Quando vi o rosto de Suhayr pela primeira vez, não acreditei na sua beleza. A burca dava a ela um ar de profundo mistério e a única pista, um par de olhos verdes em longos cílios, era arrebatadora. E ela sabia disso.
Encontrei-a numa passagem da Universidade El Manar, em Túnis, capital da Tunísia. Suhayr e Sabirah estavam distribuindo materiais sobre o Islã e ficaram muito satisfeitas com meu interesse. Sabirah usava apenas um hidjab, mas de Suhayr só eram visíveis seus olhos. O vento no mediterrâneo é intenso e corta o rosto, então confesso que o hidjab tem serventia prática e pode ser bastante confortável. Mas como se sente uma mulher usando uma túnica escura da cabeça aos pés debaixo do sol do meio-dia?
— Eu me sinto honrada, respeitada, protegida, valorizada – respondeu Suhayr em um inglês bem pronunciado.
Difícil acreditar que tendo de se esconder para se sentir respeitada ela se sentisse, de fato, respeitada. Deixei que Suhayr e Sabirah brigassem pela minha atenção e, durante alguns dias, segui os passos de sua lógica para compreender do que se tratava aquele raciocínio. Ambas muito jovens, entre 20 e 22 anos, falavam sobre a vida e sobre relacionamentos com um aparente domínio. Suhayr, por exemplo, contou-me que os homens que encontram facilidades em uma mulher não a valorizam. Por isso é importante se conhecer antes de casar, mas se aproximar fisicamente apenas após o casamento. “So no heartbreaks!”
Lentamente e com cautela, comentei sobre os casos de mulheres muçulmanas do Marrocos e da Arábia Saudita que eram usadas por seus maridos ingenuamente para fins de tráfico de drogas e estavam presas no Brasil, abandonadas e envergonhadas, por quem a família não se movia em auxílio. E cheguei na minha própria história: mãe solteira. Relatei os motivos da separação e Suhayr ponderou: “was probably for the best…”
— O que o alcorão diz sobre isso?
— O alcorão tem uma sura inteira dedicada às mulheres, ensinando os homens a tratar e a cuidar delas. Não há nada parecido sobre os homens. O profeta se preocupava com as mulheres. Falam muito sobre a opressão sofrida pelas mulheres por seus maridos. Mas não são homens de fé de verdade. O alcorão diz que um marido que se zanga com sua esposa pode deixar de falar com ela por três dias. Se ela não reconsiderar sua teimosia, ele pode fazer isso. – tomou meu antebraço e, com dois dedos, deu um tapinha perto do pulso. – Esse é o castigo que um homem pode dar à sua esposa. Nada mais. O casamento é sagrado e divórcio é algo muito sério.
Perguntei se ela já havia se apaixonado e Suhayr me conta que estava noiva e o noivado se desfez. A família dele foi contra a união após seis meses de namoro. Namoro… no termo deles. Seis meses de encontros com as famílias presentes, ela coberta de um lado, ele no sofá do lado oposto. Ainda assim, o desmanche do noivado trouxe sofrimento à Suhayr, o que ela entregou logo a Deus. Digo, Allah.
— Posso visitar a mesquita?
— É apenas para muçulmanos… Mas se você estiver vestida… pode, sim.
Marcamos um encontro para dali a dois dias. Ambas me buscaram no hotel e me levaram para lojas da moda. Entramos em um lugar de roupas femininas e elas ficaram muito felizes em me dar um traje. Escolhi o mais simples e barato. Mas queria tudo. Elas se espantaram:
— Tudo? Quer usar… tudo? Você diz…
— Sim. Tudo.
Elas sorriram animadas:
— Linda! Vamos ensinar você!
É um longo processo: você já está vestida. Por cima, coloca uma túnica de tamanho único. É larga e longa. Para caminhar nas ruas é preciso segurar um pouco do tecido para não tropeçar. Depois, um hidjab (cobrindo os cabelos), que também deve ser preso da maneira correta. Por cima, um niqab (véu que deixa apenas os olhos à mostra). “Oh! Você está tão angelical!” Para finalizar, luvas longas. Por incrível que pareça, as luvas me chocaram. Elas são o auge da perda de contato com o mundo exterior. Nada do que você por acaso toque, é possível sentir. O mundo de dentro e de fora da roupa se separam. O que se pode ver de dentro é em linha reta. Para olhar a guia ou o degrau, é preciso segurar o niqab com a mão, aproximando o tecido dos olhos para ganhar um pouco de dimensão. Segurar outra coisa além da roupa pode comprometer o caminhar. Comer na rua é uma arte. Ofereceram-me um docinho e aceitei por cortesia. Daí pensei “e agora, o que faço com isso?”. Ensinaram-me: passa o doce por debaixo do tecido e leva com sua mão de luva até a boca que você não sabe mais onde está exatamente.
No entanto, andando toda coberta, compreendi a explicação de Suhayr: “honrada, respeitada, protegida, valorizada”. Andando como Camila a leitura era rápida: cabelo curto = estrangeira. Sem véu = secular = fácil. Educada = prostituta. Nas mais diversas situações fui assediada: olhando coisas em lojas, pegando um táxi, caminhando na rua, dentro do hotel. Mas na medina especificamente (o local do comércio) era uma loucura. Vendedores pegavam na minha mão e, em vez de responder o preço do que eu estava perguntando, devolviam uma pergunta: “podemos passar esta noite juntos? Você está disponível?” Só com os olhos de fora, no entanto, caminhando pelos mesmos lugares, pedindo a mesma informação para os mesmos homens, senti-me “honrada, respeitada, protegida, valorizada”. Não havia assédio. Apenas homens solícitos, gentis, reservados, sérios, dedicados e distantes. A atenção, em alguns momentos, era servil. Alguns homens se inclinavam ligeiramente na chegada e na despedida. Era uma reverência à pureza e decência que os tecidos sugeriam.
Os homens árabes são, de maneira geral, robustos e fortes, grandes, espaçosos, agressivos, traços marcantes, imponentes. Briguentos, gritam no trânsito, gritam para pedir uma oferta na medina, gritam quando se encontram. Nas músicas, gritam. A arte é dionisíaca, exterior, dramática. Não vi um homem beijando uma mulher em espaço público, mas muitos homens se cumprimentavam calorosamente com beijos no rosto, abraços e caminhavam de mãos dadas. De Túnis à Roma, duas horas em um avião com vários lugares vazios, os comissários tiveram de separar brigas três vezes, porque os homens estavam aos socos. São impacientes e voluntariosos numa cultura que os aprova e incentiva na soberania masculina. Homens e mulheres parecem estar ainda muito próximos de um tempo onde a formação grupal dava coerência às atividades de comércio e guerra, basicamente, sendo o casamento o comércio feminino.
A formação em comunidade pode servir a dois princípios contraditórios: a proteção e a obrigação. A vocação do segundo é dilacerar o primeiro. E no jogo cotidiano as mulheres estão particularmente fragilizadas. Minhas novas amigas logo passaram a me chamar de irmã. Conversávamos sobre nossas vidas e coisas íntimas. Enquanto comíamos, oferecíamos a comida a qualquer estranho que se acercasse. É o que o profeta diz que deve ser feito. Dividir a comida. Minhas novas irmãs, as três, estudavam e eram cultas. Falavam inglês, árabe e francês. Estavam na universidade. Podiam escolher seus maridos. Especificamente naquele cenário, a religiosidade era compreensão influenciada pela família e sociedade, mas era também uma escolha pessoal. Nenhuma delas demonstrava qualquer incômodo pela ideia de se casar, ter filhos, estar sob julgo do pai e depois do marido. Pelo contrário. Fazia sentido. Era um anseio.
Pela primeira vez me ocorreu que uma mulher que se cobre o faz em um exercício de liberdade orientado por sua religiosidade. E há efeitos práticos a serem considerados: enquanto uma mulher ocidental de um Estado laico, por exemplo, pode se despir em um exercício de liberdade, para ganhar dinheiro, fama, atenção masculina ou simplesmente porque se sente confiante e confortável para fazê-lo, uma mulher árabe pode se cobrir em um exercício de liberdade, para ganhar dinheiro, fama, atenção masculina ou simplesmente porque se sente confiante e confortável para fazê-lo. Não foram poucas as vezes que paramos na frente de joalherias e elas me mostraram o que gostariam de ganhar de seus noivos e de simular o que lhes parece ideal que um homem lhes provenha. Para olhos de Suhayr ou de Capitu, cobrir-se pode ser bastante apropriado.
As violações, mutilações, abusos, venda de meninas para casamentos negociados, estupro, escravidão, castigos, tortura e assassinatos de mulheres é muito mais fácil de se praticar em sociedades que privilegiam a administração masculina no lar e fora dele, onde a legislação regula a condução feminina pelo olhar de seu tutor, onde não existe punição normatizada aos homens que se excedem, onde as mulheres se deixam gerenciar inspiradas por sua ingenuidade, onde as instâncias legais são burocratizadas pelo exame da fé. Mas o fato é que para eles também não é fácil. Husam, um jovem de 19 anos que conheci por lá, confessou-me estar apaixonado por uma brasileira que, bem, não cobre a cabeça para frequentar o Rio das Ostras. Ela usa biquíni, o pai dela deixa, o Estado permite, tudo bem.
Para Husam, tudo bem vírgula. Mas ele está na Tunísia. Ela, no Brasil. Husam não faz todas as orações do dia, não fala frequentemente com Allah, não dispensa ter dúvidas sobre a religião, mas também não precisa dar satisfação sobre isso a ninguém. É homem, afinal de contas. A família orienta, mas não cobra. Isso alivia as pressões?
— Não. Na verdade, estou protelando algo que… Bem, eu sei que algum dia eu vou ter que fazer o que eu tenho que fazer. Sei qual é o meu caminho. Sei quais são as escolhas certas e as erradas. Mas agora não quero pensar nisso.
Até perguntei quais são as escolhas certas e quais são as erradas. Mas quando ele tergiversou, entendi que o importante ali é que ele acredita que, do alto de seus 19 anos, já existem escolhas certas esperando que ele as faça. O caminho já foi definido. Ainda assim, Husam pode namorar muitas garotas. Uma garota para se casar com Husam quando ele estiver pronto para a “escolha certa” deve ser virgem e crente. Antes do casamento ele pode exigir um teste de integridade do hímen da noiva. Qualquer familiar de uma mulher pode exigir o exame. Em contrapartida, qualquer familiar do noivo pode pedir o exame de integridade do ânus. Sexo fora do casamento é crime. Homossexualidade também. A comunidade que protege é a mesma que vigia.
Chegamos à mesquita e esperamos um pouco à porta. O horário de abertura estava próximo.
Tenho cá um particular interesse por espaços religiosos. Igrejas, mesas, terreiros, sinagogas, templos. Se a porta estiver aberta eu vou. Mas a sensação da mesquita inspira algo diferente de tudo o que eu já tinha visitado.
Uma mesquita é um espaço limpo.
Essa é a melhor definição que posso encontrar.
É limpa.
Não há poluição. Não há sugestões. Não há imagens de gente viva, morta, bicho, nada. Não há inscrições nas paredes, não há vitrais contando a história do profeta, não há esculturas. Existe o chão, o teto, grandes corredores fluídos integrando os espaços bem iluminados pelo sol de fora, tapetes de oração. Toda a simbologia e o rito que envolve o sagrado deve ser ensinado. Nada é presumível nem dispensa a iniciação por um praticante. As normas são rigorosas. Suhayr, Sabirah e uma nova irmã que se juntou a nós, Sumayyah, foram me guiando:
— Aqui tiramos os sapatos. Guardamos aqui. Todos esses livros são o alcorão. Tem em diversos idiomas. É só pegar o que te agrada para ler. Aqui pegamos esses sapatos limpos. Aqui colocamos. Aqui tiramos novamente. Agora vamos nos lavar. Três vezes a mão direita. Três vezes a mão esquerda. Três vezes o braço até o cotovelo. Direito. Três vezes o esquerdo. Três vezes o rosto. Três vezes o nariz. Primeiro a narina direita. Três vezes. Depois a esquerda. Três vezes. Agora a boca. Três vezes. E as orelhas. Com esse dedo, primeiro a orelha direita. Três vezes. Agora a esquerda. Vamos para o lava-pés. Primeiro o direito. Assim. Depois o esquerdo. Com esse dedo, você vai limpar entre os dedos. Três vezes. Primeiro o direito…
Suhayr ia falando e eu ainda estava perplexa com a beleza dela. Era a primeira vez que a via sem o niqab. Uma jovem linda, religiosa, crente, rigorosa. Uma mulher virtuosa do Islã, sem dúvida. Iniciava-me com alegria e método. A aproximação de Allah não pode ser vulgar. É preciso respeitar e merecer o sagrado. Ela deixava claro.
— Vamos colocar os sapatos e voltar lá pra cima.
Voltamos lá pra cima. Tiramos os sapatos novamente. Eu, impetuosa, corri feliz como uma criança para o parapeito do primeiro andar ao ouvir o chamado e ver os homens entrando na parte de baixo. Ela me puxou para trás com gentileza.
— As mulheres desconcentram os homens. Melhor não sermos vistas. Seja discreta.
— Mas eles não sabem que estamos aqui?
— Essa parte é reservada para as mulheres. Eles sabem disso. Mas se há alguém aqui, se não há, quem está, nada disso precisa ser revelado.
Uma religião de muitos véus, portanto.
Puxaram um lindo tapete e me ensinaram a oração.
— Senta. Não. A perna assim. Os pés assim. Cabeça ao chão. Não. Cotovelo assim. Pés assim. Cabeça assim. Volta. Mais uma vez. Volta. Mais uma vez. Volta. De pé. Mão assim. Faz assim. Agora assim. Cabeça ao chão. Olha o pé! Cotovelo. Isso. Sobe. Desce. Sobe. Desce outra vez. Sobe de novo. Agora você pode dizer a Allah qualquer coisa que esteja em seu coração. Tem três segundos. Desce. Cabeça ao chão. Agora…
— Impossível me lembrar de todos os passos – falei. – São muitos!
— Tudo bem. Podemos te passar alguns vídeos com explicações detalhadas. Aos poucos você aprende. Temos até aplicativos para te lembrar o horário de todas as orações.
E as orações coletivas tiveram início.
Fiquei muito perdida.
Passei tempo demais no chão, corri pra levantar, perdi o ritmo de abaixar e fiquei sozinha em pé, comecei a dizer a Allah o que estava no meu coração e já interromperam com palavras de ordem e aí tinha que abaixar de novo e eu nunca sabia se era só pra ajoelhar ou se era pra colocar a cabeça ao chão. Mas finalmente reconheci alguma coisa ali. A voz da oração em uníssono. O canto árabe me lembrou o latim gregoriano, o guarani dos mbya. Finalmente uma inspiração conhecida. É como dançar uma outra dança da chuva. Mas a intenção é a mesma: chuva.
Reconheci Allah naquelas terras secas.
É o mesmo homem. A mesma mulher.
Levei a cabeça ao chão e não me preocupei em levantar na hora certa.
Sorri.
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