Uma colega, feminista e pedagoga, me contou a seguinte história:
“Outro dia, como um favor, fui cuidar do filho da minha melhor amiga.
* * *
Menino não usa maquiagem
Em um dado momento, ele se aproximou de mim com a mão cheia de objetos e disse:
“Presentes pra você!”.
E começou a me dar tudo: uma banana, uma bola, um batom vermelho.
Para não fazer desfeita, decidi usar os presentes: comi a banana, quiquei a bola, passei o batom vermelho nos lábios.
Enquanto eu fazia isso, ele se aproximou, ficou na ponta dos pés e fez bico pra mim – como certamente vira sua mãe fazer diante do espelho dezenas de vezes.
Entendi o que ele queria e fiz menção de passar o batom nele, mas quando o batom se aproximou de seus lábios, ele subitamente pirou. Saiu correndo e gritando:
“Sou menino! Sou menino! Não pode! Não pode!”
Quando se acalmou, expliquei:
“Pode sim. Meninos podem usar maquiagem se quiserem. Aliás, muitos usam. Meninas não precisam usar maquiagem se não quiserem. Aliás, muitas não usam.”
Ele não pareceu muito convencido.
Quando perguntei se queria passar o batom, como parecia querer, ele hesitou mas acabou dizendo:
“Não! Sou menino! Menino não pode!”
Então, tá.
* * *
Mulher não tem pelo
Daqui a pouco, ele apontou pras minhas pernas e disse, como se fosse uma grande descoberta:
“Você tem pelo na perna!”
“Sim”, respondi.
“Mamãe não tem pelo na perna!”, exclamou ele, em tom de grande mérito.
E eu tive que corrigir:
“Não. Mamãe tem pelo na perna sim. Todos os mamíferos adultos têm pelos em várias partes do corpo. E sua mãe é tão mamífera quanto eu e você. (Mamífero quer dizer que somos o tipo de bicho que mama nos peitos das mamães. Assim como você mama no peito da mamãe hoje, ela também mamou no peito da vovó antes disso. Por isso é que elas são mamíferas. E todos os mamíferos são peludos. Aliás, os mamíferos são os únicos bichos que são peludos. Aliás, sim, somos só mais um tipo de bicho entre todos os outros tipos de bichos.)”
E voltei ao tema original:
“Enfim, mamãe tem pelos sim. Ela só ESCOLHE tirar os pelos.”
E lá veio, inevitavelmente:
“Por quê?”
Pensei em dizer:
“Porque a sua mamãe, apesar de linda e incrível e minha melhor amiga, caiu no engodo da sociedade de consumo, que disse pra ela que ela não será bonita, não será desejável, não será feminina, nunca vai arrumar um novo padrasto pra você, etc etc, se não sofrer dor e perder tempo e gastar dinheiro para retirar forçosamente uma das partes do seu corpo que mais nos define enquanto espécie para ficar eternamente parecendo uma versão infantil e impúbere de si mesma.”
Mas preferi dizer apenas:
“Porque ela gosta assim. Cada pessoa gosta do seu corpo de um jeito.”
“E você gosta das suas pernas com pelo?”
“Minhas pernas têm pelo. Pra mim, é simples assim.”
E ele ficou lá, matutando, até que perguntou:
“Eu vou ser bem peludo quando crescer?”
E dei a melhor resposta que pude:
“Se você quiser, vai.”
E ele se empolgou:
“Eba! Os meninos são peludos, né?”
Então, tá.
* * *
Menina não tem pinto
Mais tarde, eu estava urinando e ele irrompeu banheiro adentro. Como eu sabia que minha amiga também andava nua pela casa e usava o banheiro de porta aberta, não me importei… muito.
Mas ele logo apontou pra mim e tascou:
“Você não tem pinto!”
“É”, respondi.
“É por que você é menina?”
“Não, é porque eu não tenho pinto. Tem meninas com pinto e meninas sem pinto. Tem meninos com pinto e meninos sem pinto. Cada pessoa é do seu jeito.”
“Eu tenho pinto!”, ele disse, em tom heroico, e eu respondi, tentando não deixar transparecer a ironia:
“Puxa, parabéns. Agora, vaza.”
Enquanto eu me compunha, finalmente em privacidade, pensei que era chegada a hora de uma conversinha.
* * *
O que são meninos e meninas
Ele me olhou meio confuso e perguntou:
“Eu sou menino, né?”
“O que você acha?”
Subitamente, ele passou de confuso pra ofendido e retrucou:
“Acho que sou menino, oras!”
“Então você é.”
“Só isso?”
“Só isso.”
“Não é por que eu tenho pinto?”
“Tem muito menino por aí que não tem pinto e eles são tão meninos quanto você. Tem muita menina por aí que tem um pinto parecido com o seu.. e são tão meninas quanto você é menino.”
“E você?”
“O que eu sou não faz nenhuma diferença.”
Ele parou e refletiu um pouco e disse:
“Eu sempre pensei que menino fosse quem tinha pinto e menina, quem não tinha.”
“Ih, essa sua regra é muito complicada. Como é que você vai saber quem tem pinto e quem não tem? Isso é muito pessoal!”
Ele refletiu mais um pouco:
“Então, como é que faz?”
“É bem simples. Se um menino se apresenta como menino, então, ele é menino e você trata ele como menino. Se uma menina se apresenta como menina, então, ela é menina e você trata ela como menina.”
“Mas e o pinto?”
Jesus amado, homens e seus pintos, que obsessão!
“Pra você, não faz diferença quem tem pinto e quem não tem, porque quase nunca você vai saber quem tem pinto e quem não tem.”
Aliás, pensei, por que cargas d’água você quer tanto saber dos pintos dos outros?!
“Talvez alguns meninos que você conhece não tenham pinto. Talvez algumas meninas tenham. e daí? Não quer dizer que sejam menos meninas e menos meninos por causa disso. Entendeu?”
Ele entendeu. Quando minha amiga chegou do cinema, ele foi correndo pros braços dela:
“Mãe, eu sou menino, mas posso decidir não ser! E você sabia que tem menina que tem pinto?”
Hoje, imagino que devem estar bem. Minha amiga cortou contato e nunca mais falou comigo.”
* * *
Para prosseguir essa conversa
Hoje é o dia nacional da visibilidade trans*, uma das minorias mais invisíveis e silenciadas da nossa sociedade. Para saber mais, dê uma passeada pelos links abaixo:
– O que é um homem e o que é uma mulher
– O que é feminismo intersecional?
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Esse texto é uma obra de ficção.
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Outrofobia: Textos Militantes
Esse texto faz parte do meu livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.
Se você gostou do que eu escrevo, então, dá uma olhada no livro: custa só trinta reais e deve ter mais coisa que você vai gostar também.
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