Os deuses mexeram seus pauzinhos e fizeram de tudo pra que eu preenchesse pelo menos uma linha com algumas coisas. Não que eu seja um herói.

Não.

Longe disso.

Mas, como nas lendas em que algum Deus envia uma arma especial e as coisas mudam porque o cidadão está fadado a alguma realização, alguém me apareceu com um desses (tão sonhados por mim) cantis de inox custando vinte paus. Toma. E depois uma garrafa, toma também. Juntei os dois mais dois e acaba que tudo é fruto de uma matemática simples.

Às vezes preciso mesmo sair. Não para algum lugar. Mas para ir até um ponto mais ou menos distante, dar meia volta num ponto estranho, olhar pra trás e voltar. Cada um com sua própria loucura pra espairecer.

Por exemplo. Uma noite dessas aconteceu.

“Você vem sempre aqui?”

Peguei o ônibus da esquina de casa e fui até o outro lado da cidade. A parte de trás estava cheia. Não havia como passar a roleta. Alguns pontos depois o ônibus parou e as mesmas pessoas de sempre entraram do mesmo jeito de sempre. A não ser por uma garota negra linda que, por ação sobrenatural, sentou na cadeira vaga do meu lado.

Ela pediu licença e sorriu sem mostrar os dentes. Um sorriso bonito, aprovado. Puxou uma garrafa de água da bolsa e tomou um gole, secou os lábios e guardou. Me senti motivado. Fiz o mesmo com meu cantil (com vodka). Puxei o papo.

— Calor horrível, né?
— Verdade.
— Também trago comigo uma garrafinha. Não dá pra ficar sem beber água.

Sorri pensando se era ou não doentio beber alguma coisa quente no calor. Com certeza era. Disparou Shooting Star, do Lou Reed, no meu celular. Era só um engano.

— Meu nome é Caroline, como na música.
— Música?
— Lou Reed.

Menti meu nome e guardei o celular no bolso. Conversamos um pouco sobre bobagens e, bem, era estranho ela não ter descido ainda. Passamos pra trás do ônibus e partilhamos o cantil até esvaziar. Tudo bem que era 300 ml, mas ela tinha uma resistência respeitável.

Descemos na rua das putas, do outro lado da cidade, e caminhamos lado a lado falando sobre trabalho e bons álbuns.

— Vou beber com umas amigas, quer vir?
— Pode ser, mas estou sem grana.
— Não tem problema.
— Onde é?
— Não teria a mesma graça se eu te dissesse.

Achei estranho. Seria pretensão achar que era alguma merda. É paranóia demais imaginar que um grandalhão estaria me esperando em algum lugar pra me comer o cu de pancada. Beber alguma coisa na rua das putas não significaria tomar no cu, mas do jeito que as coisas se encaminhavam, era bem provável. E ela percebeu minha hesitação. Sorriu mostrando os dentes mais brancos que eu já havia visto na minha vida – claro que propositalmente.

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— Hey, babe, take a walk on the wild side.
Sorri de volta.
— Você fuma?
— Depende.
— De quê?
— Se você tiver um pra me oferecer, fumo sim.

Entramos num prédio escuro e subimos as escadas dos corredores silenciosos fazendo bastante barulho nos degraus. Passamos por uma porta entreaberta, apartamento cheio de garotas bebendo e conversando.

Uma delas perguntou:

– Cliente?
— Não.

Pegou dois cigarros amarelos com uma loira de copo na mão e entregou um aceso pra mim. Fecharam a porta e fomos todos pra um quarto no fim do corredor de onde se ouvia uma música bem baixa. Não tinha idéia do que ia acontecer, até que uma por uma começou a contar as histórias mais estranhas de todos os programas, seguindo uma ordem num círculo – do qual eu fazia parte mesmo sem saber.

— Bom – puxei um trago – peguei uma garota num ônibus e ela me pagou com cigarros e bebidas, mas não rolou transa nenhuma, achei estranho pra caralho, mas tudo bem. Acabei num quarto estranho sem saber o que falar e me perguntando pra que merda eu não ando com um gravador.

Todas riram e perguntaram o que eu fazia.

— Eu? Eu invento e escrevo tentando deixar o menos estranho possível.

Carol encheu meu copo e perguntou se eu ia escrever sobre aquela noite.

— Não sei, não sei.

Insistiram pra que eu o fizesse.

—Tá bom, tá bom, eu escrevo.
— Foda vai ser alguém acreditar — disseram do outro lado do quarto.

Felipe Feitosa

Estudante, macumbeiro e agnóstico com tendências ateístas. Palmeirense, barriga de cerveja, Led Zeppelin e nordestino.