Acordei naquela segunda-feira ainda apegado à ideia de ficar mais tempo na cama. O dia trazia consigo ainda o frio da madrugada e o despertador cumpriu bem seu papel de algoz. Daí alguns instantes, lá estava eu atrás do volante, seguindo para o meu primeiro dia de internato médico na Oncologia. Subi as escadas até o oitavo andar e virei à direita, sem ideia do que estava por vir naquela enfermaria. Não havia pensado em nada até aquele momento.
Não que eu esperasse tragédia, entenda. Minha visão sobre o câncer é desmistificada e acredito na cura.
Segui em direção aos leitos mesmo assim tão próximo ao mistério, afinal eu treinara para aquilo e pensava estar preparado. O dia seguiu à medida que eu evoluía pacientes. A esse passo, crescia dentro de mim grande agonia: eu me percebi despreparado para lidar com a morte. Não com a dos outros, a minha própria. Apesar de eu saber dos bons resultados nos tratamentos atuais para câncer, a doença ainda traz consigo certo estigma; e o contato com pacientes que tinham a convicção da própria finitude acabou por me fazer pensar que o dia meu fim também chegaria.
Pronto. Resolvi escrever um texto que acolhesse a morte como professora para ajudar pessoas a não mais ficar sem reação, imóveis como eu fiquei. Porque no tête-à-tête com ela, meu amigo, a pior coisa a se fazer é ficar sem reação.
O resto da semana foi de pesquisa. Queria encontrar na filosofia algum alento para meu desespero psicológico. Li aqui mesmo no Papo de Homem coisas que me ajudaram muito – o percurso “Para lembrar da morte”; li que Epíteto e o estoicismo decididamente acreditavam que pensar na morte pode nos tornar mais felizes; li também que o grande segredo dos butaneses, um dos povos mais felizes do mundo, é pensar na morte cinco vezes por dia; e li como desconstruir o medo da morte.
Estava indo na direção certa, pareceu para mim. Descobrir a chave da felicidade com os butaneses trouxe certo alívio, mas concluí que passar tanto tempo de minha vida blindado da ideia de minha própria finitude fez com que eu estivesse despreparado quando alguma assistência foi solicitada de mim, um médico.
Freud, então, sussurrou em meus ouvidos, como quem humilha em tom irônico:
“Nós criaturas civilizadas tendemos a ignorar a morte como parte da vida […] no fundo ninguém acredita na própria morte, nem consegue imaginá-la. Uma convenção inexplícita faz tratar com reservas a morte do próximo. Enfatizamos sempre o acaso: acidente, infecção, etc., num esforço de subtrair o caráter necessário da morte. Essa desatenção empobrece a vida.”
“Empobrece a vida”. Essa doeu, Freud.
Decididamente entender a morte enriquece a vida. Disso eu tive certeza. Os butaneses não saíam de minha cabeça. Como um povo tão pequeno pode estar no topo da lista de mais felizes? Lá com eles eu descobri que pensar na morte ajuda a ser feliz porque nos auxilia a aproveitar cada momento e ver coisas por ângulos que não veríamos; mas eles não deixaram claro como fazer isso, portanto, não foram suficientes para acalmar a tempestade dentro de mim.
Por que, meu Deus, ser nocauteado pelo pensamento de morte machucou tanto? Por que só agora, depois de quase seis anos de faculdade?
Talvez porque só agora eu esteja lidando com a interpretação da morte, não com a mera doença em si, não com cadáveres em aulas de anatomia. Naquela enfermaria a morte ganhou nomes, sobrenomes, sentimentos. Eu ganhei histórias.
Com tantas, decidi que não podia somente reproduzir textos de outras pessoas (existem milhões de coisas sobre morte na literatura/internet, acredite). Eu precisava pôr minha voz nesse texto e, para isso, nada melhor do que conversar e aprender com a aqueles que mais podem ensinar: os mesmos pacientes da ala de cuidados prolongados/paliativos do hospital onde trabalho, pessoas que estão fora da capacidade médica de cura e que entendem essa situação. Quem melhor que elas para falar da própria finitude? A morte não estava longe de mim; estava nos corredores, nos cantos, dentro de minha cabeça. Faltava apenas eu decodificar seus ensinamentos.
À medida que os dias iam passando, um plano tomou forma: como todo respeito do mundo, eu me aproximaria daquelas pessoas para tentar entender melhor o que tinha acontecido, o que as tinha levado àquele estado e qual eram suas percepções sobre suas próprias histórias. Eu precisava entender o todo para poder entender o fim.
Esse era a ideia, pelo menos.
Não foi desse jeito. Pessoas não são livros dos quais se retiram informações assim, sem mais nem menos, ainda mais quando o assunto é tão delicado. É preciso ter uma relação de confiança para conversar sobre morte. Não foi na primeira semana que consegui essa liberdade. Nem no primeiro mês.
Mas eventualmente consegui entender o ritmo, entrar na dança. Foi quando conheci um homem, 60 anos, com Leucemia Promielocítica Aguda recidivada resistente à quarta linha de tratamento e mesmo ao transplante de medula. Sua proposta médica era “ênfase em conforto”. Ele me pediu para ir para casa. Queria ir cuidar da esposa que ficara doente e da filha com necessidades especiais, mesmo sabendo o que isso significaria. Ao questioná-lo se era essa sua real intenção, ele me disse: “no final o que mais importa é a família. Passei tempo demais longe e me arrependo disso”. Entendi, dias depois, que ele sempre teve relação conturbada com a esposa e com a família e só no final todos se reconciliaram. Lição aprendida: é bom que reconheçamos (antes de ser tarde) a importância dos laços afetivos e da rede interpessoal baseada em família e amigos. Interagir traz satisfação de vida.
Essa conversa não fora uma entrevista propriamente dita, apesar de ter conteúdo revelador o bastante para mim. Eu precisava de mais para escrever um texto.
No penúltimo dia do meu internato na oncologia, eu consegui uma conversa de verdade, daquelas profundas que mexem com a gente. Meu professor dessa vez era um homem (ele até deixou seu nome ser publicado, mas prefiro respeitá-lo com o anonimato), 55 anos, com adenocarcinoma de bexiga T4N2M1 (invadiu outros órgãos e tem metástase) fora da proposta terapêutica. Cheguei, me apresentei, construí uma relação de confiança para só então tocar no assunto.
Foi quase uma hora de conversa, não caberia num único texto, mas selecionei as partes que mais mexeram comigo:
Eu: “O senhor entende o que lhe aconteceu? Como o senhor vê sua doença?”
Ele: “há três anos recebi o diagnóstico. Desde então eu nunca pensei ‘por que eu?’, nunca desanimei. A gente tem de ter a base firme para enfrentar as coisas da vida sem se abalar e ou se deixar esmorecer. No momento do diagnóstico ainda tinha chance de cura, por isso eu fui com tudo, fiz o que tinha que fazer. Você que está aí, novinho, ainda tem muito o que fazer na vida. Então vai lá e faz, não fica medindo esforço não, pois no final, o que vale é a tentativa. Você vai querer olhar para trás e saber que tentou.”
Eu: “falando em olhar para trás, o senhor se arrepende de alguma coisa em sua vida? Se o senhor tivesse a chance de mudar algo, o que seria?”
Ele: “rapaz, eu tenho tranquilidade para te dizer que não mudaria nada. Absolutamente. Eu casei com quem queria, tive os filhos mais maravilhosos do mundo, fiz o que devia ter feito. Eu não me arrependo de nada.”
Eu: “você acha que não ter arrependimento te ajuda a conversar comigo nessa paz? Ou existe algo mais que te traz conforto?”
Ele: “olha, eu não tinha pensado nisso até agora. Sabe, isso de não ter arrependimento é fantástico porque me faz ver a vida com plenitude. Eu vivi plenamente, por que não morreria assim? Mas sim, tem mais. Eu sempre fui muito temente a Deus. Sempre tive Ele como alicerce. Isso também me faz enxergar nossa passagem aqui na terra como um aprendizado. Nada tem mesmo a importância que achamos que tem.
Eu: “Você acha que sua doença mudou alguma coisa na maneira como você encara a vida?”
Ele: “o câncer em si não. A gente não pode deixar a doença dominar quem a gente é e ficar no papel de vítima. Mas me vi muito corajoso com toda essa história, isso é bom. Não que a doença tenha mudado, mas percebi em mim uma coragem que não sabia que tinha. Percebi também o quanto minha família me ama e o quanto é bom estar perto deles”.
O choro interrompeu alguns minutos de nossa conversa. Durante o tempo houve silêncio. Depois eu prossegui, dando contornos finais à conversa:
Eu: “essa conversa, como eu disse, vai virar um texto. Há alguma coisa que o senhor queira falar para as pessoas que vão ler?”
Ele: “meu jovem, nada que eu falar aqui será tão bem entendido quanto eu entendi. Infelizmente as pessoas esperam ver a morte de frente para pensar nela; e seguem sendo rancorosos, dando muita atenção a coisas mesquinhas. Daí quando chega ao final estão cheios de arrependimento, cheios de mágoa no coração. Mas a vida vale a pena ser vivida, anota aí, a vida vale a pena ser vivida.”
O que aprendi com a morte passa muito além da pieguice que faz muita gente olhar a morte com frivolidade. Na enfermaria daquele hospital eu me entendi humano, parte de uma orquestra bonita que toca músicas inéditas.
Me vi questionando minhas escolhas, colocando mesquinharias em xeque. Eu mudei. Espero ter mudado.
Há um vídeo muito bacana que descobri durante as pesquisas. Acho que ele vale a pena ser compartilhado e que conclui bem minhas palavras.
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