Os homens censurados são aqueles amolados, que rasgam onde encostam. Velada ou não, a censura sempre está aí onde a unha alcança.

Mas censura é também uma outra palavra para qualidade. Só o que tem qualidade é censurado. E o é justamente porque a tem. É como um índice de medição de eficiência, de bom gosto, de periculosidade.

Jesus, Giordano Bruno, Espinosa, D.H Lawrence. Todos eles foram censurados de alguma maneira. Por todo lugar há poder e onde há poder há censura. E onde há censura, por sua vez, há transgressores… Esses caras tiveram em comum o fato de combaterem grandes aglomerados de lama, de trazerem um tanto de saúde para lugares intoxicados por seres venenosos, o fato de serem inimigos do status quo de suas épocas. Todos eles tiveram em comum a mesma qualidade de terem sido mais do que era permitido, tolerável, admissível.

A história dos humanos é marcada por combates desse tipo. Não é nenhuma novidade. Incontáveis exemplos foram amenizados para caber em outros aglomerados de lama, em outros status quo cuja função é nos manter emparelhadinhos como bons cordeirinhos na fila para o abate. Trago um recente, que provavelmente nunca vai virar história de ninar: Henry Miller.

O nascimento do menino Henry

Miller nasceu aqui, em Manhattan, Nova York, 1891 anos e um dia depois de Jesus Cristo (o que, dizia ele, lhe rendeu o destino da cruz). Nascido de pais alemães e luteranos, frequentou escola, fez ensino médio e até completou um semestre de faculdade no City College of New York.

Sua família era um pouco pobre. Sua mãe, dona de casa, é descrita por ele como um ser asqueroso desprovido de amor. Seu pai, um alfaiate mediano, bebia muito, vivia em bares, fazia amizade fácil e não sabia lidar com dinheiro. Em um texto sobre velhice, publicado na coletânea Sexteto, Miller descreve um encontro com sua mãe no mundo dos mortos, e só então podemos ver algum amor se passando entre eles.

Miller era amigueiro como o pai e não parou de fazer amigos até o fim da vida. Lawrence Durrell, Blaise Cendras e Anaïs Nin (com quem teve um relacionamento amoroso) foram alguns dos amigos mais próximos, isso sem contar o sem-número de pessoas de todas as estirpes, classes, profissões, direções, religiões, etnias sobre as quais Miller canta.

Miller, à direita, e seu amigo Lawrence Durrell.

O nascimento de Henry Miller

Casou-se pela primeira vez em 1917, com Beatrice Sylvas Wickens. Com ela teve uma filha, Barbara, nascida em 1919. Nesse tempo, Miller trabalhava na Western Union, apelidada por ele de Empresa Telegráfica Cosmodemoníaca. No Trópico de Câncer, publicado em 1934, Miller descreve seus dias na empresa, onde trabalhava como responsável pela contratação de mensageiros. Por ele, diz no livro, “passavam semanalmente centúrias de pessoas em busca de emprego; pessoas de todos os cantos do mundo, esquizofrênicos, bêbados, desempregados que haviam perdido tudo, chineses, árabes, vagabundos, suicidas.” O impacto dessa vivência foi profundo e vive em seus escritos.

Os livros, por sinal, sempre foram uma paixão para o cara. Desde menino ele foi um devorador feroz, um frequentador de bibliotecas. Mas começou tarde a se dedicar a escrever e como escritor tardio, precisou se desvencilhar da vida que levava, o que só começou a acontecer quando conheceu June Mansfield em 1923, uma dançarina e prostituta de descendência romena.

June virou a vida de Henry ao avesso, provocando uma certa febre em Miller que ele passaria a cultivar deliberadamente por muito tempo. Casaram-se em junho de 1924 e entre 1927 e 1928, Henry escreve seu segundo livro, Moloch. Ainda sem o estilo “primeira pessoa, sem censura, sem forma, foda-se tudo!” que acabaria lhe consagrando. O livro foi financiado por um admirador (ou cliente) de June, que acreditava estar sendo escrito por ela. Mas só em sua temporada em Paris, alguns anos depois, que Miller atingiu a veia e começou a escrever no seu estilo característico.

Ali nascia Henry Miller, o autor de livros-bigorna.

Trópico de Câncer, a obra mais conhecida de Miller.

Seu primeiro livro publicado, Trópico de Câncer, foi escrito pouco tempo após ter se mudado para a capital francesa em 1930 e só foi impresso graças à ajuda de Anaïs Nin – que conseguiu o dinheiro necessário do famoso psicanalista Otto Rank.

Muito anos depois, Miller admitiu durante uma entrevista que começou a escrever no estilo autobiográfico porque achava que estava “narrando a história do mais trágico sofrimento que um homem jamais suportaria”. Miller, em geral, foi um amante do sofrimento:

Descobri que aquele sofrimento era bom para mim, que me abria o caminho, mediante a aceitação do sofrimento, para uma vida feliz. Quando um homem é crucificado, quando morre para si próprio, o coração desabrocha como uma flor.

Seus escritos passaram pela busca da autoafirmação, pela busca de si, pela busca da sinceridade, da potência própria, da própria singularidade. E foi justamente através da literatura que Miller conseguiu tal autoafirmação. Seus escritos narram sua vida, seus encontros, os acontecimentos bizarros e incríveis que experimentou. Tudo sem nenhuma autocensura. Era a narração de sua própria vida crua.

Assim ele se tornou um mestre no estilo, capaz de escrever uma página inteira a respeito de um único segundo vivido. Captando o máximo no mínimo, não é incomum que, ao lermos, tenhamos a sensação de que ele não deixava passar nada. Um momento que seria irrisório para os meros mortais aparece em sua obra como um ponto crucial que separa a vida da morte. Miller não desperdiçava, e deixou sua marca ao nos mostrar que era possível viver o momento mais breve como uma eternidade.

Espiritualidade nua e crua

Miller foi figura chave na chamada revolução sexual americana, junto com outros nomes de destaque. Seus livros escancararam a realidade (e banalidade) do sexo de maneira nunca antes ousada por outros autores. Nas páginas de Miller, bocetas, cacetes, gozos e gemidos se movimentavam livremente. Por isso foi chamado de obsceno, vulgar, pornográfico, exatamente as mesmas acusações feitas a D. H. Lawrence pelo seu O amante de Lady Chatterlay – escritor muito admirado por Miller e sobre quem ele quase finalizou um livro.

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Mas o pecado de Miller era dizer a verdade. E a censura odeia a verdade.

Enquanto era devorado na Europa, Miller teve que viver 70 anos para que pudesse ver seus livros publicados em seu país de origem. E mesmo quando tardiamente publicado, a repercussão do lançamento de Trópico de Câncer nos EUA foi tão grande que as leis de pornografia do país passaram a ser questionadas. Era Miller vencendo a censura.

Olhando assim, até parece que ele não estava pensando em como chocar a família tradicional americana.

Mestre da liberação sexual, não dissociava o sexo da espiritualidade desenvolvida. Na contramão da maioria dos movimentos, buscou afirmar o tesão como uma maneira de lidar com sua própria espiritualidade. E, de fato, há uma certa espiritualidade estranha em sua obra onde se destaca uma atitude: a rendição. Miller acreditava que era preciso aceitar o todo. Era preciso aceitar o mundo inteiro do jeito que ele é, com seus defeitos, asquerosidades, belezas e amores.

Foi numa visão que teve de Madame Blavatsky, enquanto escrevia o Trópico de Câncer, que disse a si mesmo “Henry, desista dessa luta, dessa ferocidade contra as pessoas. Ela não está levando você a lugar nenhum. Renda-se!”. Mas render-se, no caso de Miller, não significou resignar-se, mas apenas que a luta mudou de sentido. Deixou de combater os outros para combater aquilo que nele precisava morrer. Pode-se dizer que aí está sua apolitização. Outros podem dizer, ao contrário, que aí está sua política suprema. Mas o que interessa é o fato de ele ter sido alguém que buscou a sua própria verdade sem sentir a necessidade de a impôr, ou a busca dela, aos outros.

Sobre isso, Thomas Nesbit, que escreveu Henry Miller and Religion (Henry Miller e Religião), diz que Miller “dedicou sua vida inteira a articular a religião de auto-libertação em seus livros auto-biográficos. Como um princípio guia por trás da sua visão. Miller acreditava que sexo, religião e arte são correntes de um mesmo rio de criatividade”. Não que Miller fosse um religioso no sentido mais comum da palavra, sua religião estava mais no aproveitamento de pedaços de tradições esotéricas e no uso pessoal delas do que na participação em rituais ou cultos a deuses e livros sagrados. Daí que a liberação sexual, a liberação espiritual e a arte aparecem em Miller como três elementos cujo caldo se esforçou enormemente para engrossar.

Biógrafos como J. Temple vão mais além e o chamam de homem santo, mas de um santo amoral, desprovido de prescrições imperativas. Talvez o santo mais individualista que conhecemos. Não porque só ligava para si mesmo, como um mero umbiguista, mas porque sua única preocupação era sua própria libertação, deixando para os outros, as suas próprias, cada um a sua maneira. É que Miller acreditava que não podíamos mudar o mundo, e sim, quando muito, a nós mesmos.

Mas como pode ser que um escritor cuja vida era povoada por maldições, desesperos, fome, pessoas ruins e vagabundos de todos os tipos, fosse considerado também uma espécie de santo? Alguma semelhança com São Francisco de Assis, que antes de se converter era um bon vivant, um helenista no mais alto grau?

Não à toa, Miller o admirava. Como admirava Krishnamurti e outras figuras espiritualistas. Sua santidade estava justamente no gozo da vida como ela é, à maneira Zen-budista de viver.

Categoricamente, Miller foi alguém que soube viver, um desfrutador, um amante das singularidades e das lutas cotidianas. Assim mesmo, sem querer agradar a todos e preocupado com seus próprios problemas, foi capaz de inspirar pessoas e libertar gerações. Miller foi um homem nu, de espiritualidade crua, um devorador de livros e um artesão de frases luminosas, um homem que lutou para se tornar possível, e sem dúvidas um homem que você não deveria deixar de conhecer.

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A ‘Homens que você deveria conhecer’ é uma série colaborativa do PapodeHomem. A ideia por trás dessa coletânea que já tem mais de 50 textos é montar um conjunto representativo de homens vivos ou mortos que são dignos de notoriedade e que podem, através de suas histórias de vida, nos ensinar algo de positivo.

Para que essa série se torne cada vez mais representativa dos bons exemplos que nossa comunidade – autores e leitores – cultiva, dependemos da sua colaboração e estamos abertos para recebê-las. Através do meu email breno@papodehomem.com.br estamos recebendo sugestões e artigos de pessoas que você gostaria que conhecessem.

Para acertar a mão e emplacar um texto na série basta se atentar a algumas instruções: (1) os artigos são quase biográficos por isso eles podem obedecer a uma ordem cronológica dos fatos, mas (2) eles devem conter detalhes pouco conhecidos sobre a vida do personagem que justifique sua escolha. Além disso, (3) é importante que o texto não foque apenas no aspecto profissional da vida do personagem, queremos ‘Homens que você deveria conhecer’, não apenas empresários, engenheiros, artistas etc. Por último, (4) você pode visitar os outros 50 artigos da coleção para ter inspiração. Os outros parâmetros mais subjetivos, batemos individualmente por email quando você tomar tempo e coragem pra nos recomendar alguém. Até lá.

Andre Souza

Tem as pernas duras de flanar e a língua crespa de falar. Vai vivendo, a cada vez um dia, um dia a cada vez. Assina o blog <a>Um Bicho Homem</a> e pode ser encontrado no <a href="https://www.facebook.com/duaspernas">Facebook</a>."