Sou privilegiado.

Meus pais não eram, mas por uma combinação de sorte e esforço deram a mim e a meus irmãos a possibilidade de desenvolvermos nossos potenciais. E cada um trilhou seu caminho, um até chegando a doutorado. Sou a “ovelha negra” de uma família de servidores públicos, atuando como desenvolvedor freelancer, mas o autodidatismo e domínio na língua inglesa me abriram portas e, sim, hoje gozo de mais do que a maioria da sociedade.

E isso faz de meu filho também um privilegiado. Ele não lembra de uma casa sem internet, computador (mais de um sempre), TV, banho quente, hoje também um bom carro para nossas necessidades, viagens e atividades extracurriculares.

Poderia parecer óbvio que daria a ele “melhores oportunidades do que tive” e bancaria uma escola particular. Mas não. Além de minha cidade ter boas escolas públicas (apesar das limitações) sempre acreditei que ele seria um ser humano melhor se não vivesse numa ilha condomínio-shopping-escola.

No meio de maio a escola estadual de meu filho entrou em greve. Tendo cursado quase toda minha vida escolar em escola pública e passado por algumas greves (inclusive uma mega-master de 4 meses na UFSM), já esperava que isso acontecesse. Até por conta de inúmeras paralisações de professores nos últimos anos.

Mas 3 dias depois ele chegou de uma reunião na escola e disse:

— Pai, nós vamos ocupar a escola.

Putz. Surpresa, felicidade, temor.

Ele me conhece o suficiente pra saber que eu o apoiaria. Não incondicionalmente, não sem opinar, não sem saber como seria, mas apoiaria. E poucos dias depois os pais e professores foram convidados para uma reunião. Meu filho pediu-me para convidar um grande amigo meu, advogado da área de direitos humanos. Mas, pasmem, ele não foi o único advogado convidado para a reunião.

Os alunos fizeram contato com um grupo de advogados que formam um coletivo de direitos humanos aqui na cidade (da qual meu amigo também faz parte). Durante a reunião pediram a estes advogados que esclarecessem aos alunos, pais e professores os fundamentos jurídicos e riscos da ocupação e a respeito de duas das pautas estudantis: os projetos de lei 190/2015, que procura proibir a “doutrinação ideológica e partidária” nas escolas (conhecido como Escola Sem Partido), e 44/2016, que define Organizações Sociais e é compreendida como abertura para privatização.

O impacto nos professores, pais e advogados foi de uma surpresa reconfortante. Visivelmente nervosos, ainda sem real noção do que viria, os alunos demonstraram firmeza e organização suficiente para ganhar um voto de confiança dos presentes, mesmo que alguns pais ainda permanecessem receosos.

Como a esmagadora maioria dos professores da escola aderiu à greve, inclusive a direção, houve apoio docente para uma ocupação pacífica.

— Pai, dia 30 nós ocupamos.

Putz, aconteceu.

A escola de meu filho foi a quinta ocupada na cidade, sendo uma das 4 maiores. Foram 8 no total da região, sendo apenas uma fora de Santa Maria, a maior cidade da região.

Para segurança deles e para facilitar a confiança de outros pais, me dispus a dormir com eles. Nenhum motivo para arrependimento… não fosse este o outono mais frio que tenho lembrança aqui no sul.

Juntei um punhado de modems antigos e com alguns ajustes criei hotspots wifi usando a rede da escola. Bem, a partir daí virei o pai mais adorado… Procurei ter uma postura respeitosa e manter abertura para que me ouvissem.

No primeiro dia fiz um “rancho” (gauchês: compra grande no mercado para o mês) inicial para terem tempo de ser organizar. Semanalmente enchia um pote de sorvete com cappuccino caseiro, mas rapidamente as doações foram deixando razoavelmente confortáveis os estoques de comida.

Mas aqui cesso este relato lindo e maravilhoso.

Agora vou admitir os meus “interésses”, como diria o velho Brizola.

Meu filho é um adolescente gente boa, mas adolescente. Inteligente, mas preguiçoso. Vai bem na escola com um pé nas costas, mas quando precisa estudar, empaca. Reclama de tudo, mas principalmente quando se reclama dele. Aquele ímpeto de acomodação oportunista de “se não fizer alguém faz”. E não, não acho que estou falando mal dele porque um pouco mais, um pouco menos, eu também era assim nessa idade (só não era mais, creio, porque não tinha privilégios como ele tem hoje). E, putz, todo mundo conhece um adolescente mais ou menos assim, isso quando não olha no espelho e dá de cara com um.

Mas ele se entusiasmou pela “causa”, e eu cutuquei que não adiantava  só ouvir as informações dos outros, precisava ir atrás. E, bem, ele começou a acompanhar notícias. Sugeri algumas fontes de notícias – direita, esquerda,  acima, abaixo – e ele começou a gostar disso. Ao menos no início.

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Como ele tem jeito com as panelas, acabou meio que assumindo a cozinha da ocupação. O que, evidentemente, não é uma tarefa fácil. Eu já peno pra cozinhar pra um adolescente, ele ia cozinhar pra 10, 15 diariamente.

Também é muito falante e (quando quer) proativo, então, junto com outros dois colegas, tornou-se um dos líderes informais da ocupação. Isto começou a sobrecarregá-lo, desgastá-lo, e logo veio a rouquidão (que durou praticamente toda a ocupação).

Numa noite em que passou em casa para tomar banho, sentou ao meu lado e desandou um mar de lamúrias.

— Mas a gurizada #@$#*$#%%$ [ponha_aqui_tudo_que_você_reclama_do_seu_filho_adolescente]!

E eu, sério mas querendo rir, retruquei:

— Bem, mas você… também. É, filho, a democracia é uma merda quando as pessoas não nos obedecem.

Tenho dito que com um mês de ocupação (exatos 36 dias) eu economizei anos de saliva.

Neste período, com uma supervisão superficial dos pais e professores, os adolescentes conviveram com suas próprias dicotomias. Combinaram regras que não cumpriram. Um era contrariado e saía da reunião emburrado. Alguns nunca tinham pegado numa vassoura (não só meninos, importante frisar), não arrumavam a cama, não sabiam reconhecer o esforço do outro na limpeza, na cozinha, no que fosse. Agendavam atividades, mas não iam. Mas um protesto na rua era sempre uma boa atividade.

Meu filho era só meu termômetro disso, não era melhor nem pior: mas acredito que ele entendeu muito do que é ter que conviver com um adolescente. Pedir inúmeras vezes colaboração para coisas rotineiras e não ser atendido. Entender o quanto pesam as atividades básicas de manutenção do espaço. O desgaste de se sentir explorado por alguém que tem o teu tamanho mas acha que você tem obrigação mas ele não. E quando você não faz um dia, ainda te joga na cara. Não elogia quando está bom, mas reclama quando está ruim. Aliás, que reclama, reclama, reclama. A insatisfação, a ingratidão, a falta de consideração.

Ao mesmo tempo se protegem, se xingam, se adoram, não abrem mão da companhia um do outro, metem o dedo na cara reciprocamente, se perdoam. E ainda querem a proteção dos adultos – mas não sua supervisão.

Na escola do meu filho a ocupação foi pacífica, houve negociação para saída da ocupação junto ao Ministério Público e a Brigada Militar (PM do RS) é um tanto mais branda que a Brigada do Alckmin (PM de SP). Não que não tenha cometido excessos em Porto Alegre, mas aqui não chegou este ponto.

Não sentiram este lado na pele. Como pai, suspiro aliviado.

Então creio que isto explica a atitude de muitos alunos. Vários (e isso ouvi literalmente de um) estiveram mais presentes na escola durante a ocupação do que em período “normal”. Alguns pouco ajudavam, outros eram solícitos sempre. Alguns participaram esporadicamente, outros foram ativos todo o tempo.

Alguns foram poucas vezes e contribuíram, outros foram várias vezes e só fizeram número. Alguns foram mudando, outros, não.

Repeti algumas vezes ao meu filho que faltava entre eles aquele líder empático que conduz e resolve conflitos. Mas o Nelson Mandela não era um Nelson Mandela com 16 anos. Ele foi radical antes de ser preso, longos anos na cadeia é que o forjaram (para dizer o mínimo). Nem ao menos era um ser humano lindo e maravilhoso, mesmo que tenha sido um líder extraordinário.

Mas várias sementes de liderança nasceram ali. Boas lideranças.

Eles cometeram muitos erros que não vão aparecer nos documentários. Erros tolos, infantis, perdoáveis, mas que em alguns momentos quase derrubaram seu próprio esforço. Foram egocêntricos, impacientes, perderam o foco, descumpriram promessas, erraram, erraram, erraram.

Mas, putz, são só adolescentes.

Adolescentes numa prévia atropelada de maioridade.

— Pai, hoje desocupamos a escola. O governo não vai votar a PL 44 até o ano que vem para permitir discussão. Assinamos um termo de desocupação no Ministério Público junto com a Coordenadoria Regional de Educação, participaremos de um fórum mensal para acompanhar o cumprimento do acordo com o Estado (40 milhões para todas escolas, R$ 120 mil para manutenções em nossa escola).  Vamos reerguer o movimento estudantil secundarista da região. Vamos nos organizar em conjunto com as escolas da capital. Vou participar de uma chapa para o Grêmio da escola no ano que vem.

Putz, vejam o que eles fizeram!

E são só adolescentes.

Rafael Goulart

42 anos, natural e residente em Santa Maria, RS. Pai, fotógrafo, músico e compositor amador por profissão; analista de sistemas/programador freelancer nas horas vagas e para o sustento.