“Você não consegue me dar filhos”, diz um nobre qualquer em vários filmes e novelas de época, queixando-se dos prejuízos políticos e sociais de não ter um sucessor. Eles ficariam surpresos – ou chamariam de bruxaria – se soubessem que 40% dos casos de infertilidade conjugal têm causa masculina, 50% têm causa feminina e 10% permanecem sem causa definida. No entanto, apesar das enormes descobertas nos campos da anatomia, genética e fisiologia nos últimos dois séculos, ainda há muitos homens (e famílias) que culpam a mulher quando um casal tem dificuldade em ter um filho.
Antes de mais nada, não se deve falar em culpa de ninguém. Há diversas causas para infertilidade, e ninguém escolhe ter alguma. Também é melhor falar em infertilidade do casal, e não da mulher ou do homem, pois ambos serão afetados psicológica e socialmente e deverão se envolver em juntos em consultas e exames. As mulheres são alvo da maioria dos tratamentos, que geralmente são caros, invasivos, prolongados e frequentemente frustrantes, e muitos parceiros se colocam numa posição distante ou se ausentam nessa jornada.
Nesse sentido, o texto de hoje é dirigido aos homens que enfrentam a infertilidade conjugal. Qual o seu papel nessa história?
A partir de quando devo me preocupar?
60% dos casais que têm relações sexuais regulares sem nenhum método contraceptivo engravidam nos primeiros seis meses, passando a 84% em um ano. Assim, recomenda-se que casais procurem um médico de família ou ginecologista-obstetra se não engravidarem após um ano de relações sexuais sem uso de anticoncepcional – em mulheres acima dos 35 anos, esse tempo pode diminuir para seis meses.
Enquanto a mulher será submetida a exames de sangue, ultrassonografias e radiografias com contraste, o homem deve fazer um exame decisivo: o espermograma. Após 3 a 7 dias sem ejacular (incluindo masturbação), o homem vai ao laboratório, masturba-se em uma sala e deposita o sêmen em um potinho – alguns estabelecimentos disponibilizam vídeos e revistas para ajudar. Essa coleta um pouco constrangedora é necessária para que o sêmen seja analisado logo após a ejaculação, permitindo medir o volume ejaculado, contar os espermatozoides por mililitro e analisar seu formato, vitalidade e movimentação (como estão nadando), dentre outros. Sugere-se colher duas amostras separadas por um a duas semanas, para maior confiança nos resultados. Não vou gastar o tempo de vocês com valores de referência, disponíveis junto ao resultado do exame; apenas por curiosidade, 40% dos espermatozoides devem pelo menos se movimentar, e 32% devem ser capazes de nadar em uma direção.
Caso haja alteração no exame físico da genitália (por exemplo, testículos diminuídos ou muito assimétricos) ou no espermograma, é preciso investigar sua causa, o que frequentemente passa por dosagens hormonais e/ou uma ultrassonografia da região.
Causas de infertilidade masculina
“Meu marido não quer fazer o espermograma. Ele tem um filho do primeiro casamento e diz que o problema não é com ele”. Já ouvi isso algumas vezes em atendimento, mas infelizmente a maioria das causas de infertilidade são adquiridas, ou seja, surgem ao longo da vida. Isso significa que um homem que já teve filhos pode ter dificuldade em tê-los anos depois, inclusive no mesmo relacionamento.
A consulta com o casal, o exame físico e os exames complementares podem definir causas masculinas de infertilidade. As mais importantes são:
1. Traumas testiculares (quedas, golpes etc.);
2. Cirurgias pélvicas prévias;
3. Varicocele (varizes na bolsa escrotal);
4. Deficiência hormonal (como insuficiência de testosterona);
5. Infecção por clamídia ou gonococo (gonorreia);
6. Caxumba (pode acarretar atrofia dos testículos);
7. Uso de medicações que diminuem a contagem ou a motilidade dos espermatozoides (como alguns antidepressivos);
8. Tabagismo;
9. Abuso de álcool ou outras drogas (especialmente maconha).
Felizmente, muitas dessas causas são tratáveis. A vasectomia é obviamente uma causa de infertilidade; já escrevi um artigo sobre o tema aqui no PapodeHomem. Disfunção erétil e ejaculação precoce também, na medida em que dificultam a fecundação; escrevi sobre esse primeiro tema aqui também.
A árvore seca
Nasci em Nova Iguaçu (RJ), e numa visita há uns três anos eu andava pelo centro com minha mãe e minha então companheira, quando encontramos um amigo da família. Minha mãe tinha 60 e poucos anos e ele, uns 50 e muitos. Perguntou o que eu andava fazendo, disse que sua filha acabara de dar à luz a uma menina e felicitou minha mãe por ter tido a mim. “Uma mulher que não teve filhos é que nem uma árvore seca”.
A dificuldade de ter filhos é impactante para mulheres e homens; diversos estudos demonstram como essa situação gera ansiedade, tristeza, culpa e baixa autoestima. Para muitos, a fertilidade está ligada à virilidade e à masculinidade, e não poder ter filhos diminui o homem enquanto tal. Nunca é demais dizer que esse modelo hegemônico de masculinidade deve ser desconstruído, o que facilitaria a vida das pessoas que não conseguem – ou não querem – ter filhos.
O quinto episódio da segunda temporada da série Mad Men ("The new girl") aborda o tema da infertilidade no contexto dos anos 60, mas tem muita atualidade. Ele mostra a consulta do casal Pete e Trudy Campbell com um especialista, mostra as diferentes ideias que marido e esposa têm a respeito de ter um filho, e dá uma ideia de como o tema é sensível.
Adoção
Ter filhos é um dos desejos mais naturais, mesmo considerando toda a influência da cultura nesse desejo. Gerar um filho (quando essa é a vontade da mãe) é uma experiência incomparável, inacessível aos homens cisgênero.
No entanto, uma alternativa para casais que desistiram de investir tempo, afeto e dinheiro em métodos diagnósticos e tratamentos, mas não da ideia de ter filhos, a adoção pode ser uma alternativa. Há milhares de crianças no Brasil todo esperando por um lar amoroso, e a adoção está aberta a pessoas de qualquer estado civil. Os interessados devem começar visitando o site do Cadastro Nacional de Adoção, que têm vídeos explicando o processo e tirando dúvidas dos pretendentes.
Ainda na segunda temporada da série Mad Men, o episódio 10, "The Inheritance", mostra a discordância do casal Campbell sobre adotar um filho.
Não custa lembrar
Durante a investigação e tratamento e mesmo se não for identificada uma causa, continuam valendo dois cuidados: entender o período fértil feminino, concentrando as relações sexuais nele, e evitar práticas que diminuam a concentração de espermatozoides na vagina, como duchas vaginais pós-coito ou uso de lubrificantes.
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Nota do autor: Olá, pessoal! Como vocês já sabem, sou médico e estou escrevendo aqui na coluna Consultório, de duas em duas semanas, às terças. 😉
A ideia é que a nossa coluna atenda às dúvidas e perguntas sobre saúde do homem que surgirem aqui nos comentários, mas também estamos monitorando as buscas que trazem acessos ao site (Google, confessionário da vida moderna) e, se não quiser se indentificar, pode mandar perguntas para o meu e-mail: aadmodesto@gmail.com.
Abraços e até daqui a 15 dias!
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