Moro em uma cidade em que a piada mais conhecida sobre as pessoas daqui é que elas não falam com estranhos. Já me disseram que não é bem assim, que o povo daqui apenas gosta de ser “reservado”. Quem vem de fora, quase sempre, sofre com a indiferença social, com a ausência de “bom dias” no elevador e a falta de convites para almoçar. Claro que um estereótipo não dá conta de definir um povo, uma cultura ou uma cidade, porém dá boas pistas do clima que prevalece.
Sempre me orgulhei de ser uma estrangeira nessa terra da apatia e de falar com estranhos sem reservas. Isso até ser confrontada com a minha própria escrotidão, crescendo como um parasita silencioso dentro de mim.
É interessante observar como a indiferença vai nos contagiando aos poucos. Os sentimentos de revolta e indignação simplesmente desaparecem, cansa ficar batendo com água mole em pedra dura. O caminho da frieza parece o mais fácil a seguir. Não me cumprimentou no elevador? Azar o dele. Respondeu laconicamente ao meu comentário? Da próxima vez não puxo papo.
E assim vamos construindo novas camadas na nossa carapaça sem ao menos perceber. O mundo diminui de tamanho e o som da nossa voz aumenta. Ao invés de ampliar meus círculos, reduzo a minha órbita para uma trajetória em torno apenas do que já conheço.
Até algumas semanas atrás esse problema não me pertencia, pois eu achava que não estava contaminada. Eu era diferente, um ser vivo em meio a um território de zumbis. Em uma fatídica noite, o cuspe caiu bem no meio da cara, envergonhando minha alma. Na saída de uma sessão de cinema seguida de bate-papo com o diretor, eu e meu marido fomos até o ponto de ônibus. Lá, um rapaz que também havia assistido à sessão nos reconheceu e começou uma conversa.
Respondemos a quase todas as perguntas com monossílabos enquanto nossos corpos manifestavam a vontade de correr dali, encerrar logo o contato com aquele estranho. Em uma saída completamente sem nexo, meu marido teve a ideia de dizer que precisávamos ir para o fundo do tubo (um tipo de ponto de ônibus fechado cilíndrico que temos por aqui) porque queríamos pegar o coletivo pela porta 4. Sem hesitar, o rapaz disse que nos acompanhava, afinal naquele tubo passava apenas uma linha de ônibus, portanto, obviamente, ele iria para a mesma direção.
Ficamos sem reação. O rapaz não seguia as regras sociais locais de afastamento. Ao invés de fingir que aquilo fazia algum sentido e ficar quieto na dele, ele optou por insistir na aproximação. Eu e meu marido nos olhamos ressabiados, tentando compreender que tipo de maluco havia se enfiado em nosso caminho. Deduzi que ele deveria ser vendedor e não demoraria muito para nos oferecer algo. Ou então podia ser meio quarta-feira, um Forrest Gump que andava de ônibus.
Continuamos com a estratégia dos monossílabos, mas como a conversa dele até que parecia um tanto quanto normal fomos aumentando a quantidade de sílabas das palavras. Acabamos descobrindo que ele não era daqui, havia se mudado do interior há poucos meses. Isso ajudava a explicar um pouco o seu comportamento errático.
Trocamos nossas impressões sobre o filme, ele revelou que na verdade era um cozinheiro tentando virar chef e não vendedor, também falamos sobre nossos trabalhos, porém com bastante parcimônia, e ficamos esperando pelo momento “hum-hum”, aquele instante em que não haveria resposta para algo esdrúxulo que ele diria.
Ainda não estávamos convencidos de que esse era um cara completamente normal. Ele desceu no mesmo ponto em que a gente, estava morando provisoriamente em uma pensão perto da nossa casa. Fez questão de nos dar seu e-mail, nos cumprimentar e ainda dizer que tinha sido um prazer conversar conosco. E só.
Disse tchau, nada mais, nenhum gesto ou proposta bizarra.
Assim que ele se afastou, eu e meu marido nos olhamos envergonhados. Pensamos a mesma coisa. Por que agimos de maneira tão escrota? Reclamamos tanto da indiferença das pessoas e quando alguém fala conosco buscamos desesperadamente um jeito de fugir.
Como nos transformamos nessas pessoas? Quando nos transformamos nessas pessoas? Somos tão indiferentes quanto aqueles que criticamos. Queremos apenas as respostas aos contatos que iniciamos, também não estamos abertos às interações que não controlamos.
Temos medo dos chatos, temos medo dos intrometidos, temos medo da violência, temos medo dos tarados, temos medo dos estranhos. Escolhemos permanecer na bolha, criamos a nossa própria solidão. Esquecemos que todos são estranhos até se tornarem conhecidos.
A indiferença é cômoda. Ninguém mexe comigo, eu não mexo com ninguém. Seguimos orbitando em torno do nosso próprio umbigo, um universo previsível e menos assustador. Talvez uma certa distância seja necessária para a sobrevivência nas grandes cidades, um pouco de privacidade e isolamento ajudam na manutenção do indivíduo em meio a superpopulação.
O problema é saber dosar os nossos níveis de sociabilidade e isolamento.
Nenhum homem é uma Curitiba. São as relações que nos fazem crescer e nos permitem viver muitas vidas. O homem é um animal social. A indiferença e a apatia não podem ser maiores do que essa necessidade vital. Precisamos manter a nossa indignação viva, não podemos aceitar um silêncio como resposta a um bom dia, não devemos nos acostumar à indiferença das metrópoles.
É possível transformar o mundo ao redor a partir do nosso olhar, da nossa atitude. Quando perguntei ao rapaz do ônibus se ele não se sentia só, já que não tinha ninguém conhecido por aqui, ele respondeu que não, de jeito nenhum. Fiz cara de espanto e ele então explicou:
“Quando me sinto sozinho eu converso com a primeira pessoa que encontro, eu falo com todo mundo, não tenho problema com isso não, estou muito feliz aqui.”
Saindo da boca dele, pareceu tão simples.
Vivemos na mesma cidade, porém em mundos diferentes. Não o vi mais, não lhe mandei nenhum e-mail, também não lhe dei meu endereço. Mas não esqueci da cusparada. Eu não sabia que também não falava com estranhos.
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