Vivemos em tempos velozes. Acorda aqui e almoça em Xangai, a fugacidade feito um parasita estimulante vivendo nas costas, balançando os pezinhos ansiosos nos ombros.

Casa e carro e trabalho e creche dos moleques e academia e curso de quiropraxia ou Power Point. Resta ainda a vontade de ficar uma ou duas horas a mais para ver uma série ou filme ou lembrar como é a cara e a voz dela.

Não podemos mais errar. Um passo em falso lá se foram os nossos planejamentos babilônicos. Isso transpassa para o cotidiano.

No escritório, não há espaço para equívocos nos números. Falhar com as tarefas do lar rende pia cheia e sacolas de lixo acumuladas no fundo da casa. Cometa o pecado de faltar uma única vez no treino de corrida e lá se vão dois meses de firula até voltar a treinar algo.

Defeito, falha, imperfeição. Tudo descartado, lembranças pustulentas, mágoas do passado recente de ter errado, de ter feito errado. O crime que gera a culpa e não tem coisa pior do que tricotar uma colcha de arrependimentos por aí.

Esse lance de ser polido machuca e dá um nó na cabeça.

Agora imagine se houvesse um lugar onde se poderia, sem o menor remorso, errar. Mandar mal, ser relapso, impreciso, inexato. Tente montar na sua cabeça um lugar onde todos os que cometem deslizes são saudados, aplaudidos. Um lugar pra se levar os amigos e fazer cagada atrás de cagada e ganhar bebidas por isso e admiração e atenção?

Imagine só que você pode ser querido por fazer tudo errado.

Esse lugar existe, amigão.

O Karaokê

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Obrigado, japoneses

Eu nunca gostei de karaokê, talvez pela atenção que ele te dá ao pegar o microfone na mão e já coloca em xeque qualquer Elis Regina ou Frank Sinatra devido aos arranjos sintéticos precários ou simplistas.

Mas aí é que tá: a ideia é toda essa!

O karaokê foi feito na medida para ser o espelho das nossas Alices, digo, egolatrias. Um destruidor de bom mocismo, de enceramento de caráter, de assepsia de enganos. É lá, em meio a música ruim e pessoas embriagadas antes mesmo de ficarem bêbadas, do êxtase barato e burro, que a mágica acontece.

Ora, quem canta mal é o popular do karaokê! As piores canções são as mais queridas. Não há espaço para belezas e grandes feitos harmoniosos.  A inversão acontece por completo e há quem pense em uma ditadura do despreparo, do carisma em detrimento da competência, algo que muito se encaixa quando falamos de outros âmbitos da complexa vida que levamos.

Mas no karaokê não existe sua vida ou outras vidas. Há apenas a televisão com imagens randômicas de dentes-de-leão ao vento ou casebres melancólicos nas estepes da Ásia Central. Enquanto você esgoela algum refrão de sucesso de dupla sertaneja dos anos 90, no televisor, uma taça de champanhe repousa preguiçosa sobre uma mesa de toalha branca em um iate. São pequenos prêmios que vão confortando o nosso olhar enquanto os ouvidos de todo o salão são atacados por balbúrdias sonoras.

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E não tem problema nenhum nisso. O karaokê não é sobre música, mas sobre libertação.

O Efeito Karaokê

É mais ou menos por aí (na foto: Fred Fagundes e Biso)
É mais ou menos por aí (na foto: Fred Fagundes e Biso)

Um cara que canta bem está em um karaokê. Ele geralmente chega sozinho, sisudo, concentrado. Paga pela sua canção, se levanta na hora que o nome da música aparece na tela grande, sobre no palco sem receber muita atenção e humilha todo mundo do recinto. Canta pra caralho, faz nuances com a voz, imita direitinho o intérprete original, improvisa certinho.

Acaba vez dele e, ainda sozinho ele vai embora.

Uma pena. Travado e preocupado com usa imagem vocal, ele canta bem, não se deixa ser afetado pelo público, não é inclusivo e vai embora. Diferente do tiozão que canta tão bem quanto, mas escolhe aquelas músicas italianas que todo mundo adora tirar o sarro. Canta muito, humilha todo mundo no recinto. Mas ele se liberta, faz caras e bocas, ri com os estranhos, deixa a molecada cantar junto com ele, berrar junto com ele. Acaba a canção e tudo é só festa. As pessoas aplaudem e o tiozão ganha uma cerveja de qualquer um lá de dentro.

Saca como a lógica se inverte?

Toda a mecânica do karaokê leva a indução do erro e, mais ainda, a celebração do erro. Uma música ruim com arranjo péssimo cantada por uma ou várias pessoas que não cantam bem ou não sabem acompanhar ou esquecem a letra, mas que, por outro lado, são especialistas em se deixar afetar pela histeria do lugar, pelas risadas, pelo bem estar.

É leve saber que você pode — e deve, até certo ponto — errar e que isso pode render coisas boas — novos amigos, novos contatos, uma descarga de todas as responsabilidades mundanas — e que isso ainda vai fazer bem para outras pessoas.

Enfim, o karaokê é a festa em que celebramos o nosso ridículo e a nossa pequenez. Festejamos o nosso estado impuro e incompleto e rimos muito disso.

Efêmero? Sim. Mas tudo deve-se começar por algum lugar. O bom é que, lá, você não está sozinho. O karaokê é uma obra coletiva e inclusiva. Cantar sozinho pode ser maneiro, mas é em grupo que a catarse ganha potência, é chamando mais gente que a coisa entra nos eixos, que faz subir o estado de entusiasmo comunitário.

É como dizem: “uma andorinha não faz karaokê”.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados