Muita gente pergunta por que ando de muletas. A versão rápida-espanta-curiosos é a de que eu fui atropelado aos 12 anos, mas a versão real e completa é um pouco mais complicada e extensa.

Eu nasci com uma doença genética, chamada hemofilia, que se origina por uma alteração de um gene no cromossomo X. Esse defeitozinho impede o corpo de produzir uma proteína que atua na coagulação do sangue. É como se uma pessoa hemofílica vivesse com anticoagulante nas veias. 

De onde surge?

Homens têm um cromossomo X (que veio do óvulo da mãe) e um Y (que veio do espermatozóide do pai), então se o cromossomo X tiver o gene defeituoso, o homem é hemofílico. Isso é muito raro de acontecer entre as mulheres, já que elas carregam dois cromossomos X e se um deles tiver o gene defeituoso, o outro compensa, sendo assintomáticas.

As raras mulheres com o gene defeituoso tem muitos problemas durante os sangramentos menstruais.

Henfil e sua mãe

Portanto, já dá pra sacar que em um casal, cuja mulher tem um cromossomo com gene defeituoso (XhX) e o homem não é hemofílico (XY), a probabilidade de terem um filho hemofílico é de 25%, pois as interações cromossômicas possíveis são: XY (menino normal), XhY (menino hemofílico), XhX(menina portadora do gene) ou XX (menina sem o gene).

Se, por outro lado, houver um casal no qual a mulher não é portadora do gene (XX) e o homem for hemofílico (XhY), que é o meu caso, não há a possibilidade de gerarem um filho hemofílico, embora todas as meninas geradas carregarão o gene defeituoso. Pra esclarecer, seguem as possibilidades de interações cromossômicas, desse casal: XhX ou XY.

Classificação da hemofilia

Dependendo de qual é essa proteína a hemofilia é classificado em:

  • Tipo A, se faltar o Fator VIII de coagulação;
  • Tipo B, se faltar o Fator IX de coagulação e;
  • Doença de Von Willebrand se faltar o Fator de Von Willebrand.

Dependendo do nível de fator no sangue, a doença pode ser classificada em:

  • Grave, se a quantidade do Fator produzido for abaixo de 1%;
  • Moderado, se a quantidade do Fator produzido for entre2 e 5%;
  • Leve, se a quantidade do Fator produzido for entre 6 e 50%.

Eu sou hemofílico do tipo B, grave.

Algumas estatísticas

Hoje em dia, a hemofilia afeta 1 em cada 10.000 recém-nascidos e tem uma prevalência, na população mundial, de 1 em cada grupo de 100.000 habitantes, sendo classificada como doença rara pelo Portal Europeu de Doenças Raras, Orphanet.

Na população hemofílica, 75% a 80% dos casos são do tipo A e 20% a 25%, do tipo B, e no Levantamento Global de 2010, da Federação Mundial de Hemofilia, o Brasil apresentou 8.449 hemofílicos do tipo A e 1.616 hemofílicos do tipo B.

A expectativa de vida de um hemofílico antes de 1960 (quando começaram a surgir tratamentos para acidentados) era de apenas 11 anos. A partir da década de 1980, a expectativa de vida subiu para 50 a 60 anos e, hoje em dia, com tratamento adequado, as estatísticas mostram que a pessoa hemofílica vive, em média, 10 anos a menos do que uma pessoa não-hemofílica. Ou seja, se pegarmos a expectativa de vida no Brasil (75 anos) e subtrairmos 10 anos, eu, com 30, já atingi a minha meia-vida.

Como é a vida de um hemofílico?

Acontece que o sangue simplesmente não coagula e os machucados não cicatrizam. Isso quer dizer que qualquer topada na quina do armário, ou um ralado jogando bola, ou um tombo de bicicleta, são motivos de muita preocupação tanto para o hemofílico quanto para seus parentes.

As hemorragias podem aparecer por algum trauma sofrido ou espontaneamente, o que coloca a pessoa num constante estado de atenção. É como se a tubulação da sua casa estivesse sempre na iminência de ter algum vazamento interno.

Betinho, apesar da expressão séria aqui, um coração gigantesco

Os sangramentos internos causam edemas (ou hemartrose) e muita, mas muita, dor. Se os edemas forem freqüentes e não receberem tratamento adequado pode causar a artropatia hemofílica, que é a perda de movimento, atrofia muscular e ‘endurecimento’ da articulação.

Basicamente, é por isso que eu uso muletas. Tenho artropatias nos dois joelhos, nos dois cotovelos e em alguns dedos da mão.

Essa história de sangrar até morrer é verdade?

Sim e não.

Não, afinal, estou aqui escrevendo este texto pra vocês e sim, por que se não houver tratamento disponível e o ferimento for grave, a pessoa pode morrer de hemorragia. Até uma perna quebrada é algo bem grave para um hemofílico, podendo levar à morte.

Muitos médicos incentivam os hemofílicos a desenvolverem a chamada “aura” da doença. É como se fosse um estalo ou faísca, no cérebro, indicando que uma crise de dor vem vindo, antes mesmo dela se desenvolver. Isso é importante porque dá à pessoa a possibilidade de se tratar antes de um quadro mais grave.

Hoje em dia, existem os chamados tratamentos profiláticos, em que a pessoa toma uma quantidade de medicamento, prescrita pelo médico hematologista, antes mesmo de ocorrer qualquer problema ou sangramento. É uma garantia para que, se caso ocorrer alguma pancada, o corpo já esteja pronto para se curar.

Nas palavras do Manual de Reabilitação na Hemofilia, do Ministério da Saúde:

“O tratamento profilático esta indicado nas hemofilias graves e tem como objetivo principal prevenir as hemartroses de repetição, que podem ocasionar (…) deformidades funcionais permanentes. Sua meta consiste em manter os níveis plasmáticos, do fator deficiente, iguais ou maiores do que 1UI/ml (Ag) ou maior ou igual a 1%.”

No meu caso, tomo uma dose uma vez por semana, o que me “protege” de sangramentos, espontâneos ou não, mesmo praticando esportes.

Acontece que mesmo o Ministério da Saúde recomendando que o tratamento preventivo seja disponibilizado para todos os hemofílicos, isso ainda não é uma realidade e por diversas vezes a disponibilização desses remédios é alvo de disputas políticas, prejudicando principalmente os pacientes.

Aspectos psicológicos

A hemofilia não deve ser encarada apenas como um problema fisiológico, a parte psicológica da doença também deve ser levada em alta conta.

O stress do medo de se machucar pode levar muita gente a ataques de pânico, crises de ansiedade ou depressão.

Ter um hemofílico em casa altera toda a rotina da família, desde tomar mais cuidado com as possíveis quedas ou machucados até treinar membros da família para aplicarem as injeções do medicamento. Isso leva muitas crianças a se sentirem um fardo para a família.

Durante a adolescência, quando as identidades estão sendo formadas, a pessoa hemofílica se vê numa situação muito complicada. Embora tenha a vontade e energia para se aventurar e romper com a sociedade, a doença não lhe permite uma liberdade comum a outros jovens e sua condição pode estigmatizá-la. A identidade da doença pode se tornar maior do que a identidade da pessoa.

O profissional hemofílico, às vezes, se encontra em situações embaraçosas, tendo que sair do trabalho, sem aviso, ao se machucar ou faltando por vários dias seguidos por causa de alguma complicação.

Além das deformidades que podem aparecer, questões de sangue e a possibilidade de criar descendentes hemofílicos, sempre podem trazem problemas nos relacionamentos.

Eu mesmo já tive que desmarcar, em cima da hora, vários encontros, por ter me machucado e ficando impossibilitado de andar. Nem sempre a garota levou isso numa boa.

E como viver com isso?

Até os meus 26 anos eu não tive acesso ao tratamento profilático da hemofilia e, mesmo assim tive uma criação super solta, brincando, me machucando e viajando o mundo com meus pais. Naquela época, o medo de contrair doenças pela transfusão de sangue ou derivados era muito grande entre a população hemofílica.

O Betinho e Henfil – hemofílicos ilustres – morreram de AIDS, adquirida em transfusões de sangue contaminado, muito antes de ela ser uma doença tão conhecida.

Lógico que não ter acesso ao medicamento tem seu custo. Já fiquei, muitas vezes, semanas inteiras deitado na cama, machucado, fazendo as provas da escola em casa e tendo aulas particulares com minha mãe.

Já passei várias noites seguidas em claro apenas pedindo que o sol voltasse a raiar para que eu pudesse ter algum entretenimento para aplacar a dor.

Por mais sombrio que isso possa parecer, tiro vários aprendizados e qualidades desses momentos.

Não dá para ver bem, mas este sou eu fazendo uma travessia em águas abertas

Se, por um lado eu não conseguia dormir de tanta dor, por outro, desenvolvi uma paciência incrível com o meu corpo e aprendi que não dá pra querer que as coisas aconteçam logo.

Se eu tinha que ficar semanas deitado depois de me machucar, o momento no qual eu me curava e podia brincar de novo era sublime. Sempre me senti cheio de vida nessas horas.

Se durante 26 anos eu não podia fazer tudo aquilo que queria por medo de me machucar. Ter acesso ao tratamento profilático representou uma liberdade inimaginável.

Ter consciência real da fragilidade da vida me tornou uma pessoa sem tempo a perder. Enquanto alguns se deixam levar pelo medo e tentam criar uma falsa sensação de segurança, eu vou na contra-mão e uso a força do medo que eu sinto como impulso para viver.

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.

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