Sempre que começa algum evento do UFC na televisão, gosto de lembrar como tudo começou.

É curioso imaginar como um ousado paraense plantou uma semente que germinou a ponto de se tornar um dos esportes mais populares do mundo. Este brasileiro pouco conhecido é responsável por uma das mudanças mais substanciais da história das artes marciais.

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Senhor Carlos Gracie

Nascido em Belém do Pará, Carlos Gracie destacava-se dos demais irmãos pelo seu corpo franzino e a imensa energia que exalava. Essa hiperatividade sempre acabava em castigo para o pequeno Gracie. A lista de queixas deixadas era sempre enorme.

Seu pai, Gastão Gracie, castigava suas travessuras com surras de cinto, chinelo e tapas com a barriga da mão. Carlos, com uma personalidade muito forte, sempre resistia em silêncio. O aumento das surras e a ausência de diálogo entre os dois criou uma grande distância entre pai e filho. Dessa forma, Carlos passou a desafiar qualquer figura de autoridade que se apresentasse.

O pequeno Carlos andava sempre com os bolsos cheios de pedras. Quando via alguém em cima de “suas” árvores não exitava em bradar:

“Se queres manga, vai colhê-las em outro lugar. Porque aqui na minha rua só quem pode tocá-las sou eu!”

Sua arrogância servia como arma para intimidar inimigos e se defender. Carlos nunca deixou sua aparência franzina se sobrepôr a seu forte espirito.

Gastão Gracie, pai de Carlos, passou por uma série de problemas financeiros, fazendo com que migrasse de negócio a negócio. Num desses empreendimentos foi empresário de um Circo, que na época era uma das formas mais populares de disseminar cultura popular.

O The American Circus contava com espetáculos de todas as formas, acrobacia, dança, teatro, e até demonstrações de combate corporal, onde lutadores de várias modalidades se desafiavam. Uma dessas modalidades era a arte marcial tradicional japonesa, o Jiu-jitsu.

Foi neste cenário que Gastão Gracie fez um novo amigo. Mitsuyo Esai Maeda viajava com outros lutadores e, provavelmente, foi o primeiro contato da família Gracie com o Jiu-jitsu, ainda em sua forma tradicional. Conde Koma, como Mitsuyo Maeda era conhecido, passou a dar aulas para Carlos Gracie, ainda em Belém.

Nenhum dos dois poderia saber, mas era o começo de uma dinastia.

As mulheres de Carlos

O início da vida amorosa de Carlos foi complicada. A primeira namorada séria de Carlos foi Illona, que contraiu tifo e acabou bastante debilitada. Durante um delírio causado por uma forte febre, Illona se jogou pela janela. Foi neste período que Carlos compreendeu melhor a seriedade da morte. Passou então a cuidar da saúde e valorizar a vida. Carlos também teve outras seis mulheres, sendo elas: Carmen, Ilda, Lina, Geni, Claudia e Layr. O patriarca Gracie também teve 21 filhos.

Carmen, com quem Carlos teve 5 filhos, ficou muito debilitada devido a uma tuberculose e precisou ser internada num sanatório dedicado aos enfermos com essa doença. Carlos virou um herói no sanatório ocupado por 150 mulheres tuberculosas, pois mesmo sabendo do estado avançado da enfermidade, não deixava de beijar sua esposa na boca.

Os médicos advertiam mas nada adiantava. “Me sinto imune aos bacilos de Koch”, dizia o Gracie.

Depois de um abaixo assinado organizado pelas mulheres do sanatório, Carlos recebeu a permissão de dormir no quarto com sua esposa até seus últimos dias.

O vazio deixado pela perda de sua esposa foi a porta de entrada para a fé e a religião. O Gracie considerava reencarnação era um processo de purificação da alma. Um caminho evolutivo e natural.

Segredo da longevidade

Carlos ainda permaneceu um tempo no sanatório depois que sua esposa faleceu. Interessado no assunto, pesquisou as causas e manifestações da tuberculose e, por isso, foi aceito como uma espécie de estagiário pelos médicos.

Quando se despediu para deixar o sanatório, recebeu a surpresa. Foi convidado para trabalhar definindo a dieta dos pacientes. Todos estavam impressionados com sua dieta e a certeza de imunidade.

Havia anos Carlos seguia uma dieta vegetariana, alimentando-se apenas de frutas, queijo branco, verduras, legumes, raízes e outros alimentos naturais não processados.

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Preocupado com o contato dos filhos com a falecida mãe, Carlos passou a cuidar da saúde e alimentação de todos eles, que poderiam ter adquirido tuberculose no contato com a mãe. A mais nova, Sonja, adoeceu por ter mamado na mãe quando já estava doente. O patriarca Gracie preferiu não internar a filha e decidiu curá-la utilizando seus meios naturais.

Carlos acreditava que se banhar dos primeiros raios de sol tinha propriedades de cura. Em pouco tempo, Sonja se curou da doença, para surpresa de todos os médicos.

A base da teoria de Carlos para sua milagrosa dieta partia de que toda substância ingerida provocava uma reação ácida ou alcalina no sangue. O pH dos líquidos e do sangue não podiam ultrapassar um limite de acidez. Para ele, a má alimentação causava uma mudança na acidez deixando o corpo vulnerável a doenças.

O primeiro livro de Carlos se chamava Filosofia e Prática do Naturismo. Ele explicou em 1983 para a revista Manchete como desenvolveu sua pesquisa:

“O esporte era a minha profissão, e a prática do Jiu-jitsu me ensinou a ter muita responsabilidade e uma disciplina férrea. Esses atributos foram a base e permitiram que me concentrasse de forma metódica nos meus estudos. Foi comigo mesmo, no meu próprio organismo, que fiz minhas primeiras experiências e descobertas sobre alimentação. Depois, quando filhos e netos foram nascendo, também se tornaram fonte interessante para minhas pesquisas.
Nos livros de medicina, aprendi tudo o que precisava saber sobre a anatomia e o funcionamento do corpo humano. Na botânica, recolhi os ensinamentos sobre plantas e ervas medicinais, e a antropologia me levou a constatar que de todas as espécies animais, o ser humano é a única que não tem uma alimentação própria. O homem, cada vez mais come coisas que contrariam sua própria natureza.
O funcionamento normal do nosso organismo está diretamente relacionado com seu equilíbrio ácido-alcalino. O excesso de acidez começa no estomago e passa para o sangue através dos intestinos. O ser humano é uma máquina tão perfeita que possui por si mesma os ácidos necessários para metabolizar os alimentos. Não há necessidade de ingerirmos ácidos a mais. Comer errado é o pior dos venenos, pois quando a dosagem ácida é aumentada pela comida, o organismo se vê obrigado a neutralizá-la constantemente. Com o tempo essa neutralização se torna cada vez mais difícil e enta, dando origem à maioria das nossas doenças”

O Jiu-jitsu Gracie

O Jiu-jitsu que Carlos aprendeu logo mudaria de nome. Com a unificação das escolas de Jiu-jitsu no Japão em uma única grande organização, a Kodokan, todos passaram a tratar esta arte sob o nome Judô.

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O Judô se tornou uma arte com maior apelo esportivo e priorização das técnicas de projeção. Carlos continuou chamando sua arte de Jiu-jitsu e desenvolvendo a parte que mais gostava, o Ne-Waza, como são chamadas as técnicas de chão.

Quando Carlos ainda tinha 19 anos, a família Grace estabeleceu residência no Rio de Janeiro, interrompendo os treinamentos com o Sensei Mitsuyo Maeda. Carlos passou a ensinar Jiu-jitsu para seus irmãos. Entre eles estava o lendário Hélio Gracie.

A partir disso Carlos se estabeleceu como professor, viajando por todo Brasil disseminando a Arte Suave. Em 1925 foi estabelecida a primeira Academia Gracie de Jiu-jitsu.

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Nessa época, Carlos e seus irmãos buscavam academias de artes marciais na cidade, entravam e desafiavam os professores.

Esta era a forma mais eficiente de recrutar alunos. Todos queriam entender como aquelas pessoas fracas conseguiam vencer seus mestres sem utilizar de um único soco. A cada visita que faziam, inúmeros alunos se matriculavam na Academia Gracie. Esta prática foi crescendo e os Desafios Gracie se tornaram bastante populares.

Os desafios eram feitos através dos jornais da época, chegando a tamanha popularidade que algumas lutas aconteceram até mesmo no Maracanã.

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Os Gracie também tiveram um programa dedicado aos desafios, chamado Heróis do Ringue, na extinta TV Continental. Depois de apenas seis meses de exibição, o programa foi cancelado, devido a um incidente no qual João Alberto Barreto encaixou uma chave de braço em João Geraldo, que não desistiu e acabou deixando a luta com uma fratura exposta. Se isso seria chocante hoje, imagina o efeito que teve em 1959.

Esses desafios evoluíram até quando Rorion Gracie, que morava nos Estados Unidos organizou a primeira edição do UFC, no dia 12 de Novembro de 1993. O lutador da família escolhido para lutar no evento foi Royce Gracie. Optaram por Royce pelo seu físico franzino, podendo mostrar o real poder do Jiu-jitsu Gracie.

O desempenho de Royce foi tão incrível que ele se tornou um dos maiores nomes da história do UFC e influenciou muitos outros lutadores.

Espiritualidade

Um dos pontos marcantes da história de Carlos era sua espiritualidade. Como espírita, incorporava e se comunicava com uma entidade espiritual chamada Mestre Lasiovino. Com esse dom, Carlos realizava consultas e aconselhava pessoas.

Sua grande amizade com Oscar Santa Maria, por muitos anos, esteve baseada na relação que a entidade nutria entre os 3. Esse mesmo ponto foi um dos motivos do rompimento de tamanha amizade.

Alguns relatos sobre a capacidade mediúnica do líder da família Gracie chegam a assustar. Uma de suas filhas afirma ter visto o pai mudando a estação de rádio apenas com a força do pensamento. Frequentemente era considerado um Mago ou um Xamã por outras pessoas.

Um homem com tantos dons impressionantes, obviamente, levantaria algum tipo de mito ao seu redor.

O alicerce Gracie

Algo que é importante frisar na história do Patriarca Gracie é a maneira como conseguia agregar todos os seus familiares e filhos. Unidade familiar era uma grande vantagem dos lutadores Gracie, que viviam uma cultura inteiramente dedicada a saúde e atividades físicas.

A enorme casa que mantinha em Teresópolis servia de quartel general para a família e amigos. Os 21 filhos de Carlos em conjunto com os 9 filhos de Hélio, somados com os filhos dos outros irmãos, netos e amigos, tinham passe livre na casa que estava sempre cheia.

Na frente da casa era possível ver de longe as dezenas de kimonos secando ao sol. Naquela época a academia fornecia os kimonos para os alunos, aos finais de semana eram todos lavados em Teresópolis.

Carlos conseguiu manter quase todos os seus filhos e netos no caminho do Jiu-jitsu e praticantes da dieta Gracie. Treze de seus filhos chegaram até a faixa preta.

Carlos (passando a guarda) e Helio Gracie (fazendo guarda)
Carlos (passando a guarda) e Helio Gracie (fazendo guarda)

Carlos vivia sob doze mandamentos que merecem ser citados e lembrados, seja você lutador ou não:

1. Ser tão forte que nada possa perturbar a paz da tua mente.
2. Falar a todos de felicidade, saúde e prosperidade.
3. Dar a todos os teus amigos a sensação de que têm valor.
4. Olhar as coisas pelo seu lado luminoso e atualizar teu otimismo em realidade.
5. Pensar somente no melhor, trabalhar unicamente pelo melhor e esperar sempre o melhor.
6. Ser tão justo e tão entusiasta com respeito ao êxito dos outros como és com o teu próprio.
7. Esquecer os erros do passado e concentrar tuas energias nas conquistas do futuro.
8. Manter sempre o semelhante alegre e ter um sorriso para todos os que a ti se dirijam.
9. Empregar o maior tempo no aperfeiçoamento de ti mesmo, e nenhum tempo em criticar os outros.
10.  Ser grande demais para sentir desassossego, nobre demais para sentir cólera, forte demais para sentir temor e feliz demais para sentir contrariedades.
11. Ter boa opinião sobre ti mesmo e proclamá-la perante o mundo, mas não com palavras altissonantes e sim com boas obras.
12. Ter a firme convicção de que o mundo estará ao teu lado, enquanto te mantiveres leal ao que há de melhor em ti.

Carlos Gracie, Sr. morreu em 8 de outubro de 1994, aos 92 anos.

Nota do autor: Muitas das referências foram tiradas do livro Carlos Gracie, O Criador de Uma Dinastia, por  Reila Gracie.

Mecenas: Paco Rabanne

Paco Rabanne nos convidou até Paris para acompanharmos, em primeira mão, o lançamento de sua nova fragrância: Invictus.

Para celebrar, lançaram uma grande competição entre sete atletas escolhidos ao redor do globo.

Link YouTube | Nick Youngquest, atleta australiano de rugby, foi escolhido como o principal representante dessa campanha

 

Ricardo(ao centro), o representante brasileiro na competição, com seus alunos em Londrina
Ricardo(ao centro), o representante brasileiro na competição, com seus alunos

O PapodeHomem foi convidado para apoiar oficialmente Ricardo, o lutador de jiu-jitsu e modelo brasileiro, cujo projeto é expandir a presença dessa arte marcial pelo mundo, começando pela abertura de uma escola em Milão, onde mora.

Estão na disputa Brasil, Inglaterra, Argentina, França, Itália, Alemanha e Espanha.

Entre aqui para escolher em qual dos sete concorrentes deseja votar.

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.