Afinal, são poucos os que podem ter a aristocrática e boba ideia de afirmar, a plenos pulmões, que detém a fama de possuir a janela mais legal do bairro todo, de todo o bairro. Acordar com a claridade de um dos poucos horizontes que a cidade pode oferecer e nada mais que ficar lá, até o laranja manchar toda a parede em mais um pôr do sol.

Os olhos, ainda atrapalhados e confusos, vão caçando as nuances do tão tão distante, desenhando as entrelinhas dos prédios lá da frente, contando quantas janelas estão vazias, quantas delas estão servindo de apoio para os cotovelos bambúrrios que, assim como os meus, podem se dar ao luxo da imensidão da cidade, da soberania proletária de se gabar: "vai até onde a vista alcança".

As maritacas vivem aos montes, berrando entre si, juntando forças pra me chamar. Urram felicidades, contam – por meio dos berros – todas as delícias da claridade, do calorzinho gostoso lá de fora, "vem pra cá, humano bobo! olha só o que estás a perder" (sim, as maritacas do lado de cá são tomadas da mais gostosa cordialidade).

Eu tô vendo, amiguinhas, eu tô vendo. Mas vá lá, aqui tá tão bom, tá bom demais. Vão se divertir e comer de graça enquanto eu fico aqui, nutrindo essa beleza de síndrome de Estocolmo que estou adquirindo com a minha casa, essa cela cheia das belezas mundanas.

As maritacas de verdade, verdinhas e agudas, são assim, sinceras, generosas. O que só diminui ainda mais os gritadores virtuais, aqueles cativos da obrigatoriedade (ab)surda da felicidade. Para esses alguns, a beatitude está la fora, com os estranhos, com aqueles outros que nem-sei-quem-é que estão a fazer algo de bom, de produtivo, de sagaz para as carentes vidas sedentas – voluntariamente – de "algo a mais", de "vamo que vai ser legal demais".

É foto na festa, é legenda do piquenique, é chamada pro evento que vai ser imperdível apesar de cansativo. Vão todos – juntos e sem combinar – pegar a fila da feirinha gourmet pra comer o único e exclusivo pedaço de bolo do chefe que mais seguidores tem em seu site de fotos.

Tá, gente, eu prefiro meu café com bolo de fubá, prefiro minha posição interna de juntar as migalhas na toalha estampadinha que ganhei da vovó enquanto o Cartola me conta pela enésima vez os dissabores, as ensaboadas, o verde-que-te-quero-rosa.

Aqui dentro tá bom, não tem a cachoeira mais escondidinha, não tem a melhor comida nordestina fora do nordeste, não tem o cruzeiro, o paraquedas, a bebidaúnicanemameninamaisbonitadacidade"quesóeutenhooprazerdeveraovivo". Essa eu perdi. E essa outra também.

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Pra mim, só resta a janela mais legal do bairro, sobra, no máximo, descer de chinelo até a banca, cumprimentar o tio da floricultura ("fala, fí. Bom domingo") e voltar, antes que alguém feliz perceba, que já estou voltando. A janela tá me esperando, o café ainda tá quente, as formigas tão tramando levar o que puderem do meu bolo simples, eu preciso voltar que lá dentro tá bom demais.

Sou o meu Fausto particular e assino embaixo, quantas vezes for preciso. Noves fora, o que eu tenho a perder, dando pra mim minha própria clausura, riscando na memória a minha parede que conta os dias bons lá dentro.

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Ali, ninguém me diz se gostou, se compartilhou, se concordou com o meu jeito de sentar, com a maneira com que eu enquadrei – direto nos olhos – o recorte lindo que destoa as cores da pele dela, lendo ao lado da janela aproveitando o vento que nada tem de excluviso, mas que deixa os cabelos dela brincando atrás da nuca. É o take perfeito, já que ela me olha bem na hora em que o Chet Baker se apresenta nas primeiras notas do trompete.

Let's get lost, lost in each other's arms

Não preciso ir lá fora me aventurar hoje. Amanhã tem muitos outros amanhãs pra eu pensar na vastidão desse Brasil, desse mundão de meu deus. Os amigos hão de entender, há de haver até certa admiração, se assim, delicinha, eles soubessem o quanto estão perdendo lá na rua enquanto eu tenho todo o tesouro do mundo aqui só cruzando o corredor.

É só por hoje, eu juro. No fim de semana, tá combinado. Eu me aprumo, boto minha melhor calça e te ligo. Vamos ver aquela exposição foda que você me mostrou as fotos semana passada, a gente come naquele latino escondidinho que só você conhece, a gente bate fotos fazendo careta, eu elogio o tomara-que-caia dela.

Mas, por hoje, vou ficar aqui com tudo o que eu tenho de exclusivo. Eu até me empolgaria pra sair, mas já dei o play no disco do Cícero que faz tanto tempo que não ouço…

Fica bem aí
Que essa luz comprida
Ficou tão bonita
Em você daqui

É… ela tá linda mesmo. Vou ficar em casa.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados