Em uma cidade destruída por um furacão, geladeiras podres e abandonadas se tornam uma grande painel para moradores expressarem suas esperanças, suas piadas, sua arte, seu horror.

O vodu é uma das tradições locais de Nova Orleans.
O vodu é uma das tradições locais de Nova Orleans.

O Furacão Katrina

Em agosto de 2005, a cidade de Nova Orleans foi atingida pelo Furacão Katrina.

Grande parte dos um milhão e meio de moradores abandonou a cidade na antevéspera (eu inclusive), pensando que iriam ficar fora de casa somente por alguns dias, como sempre. (Nova Orleans é rotineiramente evacuada em antecipação a furacões que acaba que nunca atingem a cidade.)

Mas o Katrina atingiu.

A cidade foi inundada e parcialmente destruída. Duas mil pessoas morreram só na cidade.

Por estar abaixo do nível do mar, a água da enchente não tinha para onde ir. Nova Orleans permaneceu fechada aos seus moradores por cinco longuíssimas semanas, enquanto a água era lentamente bombeada para fora, xicrinha por xicrinha. Nesse meio tempo, animais de estimação morriam de fome dentro de suas casas, metais pesados na água contaminavam o solo e cadáveres boiavam amarrados a postes, para não desaparecerem.

"Aqui jaz o Tio Fester. Obrigado, Katrina". "Fester" além de ser o personagem da Família Addams, também quer dizer "apodrecer".
“Aqui jaz o Tio Fester. Obrigado, Katrina”. “Fester” além de ser o personagem da Família Addams, também quer dizer “apodrecer”.

As geladeiras de Nova Orleans

Quando os nova-orlenianos finalmente voltaram, no final de um verão escaldante, a comida em suas geladeiras estava podre. A podridão era tanta que as pessoas ficavam doentes só de abrir as geladeiras. Praticamente todas as geladeiras de Nova Orleans, menos as dos poucos gênios que tiveram a sabedoria de esvaziá-las antes do furacão, foram postas nas ruas, completamente tóxicas, para serem recolhidas pelos lixeiros. (Em uma cidade de um milhão e meio de habitantes, façam as contas de quantas geladeiras estamos falando.)

Infelizmente, no caos pós-Katrina, Nova Orleans também não tinha mais serviço regular de coleta de lixo. A instrução que recebemos foi colocar todo o lixo nas calçadas em frente de casa e ele seria coletado “quando fosse possível”. Em uma cidade já imunda e destruída, aquela enorme quantidade de lixo e destroços nas ruas e calçadas só fazia aumentar a atmosfera de pesadelo.

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Pra piorar, as geladeiras eram consideradas tão tóxicas que não podia ser retiradas junto com o lixo normal.

Assim, durante muitos e muitos meses, geladeiras podres e abandonadas foram um parte integrante da paisagem distópica da Nova Orleans pós-Katrina.

No natal, mais de quatro meses depois do furacão, ainda havia geladeiras largadas pelas ruas da cidade.

Quando o serviço de coleta regular de lixo foi finalmente retomado, muitos e muitos meses depois, eu quase quis beijar os lixeiros. Foi um momento sinceramente emocionante.

"Gumbo grátis dentro." Gumbo é uma sopa escura, comida típica de Nova Orleans.
“Gumbo grátis.” Gumbo é uma sopa escura, comida típica de Nova Orleans.

Arte distópica

Bem-humorado e pândego, o nova-orleniano típico não se deixou abater: em pouco tempo, as geladeiras estavam todas enfeitadas e grafitadas.

Nova Orleans, essa cidade sensual e sem-vergonha, se recusou a silenciar: usou a sua própria tragédia para produzir arte.

Uma arte necessariamente efêmera, forte e contingente, que sumiu em poucos meses (aliás, ainda bem), mas que deixou marcas profundas em quem estava lá e participou do processo de reconstrução de uma das cidades mais únicas do mundo.

O livro Do Not Open: The Discarded Refrigerators of Post-Katrina New Orleans reúne uma belíssima coleção de fotos dessas geladeiras. Eu recomendo.

Abaixo, alguns exemplos:

"Você fez um excelente trabalho, Brownie." Elogio de Bush ao chefe da FEMA, considerado incompetentíssimo.
“Excelente trabalho, Brownie.” Elogio de Bush ao chefe da FEMA, considerado incompetentíssimo.
"Favor enviar a George Bush na Casa Branca. Urgente: contém perecíveis."
“Favor enviar a George Bush na Casa Branca. Urgente: contém perecíveis.”
"Sou uma vítima. Adeus. Assinado, Geladeira."
“Sou uma vítima. Adeus. Assinado, Geladeira.”
"Por cinco dias, enquanto inundávamos, Bush pavoneava de coletiva de imprensa em coletiva de imprensa. Que se foda Bush."
“Por cinco dias, enquanto inundávamos, Bush pavoneava de coletiva de imprensa em coletiva de imprensa. Que se foda Bush.”
"Eu amo Nova Iorque."
“Eu amo Nova Iorque.”
"Texas, fique com os bandidos, devolva os Saints." Saints é o time de futebol americano de Nova Orleans.
“Texas, fique com os bandidos, devolva os Saints.” Saints é o time de futebol americano de Nova Orleans.
"Tudo que restou seco do Katrina se foi no Wilma." Furacão que inacreditavelmente bateu logo depois.
“Tudo que restou seco do Katrina se foi no Wilma.” Furacão que inacreditavelmente bateu logo depois.
"Deus da Moda dentro: não abra."
“Contém Deus da Moda: não abra.”
"Estou com dor de barriga."
“Estou com dor de barriga.”
"Adeus e obrigado pelos peixes!"
“Adeus e obrigado pelos peixes!”

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Para quem quiser saber mais, meu livro Liberal Libertário Libertino, à venda aqui pelo PapodeHomem, conta algumas das minhas histórias (e do meu poodle Oliver) durante o Katrina. Só R$20. Compra aí, tio.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu