É claro que isso já me aconteceu muitas vezes. Incontáveis vezes. Eu é que nunca reparei em como vivi me esquivando há tantos anos. Agora que tenho uma filha, terei que ensiná-la a se esquivar também? Ou devo ensiná-la a tirar a roupa na praça em protesto e aceitar sem suspiros de impaciência quando fizerem uma oferta por ela? Bem, eu estava vestida e muitas vezes fizeram uma oferta por mim. Eu havia me esquecido até topar com a clareza da Claudia Regina descrevendo como se sente uma mulher.

É claro também que eu me senti constrangida muitas vezes. Sobretudo ao ouvir que eu deveria rezar mais ou que talvez o meu padrão de pensamento e energia é que atraíam esse tipo de situação. A culpa era minha então. E provavelmente da roupa que eu usava. E do jeito como eu olhava, do sorriso ou da educação. Da atenção, da profissão. Havia sempre uma teoria sobre o meu descuido ou equívoco.

Mas ninguém sabia me explicar exatamente porquê isso acontecia. Afinal, foi debaixo de um jaleco que ia do pescoço às panturrilhas que recebi a primeira oferta direta, em números. Uma mesada generosa, um apartamento, carro, despesas pagas para ser acompanhante exclusiva.

O mundo adulto inaugurou a nova modalidade. Além de olhares perscrutadores ou exaltações anônimas aos meus órgãos femininos pela rua, uma oferta direta à qual eu poderia, finalmente, responder diretamente: “não, obrigada”. Foi a única vez em que eu seria capaz de socar o peito de um senhor de 84 anos que, inseguro da negativa, resolveu, pelo sim pelo não, tocar o meu seio.

No metrô é coisa comum. É um que confunde meu quadril com a estrutura metálica, outro que simula um empurra-empurra que não existe. No ônibus, menina, eu olhava o movimento quando notei um carro insistentemente emparelhando. Demorei para entender, chocada, que o motorista dividia sua atenção entre o volante e o que se podia ver de mim pela janela, enquanto manuseava seu órgão genital. Coisa parecida também quando eu falava ao telefone estirada na cadeira da varanda e reparei um homem seminu manipulando o falo no apartamento do prédio da frente.

Leia também  O amor dos bróders

Uma vez grávida, achei que o assédio diminuiria. Mas não. A barriga já grande e não fui poupada de ouvir o que uns e outros gostariam de fazer sexualmente com uma mulher grávida. Eu lembrando aqui, enquanto escrevo, sinto nojo. Mas na hora não senti, porque não prestei atenção ao conteúdo do que me diziam. Apenas desviei, mudei de calçada, cheguei mais pra lá, apertei o passo, entrei em uma loja sem querer, olhei para o outro lado, puxei assunto subitamente com alguém próximo e abandonei o fato em seguida.

Mas pior, muito pior do que como se sente uma mulher, é sentir o que sente a mãe de uma menina sabendo o que a filha encontrará pela frente. E eu vou ensinar o quê? O que é essa resistência? Como se resiste à violência? Pacificamente, como Gandhi, aceitando o abuso e encontrando rotas alternativas menos piores, oferecendo flores a quem lhe oferecer dinheiro? Distribuindo socos? Procurando a polícia a cada episódio? Fazendo passeata toda a semana?

A filha é minha e eu a deixo usar o blush quando e como ela quiser (foto: Camila Caringe)
A filha é minha e eu a deixo usar o blush quando e como ela quiser (foto: Camila Caringe)

É essa resistência feminina que eu não sei nominar, é quase uma teimosia a de insistir na feminilidade ou se masculinizar. Eu não sei. Qualquer coisa me parece um ato de coragem. Inclusive ceder e se vender. É preciso coragem de qualquer maneira para quem nasce sob o signo da fenda. É a fome, a gana de amar, de receber entre as pernas um homem, de parir, de alimentar. Essa força indescritível, essa vontade de viver.

É provavelmente isso o que eu jamais poderia ensinar o que fará a minha filha resistir. A vontade de ser o que ela já nasceu sendo: uma pessoa.

Camila Caringe

Muito mãe, bastante jornalista e consideravelmente afeita a queijo gouda, na respectiva ordem de importância.