Para começar o texto de hoje, gostaria de te fazer uma pergunta que pode parecer estranha, mas, por favor, não desista de mim:
Você já leu a Bíblia?
Numa das passagens bíblicas mais famosas, um homem está caminhando por uma estrada quando de repente vê uma pessoa deitada no chão, sofrendo. O homem para, se compadece e resolve ajudá-la. Ele oferece água, comida, lhe carrega até um estaleiro e garante que ela fique bem. Só então, segue sua viagem.
O homem em questão não é Jesus. Pelo contrário. Trata-se de um cidadão comum da Samaria que tornou a parábola conhecida justamente pela alcunha de "o bom samaritano". A moral dessa história é estimular um senso de coletividade e ajuda mútua que vai sustentar uma das ideias mais famosas do cristianismo: ame ao próximo como ama a ti mesmo.
E é exatamente assim que a maioria de nós age em sociedade atualmente…
Só que não
Em 1954, Catherine Susan Genovese voltava do trabalho pra sua casa no bairro nova-iorquino do Queens quando foi apunhalada pelas costas com duas facadas. No meio da madrugada, a moça começou a gritar, o que afastou momentaneamente seu agressor Winston Moseley.
Ferida, ela caminhou mais algumas quadras pedindo ajuda, até que o agressor voltou para "terminar o serviço". Catherine foi esfaqueada novamente, roubada e estuprada. Quando a polícia finalmente chegou, era tarde demais. Ela morreu a caminho do hospital.
O agressor foi preso, interrogado, confessou o crime e acabou condenado a pena de morte, mas depois teve sua pena reduzida para prisão perpétua. Tratava-se de um psicopata que, certo dia, simplesmente deixou esposa e filhos em casa e decidiu "sair na rua para matar alguém". Apesar disso, o mais chocante no caso com ampla repercussão na mídia foi a descoberta da perícia de que Catherine lutou por sua vida durante 35 minutos desde o primeiro ataque até a chegada da polícia.
Por mais de meia hora, a vítima passou na frente de diversos prédios residenciais pedindo por ajuda sem sucesso. A investigação coletou depoimentos que revelaram que ao menos 38 pessoas presenciaram o ataque em algum momento, mas nenhuma delas chamou a polícia.
Posteriormente, a versão foi atualizada dizendo que o número de vizinhos que viram ou ouviram o ataque tinha sido menor do que o divulgado (mas sem confirmar quantos foram) e que duas pessoas tinham chegado a ligar para a polícia. A primeira relatando uma briga de casal e a segunda, uma senhora de 70 anos, de fato chamando uma viatura e aguardando a chegada dos policiais com a vítima no colo.
Quanto mais, pior
O crime levantou uma grande discussão na sociedade americana e muitos pesquisadores passaram a elaborar teorias a respeito da omissão das pessoas diante de uma situação como essa. Negação de afeto, banalização da violência, agressividade contida, despersonalização dos habitantes das metrópoles… foram só algumas das hipóteses levantadas. Mas dois jovens psicólogos foram mais longe e formularam os princípios do que batizaram de Síndrome Genovese, mais conhecida como Efeito Espectador.
Bibb Latané e John Darley explicaram que mais do que uma falha de caráter na personalidade, o que leva as pessoas a fazerem isso é o poder da situação. Eles fizeram uma série de experimentos com pessoas precisando de ajuda diante de indivíduos solitários e depois em grupos para poder comparar os resultados. Foi assim que eles chegaram a uma nova conclusão: quanto mais gente envolvida, pior a reação.
Em grupos de quatro pessoas ou mais, apenas 31% dos indivíduos tomam a iniciativa de ajudar o próximo. Enquanto isso, solitariamente, o voluntário se prontifica em 85% das vezes. Da mesma forma, os psicólogos perceberam que o 'tempo de reação' das pessoas em grupo é muito maior e a probabilidade de alguém ajudar o outro vai ficando cada vez menor conforme o tempo passa.
A descoberta subverteu a lógica predominante de que pessoas se tornam mais corajosas quando estão em grupo. Os resultados demonstraram que, na verdade, nós tendemos a copiar o comportamento uns dos outros seja ele a ação ou a total inércia, ainda que tenhamos 'estímulos relevantes' para ir contra a maioria. A explicação é de que, quando estamos em grupo, fazemos o que passou a ser chamado de difusão de responsabilidades, ou seja, assumimos que 'se eu não ajudar, outra pessoa ajuda'.
Sendo assim, os estudo revelaram que Catherine Genovese não morreu apesar da presença de muitas testemunhas, mas porque havia muitas delas. Da mesma forma, o bom samaritano ajudou o homem necessitado porque não tinha mais com quem dividir essa responsabilidade.
Link Youtube – Esse vídeo é bastante esclarecedor
A dúvida que mata
Surpresos com os resultados, os pesquisadores resolveram investigar situações nas quais as pessoas poderiam estar colocando elas mesmas em risco caso permanecessem inertes. Para isso simularam situações como um ônibus desviar para um caminho perigoso ou fumaça começar a entrar numa sala fechada.
Nesse caso, indivíduos solitários pediram ajuda em 75% das vezes, mas pessoas em grupo primeiro avaliavam a reação dos demais para tomar uma decisão. Como no experimento, os atores contratados permaneciam impassíveis, apenas 38% das pessoas reagia ao estímulo, o que significa dizer que a maioria preferiu assumir o risco de ser prejudicado a quebrar uma espécie de "protocolo social".
Esses números novamente surpreenderam mas foram explicados em grande parte pelo que os pesquisadores definiram como ignorância pluralística: se em determinada situação você não tem certeza do que está acontecendo, sua primeira alternativa é observar o comportamento e a reação das pessoas ao seu redor. Se ninguém está fazendo nada a respeito, você descarta sua suspeita de emergência e assume que se trata de uma situação normal. O que em larga escala provoca verdadeiras catástrofes.
É por isso que gerações olham pra trás e se perguntam: como vocês deixaram isso acontecer? É por isso que quando vemos uma injustiça, sentimos uma sensação de impotência enorme e quase sempre ficamos travados. E é por isso que precisamos fazer uma última consideração:
Copo meio cheio
Anos após os estudos de Bibb Latané e John Darley serem concluídos, um cientista social americano chamado Arthur Beaman tratou de encontrar um efeito positivo nessa história de difusão de responsabilidades.
Ao repetir os mesmos experimentos da dupla no passado, Beaman adicionou um terceiro grupo com uma particularidade: seus integrantes receberam um resumo dos estudos a respeito do Efeito Espectador antes de começarem os testes.
Depois de passarem por todas as etapas, os resultados foram animadores. Os indivíduos que já sabiam como suas mentes reagiriam em circunstâncias como essa apresentaram níveis de proatividade duas vezes maiores do que os demais. O segredo para acabar com a apatia do grupo era um só: adquirir conhecimento. Exatamente como você acabou de fazer.
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Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.
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