Acordou. Em parte. O braço esquerdo continuava adormecido, e só com algum esforço foi capaz de retirá-lo de debaixo do travesseiro onde a esposa repousava a cabeça, ressonando levemente.

Sim, “ressonando”. Coisa de amador. Quem roncava ali era ele, um pouco mais a cada ano, a cada quilo, a cada taça de vinho, em episódios cada vez menos esporádicos de sinfonia noturna para uma orquestra de serrotes. Tortura para ouvidos sensíveis e sonos leves.

Desta vez, ao menos, havia acordado sozinho. Desnecessário o cotovelaço habitual, evitada mais uma rodada de constrangedoras discussões sobre as dificuldades inerentes à convivência conjugal sob a gestão de Morfeu.

Pensou, esfregando o braço que dolorosamente formigava, lentamente recuperando a circulação e retornando à vida: não entendia como um casal casado podia chegar ao ponto de admitir dormir em camas separadas. Daí a banheiros, quartos e casas separadas um passo, questão apenas de saber o valor que cada um dava a espaço, privacidade, mantendo intacta uma “zona de conforto” individual em detrimento de uma intimidade a tão duras penas compartilhada, na alegria, na tristeza, nas fortuitas emissões gasosas, no mau hálito matinal, na apnéia do sono.

Precisamos conversar sobre nossos modos na cama

Afastou-se aos poucos, o corpo nu como o da companheira de casa, cama e casamento. Raríssimo consenso: ele costumeiramente com calor, ela quase sempre com frio, justificando o constante roubo de lençóis e cobertores, dificuldade adicional quanto ao convívio horizontal.

Camas separadas, refletiu enquanto procurava pelo chão a cueca samba-canção. Talvez proporcionassem ao casal um sono de melhor qualidade; repouso assegurado, garantia de um funcionamento melhor no cotidiano. Sonho de consumo. Mas valeria à pena abrir mão das possibilidades implícitas no “dividir o colchão com a pessoa amada”? Não apenas o sexo, o pré-sexo, o pós-sexo: rituais de sedução em vigor por mais de década, cessar-fogo negociados após prazerosa batalha (ou duas, ou três), doces palavras ditas ao pé do ouvido em meio a lençóis meticulosamente desgrenhados, sem obrigatoriedade de nesse momento um ou outro dirigir-se ao próprio leito.

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Dirigiu-se à cozinha pensando em quão rapidamente haviam caído os dois no sono desta vez, cansados, suados, satisfeitos. Serviu-se de um generoso copo d’água. Na mente, a certeza de que dividir representava nesse contexto somar. Individualidade e cumplicidade, meio-termo a ser buscado entre concessões, descobertas e aprendizado. Sorriu, feliz com a perspectiva de retornar à cama que enxergava como palco de uma união já tão bem entrosada, em tantos níveis. Seria diferente por que na hora de dormir?

Aconchegava-se, minutos depois, no sofá da sala, seu lugar na cama ocupado pela filha do meio, em migração noturna pós-pesadelo. Conchinha? Sonharia com isso. No exílio.

Erico Verissimo

Serial father, sistemeiro desenvolvimentista computacional, pessoa humana nas horas vagas. Ateu praticante, corintiano devoto, sempre com fé na vida. Moço casadoiro, aliança no dedo já há uma década. Antecipando a crise dos 40. Jênio incompreendido, vidraça fantasiada de estilingue. De tudo um pouco e mais um pouco em <a>verossimil.wordpress.com</a> ou em @verossimil."