Poucas ideias permeiam tanto a nossa geração quanto a ideia de “largar tudo”. Lemos impressionados aquela história do casal que largou tudo pra viajar pelo mundo, ouvimos com os olhos brilhando o relato do primo do amigo que largou tudo pra realizar seu sonho de escrever, vemos fascinados o documentário sobre o executivo insatisfeito que largou tudo pra abrir sua própria empresa.
O conceito de “largar tudo” se tornou, pra quem tem um emprego formal e uma idade entre 20 e 40 anos, uma espécie de fantasia máxima, uma forma de portal pra um mundo que une realização pessoal, profissional e a oportunidade de parecer bem mais interessante pras outras pessoas numa mesa de bar.
E isso acontece por várias razões. Primeiro porque vivemos talvez no período do capitalismo que oferece mais opções de trabalho cujo senso de razão e realização varia de muito baixo a quase nulo. E isso vai, é claro, influenciar o quanto de alegria você tira dessas atividades e o quanto você deseja fugir delas. Estudamos para realizar coisas, nos preparamos para produzir resultados tangíveis e cada vez mais temos empregos que fazem parte de engrenagens burocráticas, geramos resultados que não são coisas “reais”, mas sim relatórios, análises, arquivos sobre arquivos. Enquanto meu avô descreveria o trabalho dele como “colocar explosivos em pedras” e meu pai descreveria o emprego dele como “vendedor”, eu se precisasse explicar para um possível filho o meu emprego formal teria que começar com “bem, existe o relatório de acessos, certo?”.
Depois porque poucas gerações antes da nossa tiveram tanto contato com a própria ideia do trabalho enquanto realização e da busca por equilíbrio e felicidade. Pro seu avô, sucesso era sustentar a família. Pro seu pai, sucesso era sustentar a família e poder ter uma casa na praia, ver os filhos na faculdade. Pra nossa geração, sucesso é ter felicidade na vida pessoal e profissional conseguindo ter tempo para amigos, filhos, relacionamento, tudo isso se destacando na sua área e tendo segurança financeira para fazer aquela viagem de férias para aquele lugar que você viu no documentário do Discovery.
Crescemos acreditando que nós podemos ter mais, que a vida pode oferecer mais e por isso estamos sempre buscando mais, é claro.
E se você quer mais, os desafios enfrentados são mais complexos. Você quer um trabalho que te realize num mundo que tem uma estrutura produtiva cada vez mais mecânica, quer uma atividade que te permita desenvolver os outros aspectos da sua vida numa época em que as empresas não oferecem sofás, mesas de ping-pong e estimulam amizade no escritório porque querem te ver feliz, mas sim porque querem que você passe o máximo de tempo possível ali dentro. Você quer ter dinheiro pra investir em você mesmo num dos únicos momentos da história humana em que se oferece 500 reais pra um estagiário fazer trabalho que dez anos atrás seria de um gerente (e não tem vale-refeição e ele precisa ter veículo próprio, claro).
Daí nada mais natural que querer fugir. Querer largar tudo. Atirar a papelada pro alto, se recusar a preencher sequer mais uma planilha, mandar o chefe pro inferno, sair correndo pra casa, ligar o notebook e começar a escrever aquele fantástico livro de contos que você tinha se prometido ou se inscrever naquele curso de culinária que você sempre quis fazer.
Mas poucos de nós tem a coragem de fazer algo assim. Existe a insegurança e a acomodação, existem as contas pra pagar, as dificuldades de explicar pra sua mãe porque você mandou seu próprio pai para o inferno na hora de se demitir, se você trabalha numa empresa familiar. E quando você lê sobre as maravilhosas histórias das pessoas que largaram tudo e hoje são felizes, alegres, se destacam em suas áreas e saíram incrivelmente bem naquelas fotos, bate a culpa, claro. Aquela estranha sensação de que estão todos aí sendo ousados, todos aí vivendo a vida no limite, todos aí realizando seus sonhos mais íntimos e só você entrando sete e meia e precisando tomar doses de café totalmente desencorajadas pela Organização Mundial de Saúde pra não dormir durante videoconferências.
E as coisas não são assim, claro. Primeiro porque o volume de pessoas que “largam tudo” é sempre menor do que parece, possivelmente porque não existe muito impacto em matérias sobre pessoas que não largam nada e continuam trabalhando normalmente. Depois porque ainda que exista a ideia meio romântica de quem apenas sai correndo da mesa numa tarde de quinta-feira e decide mudar completamente a própria vida, grande parte dessas transições de carreira bem-sucedidas sobre as quais você lê são fruto de processos muito graduais e planejados, que envolveram muito menos tirar a calça e atirar pra cima no escritório e muito mais se organizar e economizar durante anos para chegar num objetivo específico.
Por fim, pode ser que largar tudo também não seja a solução pra você. Talvez ser dono do próprio negócio não seja seu perfil, talvez a estabilidade financeira seja mais importante que um certo nível de satisfação, talvez você apenas não possa se dar ao luxo de pensar assim nesse momento, talvez faça mais sentido pra você buscar alguma espécie de equilíbrio maior dentro do emprego que você já tem, uma mudança de área, uma compreensão maior das razões da sua insatisfação e que podem acabar continuando mesmo depois de uma mudança extrema de projeto de vida – se o problema for com você mesmo ele tende a te seguir pra onde quer que você vá.
Por mais que largar tudo seja uma tentação para todos nós e com certeza uma solução para alguns, é importante primeiro sempre entender o que é esse tudo que a gente quer largar e porque queremos isso. Não porque não temos o direito de esperar mais da vida e buscar isso que esperamos da maneira que for possível, mas porque essa busca tem muito mais chances de dar certo quando a gente entende o que quer e se planeja pra conseguir do que quando apenas nos sentimos muito pressionados por aqueles artigos meio exagerados que os seus amigos que já ganham mais do que você ficam postando no Facebook.
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