estou em cuba para lançar um livro. para saber mais, leia o primeiro texto da série. abaixo, a continuação das minhas aventuras cubanas.

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problemas de primeiro mundo

as pessoas norte-americanas têm uma expressão chamada first world problem, ou “problema de primeiro mundo”: quando o maior problema da pessoa é que o seu iphone caiu no chão, etc, ao invés de problemas de “verdade”. (esse site aqui, só sobre isso, é hilário.)

mas é engraçado.

eu morei por seis anos em nova orleans, uma cidade majoritariamente negra, a mais violenta e a mais desigual dos eua, virtualmente abandonada pelo seu governo durante a maior catástrofe natural do país. (eu estava lá, e esse aqui é o meu depoimento sobre o katrina.)

grande parte das pessoas norte-americanas hoje não sabem como vão pagar suas contas médicas se ficarem doentes, como vão manter os planos de saúde se perderem os empregos, como vão mandar os filhos para as caríssimas universidades, e, por isso, passam a vida estressadas, preocupadas, nervosas com essas questões básicas e vitais.

por outro lado, todas as pessoas cubanas moram em casa própria, tem abundante cultura gratuita, saúde e educação gratuita do berço ao túmulo, e nunca, nunca, nunca precisaram se estressar ou se preocupar com despesas médicas ou escolares. para as pessoas, essas questões, que tanto consomem as norte-americanas, são não-questões.

não é que as pessoas cubanas não tenham problemas, claro. elas têm muitos, da pobreza à falta de liberdade: elas só não têm ESSES problemas de saúde e educação.

mas repara a diferença.

a pessoa norte-americana que troca de iphone todo ano mas não tem como pagar o tratamento do câncer ou a faculdade da filha, essa sim está lidando com “problemas de terceiro mundo”.

já a pessoa cubana, que tem todos esses problemas já pré-resolvidos e pode se preocupar com o fato de não poder comprar iphones ou não poder escrever editoriais contra o governo, essa sim tem verdadeiros “problemas de primeiro mundo”.

só pode ter “problema de primeiro mundo” quem resolveu os básicos “problemas de terceiro mundo”: educação, saúde, moradia.

não é o caso das pessoas norte-americanas: breaking bad jamais aconteceria em cuba.

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cuba: você tem perguntas ou você tem respostas?

cuba é fascinante justamente porque não tem nada de simples.

quase sempre, quem tem opinião formada sobre cuba é porque não sabe quase nada sobre cuba.

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afinal, não faltam países onde grupelhos de pseudorevolucionários pseudoesquerdistas tomaram o poder e, então, imediatamente, se converteram em rapinadores do patrimônio público, enfiaram tudo o que puderam nos bolsos e, ou fugiram pra algum paraíso fiscal, ou foram derrubados quando o povo encheu o saco.

já a revolução cubana cometeu muitos erros e muitos crimes, alguns por descuido, outros como parte de projetos equivocados, mas em poucos anos já tinham acabado com o analfabetismo, com várias doenças do mau saneamento e com vários outros males sociais; a reforma agrária começou pelas fazendas da família do fidel; acabaram com o aluguel e todo mundo virou dono do imóvel onde morava; saúde e educação passaram a ser públicos e universais, etc etc.

como qualquer movimento político, podemos e devemos criticar a revolução cubana, suas premissas e seus objetivos, seus métodos e seus erros, mas não temos como negar o fato de ser uma verdadeira revolução, ou seja, não uma mera quartelada onde o poder apenas mudou de mãos, mas sim um novo e revolucionário projeto de homem e de país, aplicado sistematicamente pelos últimos sessenta anos.

por exemplo, algumas pessoas da direita gostam de falar de uma pretensa fortuna do fidel, que ninguém nunca viu nem nunca encontrou. mas, ao longo de cinquenta anos no controle dos rumos do seu país, fidel fez muita coisa que podemos criticar ou elogiar, condenar ou justificar, sem precisar apelar para esse espantalho retórico. (encontrem a tal fortuna e eu serei o primeiro a meter o malho nesse filho da puta!)

a verdade é que os castro vivem uma vida quase espartana, se comparados a outros líderes nacionais. se andassem por cuba como ditadores de bananas, esbanjando uma riqueza completamente desproporcional à da população, não teriam sobrevivido aos anos de penúria após a queda da união soviética: teriam sido pendurados em postes como os ceasescu. se o governo ainda está de pé, é porque, em alguma medida, apesar dos erros e das carências, ele supre e preenche as expectativas e necessidades da população.

a ideia de que cuba é um estado policial, mantido pela força das armas, comandado por ditadores sanguinários e riquíssimos, sobre uma população tão desesperada para ir embora que enfrenta até os tubarões…. bem, é fácil manter e ressoar essa ilusão de longe, fazendo posts raivosos em blogs brasileiros, mas ela não sobrevive a um dia de caminhada em havana, batendo papo com pessoas aleatórias pelas ruas.

quando fidel castro tomou o poder, em 1959, nosso presidente era o juscelino e a capital ainda era no rio de janeiro. desde então, tivemos 18 chefes de estado e de governo, incluindo aí uma ditadura de 21 anos. cuba vive uma ditadura há 57.

e como estão hoje esses dois países?

cuba é uma ilhota caribenha de doze milhões de habitantes e mil quilômetros de largura… que exporta médicos para o brasil.

praticamente todos os índices humanos de cuba são melhores que os nossos.

em cuba, as pessoas são mais educadas, vivem mais, têm mais acesso à educação, à saúde, ao esporte, ganham mais medalhas olímpicas, leem mais.

em cuba, o aborto é liberado, sem condições, para todas as cidadãs, evitando o holocausto de jovens mulheres que sofremos no brasil.

em cuba, praticamente não há violência, evitando o holocausto de jovens homens que sofremos no brasil.

(vale lembrar que somos o país mais violento do mundo: 21 das 50 cidades mais assassinas do planeta são brasileiras.)

então, se deixarmos de lado as ilusões de cuba-inferno ou cuba-paraíso, existem perguntas mais interessantes que podemos nos fazer:

por que o povo cubano ainda não correu com os castro?

o que a revolução fez por esse povo que os governos anteriores não faziam?

ou, para localizar a pergunta, o que a revolução fez pelo povo cubano que os nossos últimos governos não fizeram por nós, por exemplo?

qual é o valor de viver em um lugar sem violência? quanto vale a liberdade de sair de casa sem medo?

quais liberdades as pessoas brasileiras de fato desfrutam que as cubanas, não? quais liberdades as cubanas desfrutam e as brasileiras, não?

(o “de fato” na frase acima não é enfeite: se as pessoas cubanas não podem escrever editoriais na imprensa contra o governo… quantas pessoas brasileiras podem? em outras palavras, quem tem direito à liberdade de imprensa no brasil? na prática, só os donos da imprensa. sobre isso, leia o meu texto elogio à liberdade de expressão.)

ou seja, a questão mais honesta e mais imparcial, mais interessante e mais fecunda é:

valeu a pena a revolução cubana?

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eu não sei nada sobre cuba

eu não tenho respostas para essas perguntas.

há dez anos, eu estudo, pesquiso, escrevo sobre cuba, e ainda não sei quase nada.

a cada nova visita, os paradoxos apenas se empilham: eles expõem minha ignorância e exigem minha atenção, geram novas perguntas e pedem novas explicações.

são perguntas fascinantes, perguntas para uma vida inteira de fecundos estudos cubanistas: daqui a séculos, ainda estaremos debatendo o legado da revolução cubana.

mas posso afirmar que não dá pra nem começar a responder essas perguntas lendo a imprensa brasileira (que, hoje em dia, se transformou basicamente na versão culta de “xingar muito no twitter”)

então, muita, muita preguiça de quem não sabe quase nada, mas já tem uma resposta contundente na ponta da língua.

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como criticar o governo em cuba

quando alguém fala que não dá pra criticar o governo em cuba, a pessoa só está demonstrando o seu total desconhecimento do país: é impossível ver um filme cubano, ler um jornal ou revista cubana, conversar com nenhuma pessoa cubana, sem ouvir críticas ao governo. (como, aliás, em qualquer país do mundo.)

ninguém precisa acreditar em mim: quase todos os jornais e revistas cubanos estão na internet, do granma ao juventud rebelde, da bohemia à mar y pesca. (criei uma lista no facebook só de 50 perfis cubanos. nem todos eu concordo, ou mesmo gosto, mas são vozes cubanas falando sobre seu próprio país.)

pensem comigo: se os jornais não publicassem críticas… publicariam o quê?

“hoje, o perfeito sistema de saúde cubano funcionou perfeitamente mais uma vez, parabéns ao perfeito governo revolucionário! hmm, eu falei que somos perfeitos?”

eu sei que é mais ou menos isso que os direitistas mais histéricos pensam que é a imprensa cubana, o que só demonstra como são burros, por achar que isso seria possível, e como são preguiçosos, por nunca terem se dado ao trabalho de ler nenhum jornal ou revista cubana. (pra que deixar os fatos se meterem no meio de um perfeito faniquito reacionário, não?)

então, sim, a imprensa publica críticas: críticas ao governo, crítica às instituições, críticas a si mesmo. faz jornalismo investigativo. fala dos erros da revolução. debate como podem acertar. todo dia é dia de autocrítica.

com um grande, enorme, fundamental porém:

o que não pode é se posicionar contra a revolução.

ou seja, desde que a pessoa fazendo a crítica se coloque dentro da revolução e querendo aperfeiçoá-la, ela pode falar praticamente qualquer coisa. (de novo, é só folhear literalmente qualquer veículo da imprensa cubana para ver isso acontecendo.)

mas, se a pessoa se colocar fora da revolução, quiser acabar com ela ou superá-la, então, não pode.

como disse fidel, em um citadíssimo discurso aos intelectuais:

“dentro da revolução, tudo! fora da revolução, nada!”

então, pode sim criticar o governo revolucionário cubano de todas as formas possíveis e imaginárias, só não pode querer outro governo.

sem entender essa distinção, sutil e importante, fica impossível entender os verdadeiros problemas de liberdade de expressão que enfrentam as pessoas cubanas.

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como criticar a revolução dentro da revolução

na prática, no dia-a-dia, a maioria das pessoas cubanas acaba simplesmente preferindo o meio-termo de fazer todas as críticas que bem entendem, mas de prefaciá-las e posfaciá-las com “vivas à revolução”.

abaixo, um exemplo particularmente revelador e bastante representativo:

o ensaio el ejercicio de la crítica, de josé ernesto nováez guerrero, faz uma análise contundente da necessidade de uma crítica aberta, livre, militante, plural.

e, então, depois de tudo isso, o último parágrafo é assim:

“Por último, creo que la apuesta debe ser por un crítica que legitime y defienda, ante todo, los valores de la Revolución. No se puede, en simulacro de glásnost, permitir que se infiltren y contaminen los debates discursos mal intencionados. Se debe discutir, se debe cuestionar, se debe cambiar todo lo que debe ser cambiado, pero sin renunciar al humanismo que está en la base de todo el proceso social cubano. No podemos perder nunca de perspectiva la lucha ideológica, ni ser meros reproductores de las lógicas hegemónicas.”

cqd.

concordo com o autor que não devemos perder de vista a luta ideológica, nem reproduzir a lógica hegemônica, nem renunciar ao humanismo da revolução cubana.

mas, ao falar em “glasnost” como se fosse uma coisa negativa, ele não está admite como apoia o lado mais negro e mais ditatorial da (de fato) humanista (mas falha) revolução cubana.

a revolução ou é forte o bastante para aguentar ouvir as vozes dissidentes da yoani sánchez e sua turma (esse simulacro de glasnost!) ou ela é tão fraca que não vale a pena ser defendida.

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o que yoani não pode fazer

yoani sánchez (pronúncia: “joani”), para quem não conhece, é a principal dissidente cubana: formada em filologia saiu de cuba livremente para morar na suiça em 2002, pediu para voltar aqui para esse inferno na terra (!) poucos anos depois e, desde então, mantém um blog e um twitter falando mal do governo, “generación y(se diz: “generación i griega”). recentemente, criou um site plural para reunir as vozes dissidentes, o 14 y medio.

pessoalmente, eu não gosto nem um pouco dela, seus textos são de uma má-fé impressionante, mas é importante que ela exista e tenha espaço para falar. o professor francês salim lamrani, um dos meus cubanistas estrangeiros preferidos, já desmascarou as inconsistências da yoani faz tempo.

então, voltando ao meu comentário inicial, yoani (e qualquer pessoa cubana) pode sim criticar o governo. inclusive por escrito. a prova disso são os sites que ela criou, citados acima.

o que ela não pode fazer são duas coisas:

1. publicar suas críticas em nenhum periódico cubano, porque todos pertencem ao governo e nenhum aceitaria seus artigos.

2. fundar um periódico alternativo, não por ser proibido, o que não é, mas porque o governo controla todo o suprimento de papel, de tinta, todo o mercado de distribuição, a economia inteira do país, enfim.

assim como o brasil sempre foi tão racista que nunca precisou de ter leis racistas como as norte-americanas (o próprio sistema já mantinha as pessoas negras “em seu lugar”), cuba, nesse aspecto, é tão totalitária que não precisa ter leis proibindo jornais dissidentes.

se yoani anunciar que vai fundar um jornal dissidente, a melhor resposta que as autoridades cubanas podem lhe dar é simplesmente:

“boa sorte!”

na prática, se não fosse o embargo norte-americano (uma das ideias mais estúpidas, criminosas, ineptas, genocidas e contraproducentes do século), provavelmente algum milionário estrangeiro já teria utilizado seu poder econômico para suprir essas faltas.

com a abertura da economia, fatalmente acontecerá em breve.

até lá, yoani continua xingando muito só no twitter e no seu blog.

(infelizmente, ao tentar acessar o generación y e o 14 y medio, para escrever esse texto, não consegui. talvez estejam bloqueados. talvez seja outra coisa. tentarei de novo e conto pra vocês.)

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lançamentos e palestras em cuba

semana passada, lancei meu livro a autobiografia do poeta-escravo aqui em cuba.

na quarta pela manhã, 17 de fevereiro, dei palestra sobre o livro na casa de las américas (o texto completo, em espanhol) e, à tarde, foi o lançamento oficial do livro na sala lezama lima, do morro cabaña, fortaleza que defende a entrada da baía de havana.

sala lezama lima, vista de fora:

a sala lezama lima, de dentro.

na verdade, era a capela e o ossuário do velho forte (lá no fundão, à esquerda, de capa laranja, meu livro):

eu, palestrando, ao lado do meu empolgado editor, lincoln capote peón. ele disse que o dia em que recebeu o encargo de editar o livro (27 de dezembro de 2014!, ele repetiu várias vezes) foi dos dias mais impactantes da sua vida, e que esse foi o livro mais importante já lançado pela editora:

outra foto, mais de perto. na direita, o poeta alfredo zaldívar muñoa, diretor da ediciones matanzas:

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feira internacional do livro de havana

a feira internacional do livro de havana é um dos maiores eventos literários do mundo. esse ano, o país homenageado foi o uruguai, e ela contou com mais de 250 escritores de 34 países. inclusive eu.

o evento se realiza em diversos pontos da cidade (o programa completo tem 94 páginas e é de tirar o fôlego) mas o principal é a fortaleza do castelo do morro cabaña, construída no século 16 para defender a entrada da baía de havana.

(é como se a flip fosse realizada na fortaleza de santa cruz, no rio.)

cada recinto do castelo, ou seja, essas portinhas brancas, dependendo do seu tamanho, pode ter de um a dezenas de stands de editoras.

(adoro especialmente esse cachorro tranquilão no meio de tanta balbúrdia.)

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alguns países representadas na feira internacional do livro de havana.

o stand norte-americano é o único autêntico expositor: por causa do embargo, ele só pode literalmente expor os livros, não pode vender.

livros da rússia.

durante a guerra fria, muitas pessoas cubanas estudaram russo ou fizeram universidade na rússia, então ainda existem muitas pessoas leitoras dessa língua por aqui.

livros da coréia do sul.

irã e brasil, vizinhos de stand. foi lançado um dicionário paulo freire nessa feira do livro, com várias palestras sobre ele, esse velho comunista!

vai pra cuba, paulo freire!

por fim, venezuela.

só quem estuda cultura hispânica sabe como é importante a coleção ayacucho para a disseminação e promoção desse conhecimento. obrigado.

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o poço do castelo. ao fundo, os canhões apontando para a entrada da baía. mais ao fundo, havana, com destaque para o enorme edifício focsa.

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a feira do livro é basicamente um espaço para toda a família.

a maioria dos stands não é de livros adultos em si, mas de brinquedos, livros infanto juvenis ou didáticos e pôsteres educacionais.

na foto abaixo, um stand de livros infantis dentro de uma das muitas celas da fortaleza.

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cinegrafista e repórter, à espera.

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todos os (três) stands religiosos estavam em uma única sala.

foram as únicas bíblias que vi vendendo em cuba foram na feira do livro.

(comprei duas, não resisto a uma bíblia!)

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mapa da feira e faixa de um dos pavilhões.

 

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o faxineiro descansa fumando um charuto.

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um último adeus à fortaleza do morro cabaña e à feira do livro.

Leia também  Queremos escutar você, como realmente se sente em meio a conversas sobre machismo e feminismo? [pesquisa]

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ouvindo música e olhando o mar

havana, el vedado, calle l. o prédio onde estou hospedado é o último, azul e amarelo.

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usando internet em cuba

a burrice e a incompetência do bloqueio norte-americano está em oferecer ao governo ditatorial cubano a melhor desculpa possível e imaginária para justificar todas as suas falhas e autoritarismos.

a internet é um excelente exemplo: ela não é nem nunca foi proibida, mas o bloqueio faz com que cuba não tenha acesso às poderosas linhas de fibra ótica que circundam a ilha. o resultado é que todas as 12 milhões de pessoas cubanas precisam literalmente compartilhar uma largura de banda muito estreitinha.

então, sim, de fato, a razão de as pessoas cubanas terem acesso limitado à internet é o bloqueio norte-americano. não tem OUTRA razão.

mas aí você poderia perguntar: e se não existisse bloqueio, hein? será que o governo cubano teria liberado a internet? hein hein?

essa é a questão: jamais saberemos.

daí a burrice do bloqueio.

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até pouco tempo atrás, a internet em cuba era apenas para pesquisadores, intelectuais, professores.

agora, o governo liberou as contas de internet privadas: a pessoa compra um cartão de uma hora de internet (por salgados 2 cuc, ou R$8) e pode utilizá-lo em quaisquer um dos muitos pontos de wifi públicos.

então, quando você está andando pela rua e, de repente, vê uma praça repleta de gente mexendo em celulares, tablets, laptops… ou quando você olha em volta e todas as escadarias de todos os prédios num raio de 50m estão cheias de pessoas hipnotizadas por seus retângulos luminosos (geralmente sentadas embaixo de avisos implorando para “favor não sentar nas escadas”)… então, você sabe que está em um ponto de wifi (pronúncia: vífi) público.

uma típica cena (reparem no cartaz no canto superior direito):

a pracinha, em línea com l, no vedado, onde escrevi esse e a maioria dos meus textos sobre cuba:

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moedas de cuba

em cuba, há duas moedas: o peso conversível (cuc), que tem paridade com o dólar (1 cuc = R$4) e que turistas teoricamente deveriam usar; e o peso cubano (mn, de “moneda nacional”), na qual as pessoas cubanas recebem salário (R$1 = 6 mn).

na prática, essa distinção já caiu faz tempo. cada pessoa usa a moeda que quer e que pode.

via de regra, estabelecimentos voltados para turistas cobram em cuc e, para cubanos, em moneda nacional.

um dos meus objetivos em cuba sempre é usar o mínimo possível de cucs possível. em primeiro lugar, porque é caro e, em segundo lugar, porque me sinto um gringo explorador.

na prática, só uso cucs mesmo para pagar pelas casas particulares que me hospedam: existem casas particulares para turistas, que só aceitam cuc, e para cubanos, que só aceitam pesos cubanos.

essa também é outra distinção que (quase) caiu. na casa particular onde estou, para turistas, em cuc, já se hospedaram várias pessoas cubanas só nas duas semanas em que estou aqui. mas nenhuma casa particular, para cubanos, em moneda nacional, nunca me aceitou. (e eu tentei. especialmente quando estava nas províncias do interior e não havia outras opções próximas.)

muitas vezes, na mesma rua, você tem um restaurante italiano em cuc, onde um espaguete ao sugo custa entre 4 e 6 cuc (entre R$16 e R$24) e, logo em frente, em um restaurante italiano em moneda nacional, o mesmíssimo espaguete ao sugo custa entre 15 e 25 pesos cubanos (ou seja, entre R$2,50 e R$4).

por pirraça e por espírito científico, eu já algumas vezes almocei e jantei alternadamente em lugares assim, só para comprovar que a diferença de fato era quase sempre ínfima.

como podem imaginar, os restaurantes em cuc quase sempre só tem turistas.

mas não porque são voltados somente para turistas, ou porque cubanos não podem comer neles, etc etc, mas porque só mesmo um turista desavisado pagaria R$24 reais pelo prato que custa R$2,50 do outro lado da rua.

como dá pra ver, não sendo um turista desavisado, cuba pode ser um lugar muito barato. estou pagando 25 cuc por dia por minha casa particular, ou seja, começo o dia já tendo gasto R$100, o que é uma certa dor para uma pessoa frugal como eu.

mas, depois disso, tudo é festa: faço duas ou três refeições de uns R$5 cada, fumo charutos que custam R$0,15, compro uma dúzia de bananas por R$1,50, compro jornais e revistas por R$0,10 cada, e livros por R$1 ou R$2.

sabendo evitar os lugares que cobram em cuc, cuba é um dos lugares mais baratos do mundo.

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se llenan planillas

minha casa particular, no vedado, está no prédio ao lado da embaixada norte-americana. a pracinha da esquina todo dia amanhece coalhada de pessoas esperando para serem admitidas na casa do grande satã.

então, um dos grandes negócios do bairro é “llenar planillas”, ou seja, preencher formulários, especificamente os formulários da imigração norte-americanas, que, pelo visto, devem ser especialmente complicados e trabalhosos.

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política imigratória norte-americana

o que faz com que as pessoas cubanas saiam da ilha em balsas improvisadas para chegar em miami NÃO é a política imigratória cubana.

(yoani sanchez, por exemplo, saiu de cuba, morou na suíça, voltou, etc. hoje em dia, apesar de não haver uma real liberdade de se poder automaticamente obter passaporte e visto de saída, quase qualquer pessoa cubana consegue sair, depois de cumprir os trâmites.)

o que faz com que as pessoas cubanas saiam da ilha em balsas improvisadas para chegar em miami é a política imigratória NORTE-AMERICANA, canalha & assassina, que diz que se qualquer uma delas conseguir colocar os pés nos estados unidos não poderá ser deportada.

se os eua tivessem essa política canalha com QUALQUER país mais pobre que estivesse somente a 90 milhas de distância por mar, o MESMÍSSIMO fenômeno se repetiria.

ou vocês acham que não teriam milhares de pessoas brasileiras dispostas a encarar 90 milhas de mar aberto e infestado de tubarões só pra poder ser cidadã norte-americana?

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provavelmente verdade

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doente em cuba

eu, que comi croquete de rodoviária e bebi água da torneira em mais de trinta países, finalmente caí doente em cuba, derrubado por uma diarreia explosiva.

e, pior, comendo comida de turista.

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durante parte dos dias em que durou a feira internacional do livro de havana, o instituto cubano do livro, organizador do evento, me colocou em um hotel. como parte do pacote, eu tinha direito a café da manhã e jantar.

então, por quatro dias, fiz uma coisa que nunca tinha feito em cuba: jantei em hotel, comida para turista.

deu no que deu.

no dia seguinte ao meu grande dia, fui derrubado por um peixe grelhado, coisa que as piores comidas cubanas de rua nunca fizeram comigo.

sofri bastante. botei todos bofes pra fora. considerei seriamente cancelar os outros compromissos e voltar pra casa.

mas a dona da minha casa é médica, uma patologista que abandonou a profissão para viver de alugar sua casa para turistas, e ela ficou me dando banana e soro caseiro.

finalmente, depois de cinco dias infernais, melhorei.

só vou dizer isso: comer, carregar a comida dentro de mim por algumas horas, e só desová-la na hora que eu quero, e de forma sólida, é definitivamente um privilégio que agora estou apreciando muito mais.

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aedes, inimigo público nº1 do mundo

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alex castro em matanzas

escrevo essas linhas em havana, na tarde de terça, 23 de fevereiro de 2016. amanhã, vou para matanzas, a 100km daqui.

no século XIX, matanzas era a segunda cidade de cuba, em população, riqueza, pessoas escravizadas, produção de açúcar.

o livro que lancei na feira internacional do livro de havana era a autobiografia de um matanceiro, o poeta-escravo juan francisco manzano, editado pela principal editora da província de matanzas, ediciones matanzas.

por fim, o livro terá novo lançamento na feira internacional do livro de matanzas, que acontecerá entre entre 9 e 13 de março.

em matanzas, por motivos óbvios, o lançamento do livro vai ser um evento de muito mais destaque, e devo falar em várias escolas, museus, universidades.

ou seja, era inevitável que eu também passasse um tempinho na charmosa “atenas de cuba”.

havana é a capital do país, uma gigantesca metrópole, um pólo turístico. matanzas promete um clima radicalmente diferente.

vou de trem. nas próximas crônicas cubanas, eu conto.

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uma defesa da revolução cubana

pra terminar, meu romance quem não está, ainda não publicado e procurando editora, se passa parcialmente em cuba.

abaixo, um personagem faz uma defesa da revolução cubana. desnecessários dizer que é apenas um personagem, ou seja, eu não concordo necessariamente com ele.

“Se os jovens de hoje estão de bobeira no Malecón, não é por serem inúteis, contrarrevolucionários, vagabundos, jineteiros. Todos estudaram no melhor sistema educacional das Américas. Falam duas, três línguas. A maioria tem curso superior completo. Mas e daí? Os empregos sumiram. Cuba é a última baixa da Guerra Fria, abandonada por uma potência e bloqueada pela outra. Quem sobrou ao lado de Cuba? Ninguém. Nem os países que libertamos estão em condições de nos ajudar. Quando desabou o Muro de Berlim, e as repúblicas comunistas europeias caíram de maduras na sequência, ninguém tinha dúvidas de que Cuba seria a próxima. A questão era quando. A economia entrou em colapso, as fábricas fecharam, a gasolina acabou. Essas jineteiras de quem Marita fala com tanto desprezo são muitas vezes médicas, engenheiras, sociólogas, sem hospitais para trabalhar, sem prédios para construir, sem salas de aula para ensinar. Cubanas que não tiveram a sorte de nascer num palacete. Então, ficam sim perambulando pelas ruas, fazem amizade com turistas, filam almoço, trepam com gente do mundo inteiro. Será que isso é tão ruim assim?

“E, por incrível que pareça, mesmo com toda essa penúria, Cuba não caiu. Por quê? Os jornalões brasileiros não conseguem explicar. Me lembro de um editorial que questionava: “enforcaram o Ceausescu, desmembraram a União Soviética, por que não derrubam o Fidel?” E deixavam a pergunta no ar, um dos grandes mistérios da humanidade, prova suprema da irracionalidade humana… Nunca respondiam a sua própria perplexidade. E o leitor, largado sozinho e no escuro, só poderia mesmo concluir que Fidel, ditador perverso e onipotente de um país sob eterna lei marcial, somente se mantém no poder por pura violência. Afinal, que outra explicação poderia haver, não é?

“Morro de rir quando aparece qualquer reportagem sobre números de saúde e educação na América Latina, “Brasil tem quarto pior rendimento na Copa Escolar de Matemática das Américas” e, lá no meio, tem um quadrinho com os rankings dos países, e, pimba!, nunca falha, os alunos cubanos estão no topo. Quase sempre o texto da reportagem nem menciona esse fato. Quando menciona, é com a perplexidade de sempre, sem tentativas de explicação. Tiago, Cuba tem maior expectativa de vida e menor mortalidade infantil que os Estados Unidos. Os próprios inimigos de Cuba reconhecem os números, só não conseguem explicá-los. É como se fosse um fenômeno sobrenatural. Como se esses indicadores tivessem caído do céu! Como se tivessem acontecido apesar da Revolução! Quando tentam explicar, acabam falando coisas assim: “se Cuba está tão avançada hoje, imagine como não estaria se tivesse sido uma republiqueta pseudodemocrática neoliberal neocolonial exportadora-de-bananas pelos últimos cinquenta anos…!” É o cúmulo do cinismo! Os sucessos de Cuba parecem ofender os brios dessa gente: “uma ditadura tão terrível e tão insuportável, como podem esses cidadãos mal informados ter a ousadia de viver tanto e tão bem?!”

“Sabe por que o Fidel ainda está no poder? Porque Cuba é o único país da América Latina onde todas as crianças, pobres e ricas, usam óculos pagos pelo governo. Ponto. Ao contrário das ditaduras comunistas do Leste Europeu e de muitas democracias neoliberais latino-americanas, Cuba é um estado onde o cidadão se sente amparado, onde o contribuinte recebe de volta em serviços o valor de seus impostos. A Revolução fez muita besteira, mas também fez muita autocrítica. E o povo, mesmo que discorde dessa ou daquela iniciativa desastrada do governo, nunca vai derrubar um estado tão provedor. Sem entender isso, não tem como entender Cuba.

“Então, sim, a Revolução fodeu com a vida de Rosa María e salvou a de Marita. Rosa María tinha um destino, assim como o meu, ser uma intelectual, dar aulas em universidades, e a Revolução lhe fodeu. Injustamente. Mas, por outro lado, Marita também tinha um destino, um destino ainda mais injusto do que a injustiça feita com Rosa María, e a Revolução lhe salvou. Uma coisa tem a ver com a outra? Um acerto compensa o erro? Não, claro que não, mas…

“Rosa María foi vitimizada não pela Revolução mas por sua própria época. Provavelmente, ela teria se fudido em qualquer lugar. Afinal, em qual país do mundo uma lésbica nascida em 1940 poderia ostentar abertamente sua orientação sexual e, ainda assim, educar a juventude sem obstáculos? Sim, a Revolução fodeu com Rosa María, mas onde ela não teria se fudido? Talvez o grande erro da Revolução, nesse caso, tenha sido criar uma tamanha atmosfera de otimismo e esperança que os homossexuais abandonaram séculos de discrição e saíram a rua abertamente celebrando sua sexualidade. Quem sabe, se tivesse nascido em Moscou, Atlanta ou São Paulo, Rosa María teria sabido ser sempre discreta e, hoje, seria uma professora universitária aposentada depois de viver a vida dupla de tantos outros homossexuais seus contemporâneos.

“Entendo totalmente o ressentimento de Rosa María. Sinto até culpa. Afinal, a vida que ela perdeu foi a vida que eu levei. Mas, sabe, se tivessem me perguntado: você prefere ser um professor catedrático da USP, em um Brasil com a maior desigualdade do mundo, ou passar a vida dando aulinhas no cursinho do bairro, em um Brasil mais igualitário, mais justo, mais fraterno (ainda mais se fosse ganhando o mesmo salário), claro que eu escolheria a segunda opção. Sem hesitar. E acho que Rosa María também.

“E, por outro lado, a Revolução salvou Marita — e isso foi um fato único, belíssimo, inédito na história do mundo. Qual outro país teria salvo Marita? Em qual outro país encontramos mulheres negras, filhas e netas de empregadas domésticas analfabetas, como prósperas funcionárias públicas, médicas, diplomatas, donas de palacetes, com carro na garagem?

“Entende? A Revolução errou muito, erros crassos, criminosos, absurdos, mas seus erros foram os erros de sua época, de sua região, da cultura onde estava inserida. Foram os mesmos erros que estavam cometendo os seus vizinhos e contemporâneos que não tinham nenhuma de suas virtudes. Mas já os acertos da Revolução, ah, seus acertos, foram únicos, belíssimos, incomparáveis.

“Pois então, Cuba está cheia de problemas, como qualquer país do mundo, mas felizmente já não são os problemas do Brasil. Esse nosso racismo institucional, essa nossa relação patriarcal com as domésticas, essa submissividade patológica de nossos humildes, tudo isso já não existe em Cuba.

“Em São Paulo, fiz de tudo para ganhar meu porteiro, para lhe mostrar que somos iguais, que ele apenas trabalha no prédio onde eu vivo. Mas, infelizmente, ele teria que nascer de novo e ter tido outra educação para poder me olhar no olho, não me chamar de dotô, não concordar com cada palavra que eu digo, aceitar meu convite de dividir uma refeição. Tudo o que ele aprendeu toda a vida foi a não se meter com os dotôres, concordar sempre, abaixar o olhar, evitar confusão. Como desfazer isso? Hoje, não tem mais como. Meu porteiro “sabe seu lugar” e ninguém vai lhe convencer do contrário.

“Em Cuba, a mentalidade é outra. O povo é orgulhoso, escolarizado, autossuficiente. Mesmo se a Revolução entrar em colapso e todas suas conquistas se perderem, mesmo se os reacionários de Miami invadirem a ilha e expulsarem Marita da casa que foi dela por cinquenta anos, mesmo assim o povo cubano jamais será submisso e humilde como o nosso. O cubano também “sabe seu lugar” e seu lugar, ele aprendeu bem, é no centro da política mundial, na vanguarda do socialismo progressista, nos sonhos de toda uma geração.

“Não é a toa que, quando ficou pobre, o cubano não apelou para nenhum dos dois extremos que são mais comuns no Brasil: crime e mendicância. Apesar da pobreza, não há nem assaltantes nem mendigos em Havana. O cubano, educado e orgulhoso, sem a raiva necessária para se fazer criminoso, sem a humildade necessária para se fazer mendigo, inventou um caminho alternativo, uma via intermediária: se tornou jineteiro. Sem precisar nem implorar por dinheiro e nem roubá-lo, o cubano utiliza sua cultura, sua educação, sua fluência em línguas para receber o turista, vender serviços, receber comissões, até trepar com ele, por que não? No final do dia, está com os bolsos cheios de dólares, com sua autoestima intacta e ainda gozou.”

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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu