Estávamos o Barbudo, o Motorista e eu. O Barbudo cambaleava de bêbado. Tomou chope a noite toda e virou três submarinos seguidos.

O garçom do bar virou fã incondicional.

Tamanha demonstração de alcoolismo jamais fora vista antes naquele estabelecimento.  O Motorista, contrariando as regras de conduta legal, bebeu alguns drinques durante a noite. Eu fiquei tomando refis de chá, um marasmo só. O Cabeludo não estava mais com a gente, morava pro outro lado da cidade e foi embora no próprio carro.

Era aniversário do Barbudo. Comemorávamos um novo salário obsceno que ele iria ganhar. Colocamos a nossa melhor playlist e cantamos Make it Bun Dem até ficar rouco. A noite estava acabando, tudo era engraçado e só conseguíamos rir.

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Conspiração das leis ocultas do universo

Num súbito descuido, que ainda gera controvérsia, o Motorista subiu na guia da rotatória, amassando a roda do carro e esvaziando o pneu. Andamos com a roda amassada até um local seguro, pouco a frente, e paramos o carro. Nessas horas tudo de errado acontece. As leis ocultas do universo se encarregam de conspirar contra e nunca nada vai funcionar como deve.

Coloquei o triângulo antes da curva onde paramos. Segundos depois, um carro o atropelou e a ferramenta foi inutilizada.

O Motorista tentava usar o macaco para levantar o carro e descobrir que a chave de roda estava espanada demais para conseguir tirar os parafusos. A bateria do meu celular acabou enquanto tentava achar um borracheiro 24 horas. O Barbudo, bem, esse estava bêbado demais pra entender o que estava acontecendo.

Enquanto discutíamos o que poderia ser feito, nossa sorte mudou.

A moça do carro branco

Um carro branco, pequeno, bem novinho passou e estacionou logo à frente.

Imaginei que fosse alguém pra reclamar que o triângulo havia caído, que deveríamos sinalizar melhor. Mas a foi diferente. Uma voz feminina gritou de dentro do carro, enquanto abria a porta para sair.

— Oi! Vocês precisam de ajuda?

As leis do universo resolveram nos pregar uma peça e contribuir para nossa noite.

Um belíssimo exemplar do sexo feminino, medindo não mais que 1,65m caminhou em nossa direção com um doce ar de preocupação. Explicamos que a chave estava ruim, não dava pra trocar a roda.

Antes que falássemos mais alguma coisa, a Moça do Carro Branco abriu o porta-malas e tirou tudo que havia lá dentro. Caixa de grave do som, violão, algumas roupas e uns livros enormes de química. Ela estava se formando.

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Walking Dead

Imponente, voltou parecendo uma personagem de pronta para matar um zumbi, armada com um taco de baseball. Mas era só a roda do carro e uma chave em formato de L.

Antes que pudéssemos exprimir alguma vontade de ajudar, ela se ajoelhou no chão e começou a tentar tirar os parafusos. Todos se olharam com uma expressão de incredulidade. O Motorista ensaiou um “caralho, eu te amo”, fazendo só o movimento com a boca.

Felizmente a chave do carro dela não servia para aquela roda.

Quanto mais louca melhor

Enquanto a frustração era absorvida, se transformando numa inexplicável sensação de felicidade, sabíamos que aquela noite tinha que continuar. Não podíamos resolver tudo e ir embora.

Não agora.

A Moça do Carro Branco voltou para guardar a bagunça no porta-malas. Me prontifiquei para ajudar. Pude observar que ela tinha duas moléculas tatuadas no braço. Perguntei quais eram.

— Serotonina e dopamina. Moléculas da felicidade e do amor, respondeu com um leve sorriso.

Naquele momento, passei a duvidar do que estava acontecendo. Só podia ser um sonho.

Não conseguimos falar com nenhum borracheiro 24 horas por telefone, então ela sugeriu que fossemos com ela até o posto mais próximo. O Barbudo continuava bêbado demais para fazer isso e o Motorista teria que cuidar do carro. Assim, entrei no Carro Branco da Moça.

Logo que entrei, tive que alertá-la da loucura que ela estava fazendo.

— Sabe,você sabe é muito louca parando sozinha para ajudar três marmanjos no meio da noite, né?

— Deu pra ver de longe que vocês são tranquilos.

Enquanto descrevo estes acontecimentos, entendo que o maluco fui eu. Ela poderia estar com cinco caras do pau grande escondidos em algum canto, esperando para explorar minha bundinha.

Fomos a quatro postos do bairro e descobrimos que não existe borracheiro 24 horas na região. Na verdade, ela fez tudo. Eu fiquei calado, ela tomando frente e tentando resolver o nosso problema a qualquer custo.

Eu tinha que estar sonhando.

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Voltamos ao carro do Motorista e decidimos acionar o seguro para fazer a troca.

A Moça do Carro Branco não demonstrou nenhuma vontade em sair dali. Ficou conversando com a gente sobre aleatoriedades da vida por um bom tempo. Quando tudo já parecia rocambolesco o bastante, ela acenou um carro branco que passava por ali, idêntico ao dela. O carro estacionou e uma linda moça, um pouco mais nova, desceu do carro.

Era a Vizinha dela, voltando da prova de direito penal.

Já acumulávamos três carros parados na lateral da pista. Fizemos um esforço e alinhamos todos num canto mais seguro. As moças ligaram o som do carro, começaram a dançar forró entre elas. Conversamos e rimos da vida.

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Juro que eu não estava entorpecido.

Coisa de meia hora depois elas falaram que a mãe da Vizinha estava reclamando do horário. Precisavam ir embora.

Entraram nos carros e partiram. Nunca mais tivemos notícias delas.

Atropelamento, polícia e dor de barriga

Faltava pelo menos de uma hora para o carro do seguro chegar.

Fiquei conversando com o Motorista enquanto víamos o Barbudo, bêbado, tentando sentar num toco de madeira. Virou-se de costas e foi andando para trás lentamente enquanto se abaixava para sentar. Acabou sofrendo uma rasteira do pobre toco de madeira e caiu rolando na grama.

Aquela noite estava sendo muito boa.

Sentamos no carro e ligamos o som para ouvir um pouco de música, mas o telefone do Motorista tocou.

Foi quando ouvi o dialogo telefônico mais esquisito da história:

— Tô aqui ainda mãe, esperando o seguro chegar. Ainda tá no prazo.

Zanzou um pouco.

— Não mãe! Não atropelei ninguém! Eu juro!

Continuou falando e olhando pro chão.

— Não é mentira mãe! O pneu do carro tá furado e não consigo trocar, é só isso!

Chutou umas pedras.

— Ahhh mãe! Não é porque meu pai mentiu a vida toda pra você que estou mentindo!

Deitei no meio da pista e chorei de rir por uns 15 minutos. O Barbudo continuava chapado, imerso no whatsapp, sentado lá no toco no meio do gramado.

Quando o Motorista saiu do telefone, ficamos conversando e avistamos um comboio de viaturas chegando na rua em que estávamos. Um dos carros voltou, era óbvio que isso aconteceria.

Police-at-Night
SWAT

Os policiais estacionaram atrás da gente e saíram taticamente, com as armas engatilhadas, tipo filme da . O Barbudo continuou do jeito que estava.

Um dos policiais se destacou e perguntou o que estava acontecendo. Explicamos como fomos parar ali, mas preferimos ocultar a parte das meninas. Eles não acreditariam e levariam a gente preso por zombar da autoridade. Perguntou pra mim de quem era o carro então apontei para o Motorista. E como de costume:

— Documento do veículo e habilitação, senhor.

Enquanto o Motorista entrou para buscar os documentos do carro, sentei na calçada para assistir a cena que se seguiu:

— Não senhor, esse aqui não é o documento do carro, é o DUT.

– E o que é isso?

— O senhor guarda isso em casa, vai usar quando vender o carro e for transferir pra outra pessoa.

— Certo. Tem esses outros documentos aqui, é algum desses?

— Olha, os documentos dos antigos você pode deixar em casa também, só precisa desse aqui.

— Obrigado, Motorista, os documentos estão certinhos.

— Me deixa ver essa chave de roda.

Ih, com essa aqui você não vai muito longe. Mas boa noite e boa sorte.

Assim que os policiais se foram, o Motorista começou ficar mal do estomago. Estava tão tenso e com medo bafômetro, que foi contemplado com uma grande dor de barriga.

E nada da porra do seguro chegar.

O Motorista correu para o mato, mas voltou rapidamente. Pra ele, cagar na rua seria a morte à beira do abismo. A cereja do bolo num dia muito louco. Tentou segurar o quanto pôde, mas não resistiu. Correu para trás de uma árvore e voltou sem as meias.

Pronto, agora era a hora que eu deveria acordar desse sonho.

Não falaram que precisava de macaco

Depois de uns 90 minutos o Cara do Seguro ligou, queria saber o modelo do carro para levar a chave certa. Ficamos putos. Mas eventualmente ele chegou até nós.

O Cara do Seguro não era muito de falar, chegou com a ficha para o Motorista e foi direto no pneu.

Enquanto tentava levantar o carro, descobrimos que o macaco não estava funcionando. Ele até conseguia subir um pouco, mas não estava sustentando o carro no alto. O Cara do Seguro fez uma cara de sofrimento enorme, então perguntei se não teria um macaco no caminhão.

— Não me falaram que precisavam de macaco.

Fodeu.

O Cara do Seguro se levantou e foi até o caminhão, remexeu num monte de tranqueiras e apareceu com um macaco que era para o próprio caminhão. Mas esse era alto demais para entrar debaixo do carro. Usamos o macaco ruim até um pedaço e depois encaixamos o do caminhão. Tudo resolvido agora.

Enquanto o Cara do Seguro guardava as coisas de volta no caminhão, um táxi parou do nosso lado. Uma mina abriu a porta e chamou o Barbudo, que se despediu e foi embora. Entrei no carro com o Motorista e fui para casa.

No dia seguinte acordo com a seguinte mensagem do Barbudo:

“Cara, o que aconteceu ontem? Lembro de ter virado um submarino e acordei na casa da Mina do Táxi. Como eu paguei a conta?”

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.