudo, ninguém vai reparar se o Senhor fizer o dia ter umas 30 horas.

— Nem pensar, Adão!

— A gente pode falar que era uma versão beta, que tal? Agora, lançamos o dia 2.0, com mais horas e muito melhor para todo mundo!

— Adão, você não tem nada para fazer?

— Tenho sim, é justamente por causa disso que estou ligando. Eu estou cheio de coisas para fazer aqui, não estou mais dando conta. Por isso que um estagiário…

— Eu não vou contratar ninguém. Esqueça.

— Aquela cobra que fica ali perto da macieira me disse que o Senhor tem orçamento para isso.

— Adão, o que Eu disse sobre aquela cobra?

— Bem…

— O que Eu disse sobre a cobra?

— Que não era para conversar com ela.

— Isso. Agora, se você cumprisse suas tarefas ao invés de ficar de bate-papo…

— Não é isso. Eu realmente estou muito sobrecarregado.

— Vamos lá. O que você ainda tem para fazer hoje?

— Alimentar todos os animais. Aparar as árvores que começam com “c”. Limpar todos os lagos.

— Mas estas eram todas as suas tarefas de hoje! Você não fez nada até agora?

— Eu já comecei a aparar as árvores com a letra “c”. Já fiz duas cerejeiras e um carvalho.

— Três árvores? Nós estamos no meio da tarde!

— Bem…

— O que você fez o resto do dia?

— Bom…

— Adão? Posso dar um conselho?

— Sim.

— Eu sou onisciente. Eu vou saber de qualquer jeito. É melhor falar.

— Certo. Tem razão. Eu estou muito enrolado com uns frilas.

— Com o quê?

— Com uns frilas. Eu tenho pegado uns trabalhos por fora…

— Como assim?

— Bom, outro dia eu estava conversando ali com os macacos, e eles me mostraram um negócio que o Senhor criou chamado escrita.

— Eu ainda não autorizei isso!

— Bom, desculpe, eu não sabia. Eles me mostraram aquilo, me ensinaram a escrever. E nem é tão difícil. Eu só achei um pouco complicado o negócio da crase, nunca sei quando usar aquilo. Aliás, aproveitando, quando a frase tem nome próprio, a crase…

— Foco, Adão! Foco!

— Certo. Enfim, os macacos estavam empolgados com esse negócio da escrita, e decidiram usar esse conhecimento para fazer um jornalzinho aqui.

— Jornal?

— Sim. Chama A Gazeta do Paraíso. Sai todos os dias, contando o que está acontecendo no Paraíso. Tem todas as notícias, entrevistas com os animais. Só não tem ainda suplemento cultural, porque os macacos acham que seria pedante demais. E eu estou escrevendo no

jornal.

— Continue.

— Comecei fazendo algumas reportagens mais simples, mas eles me passam cada vez mais trabalhos. Agora eu escrevo matérias, editoriais… E faço uns trabalhos de publicidade.

— Publicidade?

— Ah, sim. Eles têm anúncios no jornal e até mesmo montaram uma agência lá dentro. Mas não gostavam dos textos do orangotango que escrevia lá dentro, então demitiram o macaco e passaram estes textos para mim. Mas eles querem que eu tenha uma sacada genial em todos os anúncios. Eu já expliquei que não dá, mas eles insistem.

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— Então você não consegue mais cuidar do Paraíso, pois está trabalhando como jornalista e publicitário.

— E fotógrafo.

— Oi?

— Ah, sim. Às vezes me mandam para umas pautas, junto com algum jornalista. Mas eu detesto isso. Ontem, fui fotografar uma girafa que foi entrevistada. Tive que andar duas horas carregando aquela pedra até onde a girava estava. Aí, mais uma hora desenhando a girafa com carvão, mais duas horas carregando a pedra até a redação e só aí voltei para casa. E nem pude descansar, tive que terminar um texto.

— Adão?

— Mas era fechamento, não tinha o que fazer.

— Adão?

— Eles também pediram para eu diagramar umas páginas, mas isso eu não sei fazer. Sei escrever. Quer dizer, não sei usar a crase, mas…

— Adão?

— Sim?

— É o seguinte. Eu não autorizei o uso da escrita. Eu não autorizei nenhum jornal no paraíso.

— Mas…

— Não tem “mas”! Eu sou o Deus aqui e isso vai acabar hoje!

— Hoje? Não dá para esperar pelo menos eu receber pelas matérias desse mês? Porque eles pagam bem, pagam três cocos por texto e um peixe por foto. Aliás, se o Senhor tiver uma nota fiscal para me vender…

— Chega! Isso acaba agora!

— Mas o jornal está indo bem! Tem centenas de leitores!

— Adão, sua função é cuidar do Paraíso! É para isso que você está aí!

— Mas eu gosto de escrever, e…

— A escrita não foi inventada! Ainda é um projeto!

— Bem, eu…

— Chega. Não quero mais saber disso. Esse jornal acaba hoje!

— Mas os macacos…

— Eu me entendo com os macacos.

— E a liberdade de imprensa?

— Olhe, se você quiser, eu mando meia dúzia de anjos com espadas de fogo ir até aí embaixo conversar com você sobre a liberdade de imprensa.

— Não, Senhor.

— Certo. O que você vai fazer agora?

— Alimentar os animais.

— E o que mais?

— Limpar os lagos.

— Isso. E terminar de aparar as árvores.

— Certo. Eu paro de escrever. Combinado. Mas e o estagiário? Pode ser um menino de primeiro

ano mesmo, para me ajudar com os anim…

— Adão, eu vou desligar.

— Certo.

— Adeus.

Aí a casa caiu

Resignado, Adão foi cuidar do Paraíso, pensando em como seria bom se não tivesse um emprego fixo e pudesse fazer seu próprio horário. Enquanto isso, dois anjos desceram até a redação do jornal e arrasaram o lugar, apagando a escrita do cérebro dos animais. Assim, a escrita demorou séculos para ser inventada – era para ter demorado menos, mas Deus perdeu algumas décadas simplificando o uso da crase.

O que ninguém ficou sabendo é que o orangotango que havia sido demitido escapou dos olhos dos anjos e levou o conhecimento da escrita com ele. Indignado com os desmandos de Deus, fundou um novo jornal, de oposição e com tiragem limitada.

Era um tablóide que atacava o governo de Deus e lutava pelos direitos dos animais do Paraíso, editado pelo macaco e revisado pela Serpente.

Era quase todo escrito por Adão, que assinava suas matérias com pseudônimos.

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.